A cada passo se formam por aí grupos literários. Há-os em todas as gerações. Os rapazes sentiram sempre necessidade de comunicar e juntam-se conforme o acaso, as afinidades ou as aspirações.
É um momento delicioso que nos deixa para sempre um nada de poeira no fundo da alma — algum pó dourado que teima em reluzir até ao fim da vida. Já o passado fica muito longe, já as figuras de apagadas mal se distinguem e ainda a poeira de sonho teima lá no fundo... E que essas horas são como a primeira flor das árvores: não há nada que as pague. Por melhores e mais conscientes amizades que mais tarde se adquiram, nenhuma chega à dos vinte anos, quando o homem não tem interesses a defender e os sentimentos estão em pleno viço. Não há um de nós que saiba ainda o que vale a existência e todos de mãos dadas olhamos com sofreguidão e candura. É o começo delicioso de uma aventura. Estamos juntos e unidos como irmãos e já sentimos o travor da separação: só mais um passo e cada um parte para o seu lado, sem às vezes se tornar a ver.
Valia a pena determo-nos a olhar a vida, tingida de névoa azul como certas paisagens que só são belas de longe — a vida como nunca mais nos será dado vê-la -, mas quem é que nessa idade se detém?
Em qualquer recanto, num café, entre quatro paredes que não importam, porque, por mais denegridas que sejam, a nossa alma tem o poder extraordinário de tudo transformar, falamos ao mesmo tempo e com o mesmo entusiasmo, repartindo sonho às mãos-cheias. É então visível e quase tangível a auréola que se forma sobre as cabeças de vinte anos.
O que em nós vai secando pela vida fora está tão sensível que magoa tocar-lhe. Todos somos poetas, todos vivemos num estonteamento que se parece com o amor. Todos os dias são de primavera. Ainda que o casaco esteja no fio, a gente não sabe que mudaram as estações, e a existência, mesmo numa mansarda, é uma festa perpétua.
À noite cada um estatela o seu sonho diante dos outros, e aquilo é um braseiro imenso ao qual todos se aquecem. Essas horas tão curtas são extraordinárias, porque o mundo pertence-nos e as asas da quimera, que nos protege e não sai do nosso lado, tocam o céu e a terra. De dia o grupo caminha às vezes pela rua fora, falando tão alto que toda a gente se volta: impregna-o uma atmosfera de juventude e de beleza de tal forma magnética que as raparigas — em que eles nem sequer reparam porque discutem metafísica — sentem arfar-lhes o seio redondo que se forma, e seguem pensativas.
Outro momento e tudo isto desaparece para sempre: a vida vai-nos modificar de alto a baixo na sua forja brutal, dando-nos uma têmpera mais rija e um sabor mais amargo...
Do nosso grupo fazia parte um grande poeta, que se sumiu para sempre ignorado num buraco da província e um rapaz encolhido e calado no seu canto — que veio a ser o maior poeta da sua geração; o Pita, que aparecia e desaparecia em relâmpagos quase instantâneos, embrulhado na capa misteriosa, e que deve a estas horas apodrecer com comodidade num cemitério africano; o Profeta, desenhador cheio de sonho, de figuras alucinadas, de paisagens irreais, e que acabou doido, continuando no hospital a criar monstros fantásticos, árvores em atitudes de humano desespero, uma obra extraordinária com ressaltos de loucura, um mundo em claro-escuro que só ele visionava para além do que nos é dado aperceber; e K. Maurício, que em certas noites irrompia, com o violino debaixo do braço, à frente de um bando de noctívagos, de sonhadores, de desgraçados, que arrastava quase sempre para os arredores desertos da cidade. Tenho-o ainda hoje diante de mim tal como o vi da última vez, com um velho penante e um casaco no fio, mas fosforescente como um visionário. Nunca o ouvi queixar-se. Suspeito que passou fome e passou frio — mas nunca ninguém, nem ele, deu por isso. Foi talvez feliz, foi decerto feliz esse homem que acabou com um tiro na cabeça, deixando-me os seus papéis — notas, projetos, um diário, um esboço de novela e certas páginas singulares. Matou-se por um fantasma.
K. Maurício, a quem conhecíamos pelo homem do violino, era de todos nós o que menos aparecia e talvez por isso mesmo o que mais me interessava. Falava pouco. Só eu conseguia arrancar algumas palavras a esse tipo que, tendo encontrado um dia o Sonho, passou a viver para o sonho. Desdenhou a vida pelo sonho, a mulher pelo sonho. Mais velho que todos nós e mais artista também, não era só a sua extraordinária música que nos atraía — era na verdade a sua figura, que o sonho parecia dia a dia consumir e devorar. Nos últimos tempos parecia mais uma sombra aureolada que um homem. Vivia numa trapeira, onde íamos bater de vez em quando. Debalde o chamávamos à realidade. Silêncio — ninguém respondia. Mas todos tínhamos a impressão que lá dentro ardia uma forja: pelas frinchas da porta saíam faúlhas, cintilas, dourado... Dias depois reaparecia, e a sua dor, o seu sonho traduzia-os em sons extraordinários, numa música que nos raspava os nervos até ao fundo da alma. Era uma criatura singular — posso eu dizê-lo que o conheci melhor que os outros, e que completei a figura pelos papéis que deixou. Dor e sonho — é o que sai das suas notas.
Sempre dor! A verdade é que a maior parte do sofrimento deste homem proveio de ter criado ao lado da vida outra vida imaginária. K. Maurício fez da existência — e isto é que constituiu a sua originalidade — um sonho. Fechou-se por dentro para sonhar — isolou-se para sonhar. E, quando um dia quis reentrar na vida, titubeava como um ébrio — com os olhos espantados: tudo eram ângulos e asperezas que o feriam.
Aos que se alimentam de sonho chega o momento em que não podem viver. A realidade não perde os seus direitos. Raia o dia em que se impõe por força e então o sonhador é colhido e triturado por a ter esquecido. E o ponto trágico em que reconhece com espanto que não pode viver — que não sabe viver, e procura a morte, não para se aniquilar, mas como quem busca um sonho maior, um sonho sem contrariedades e de que se possa à vontade fartar.
O drama de K. Maurício foi este — ter vivido tudo e nunca ter vivido; ter conhecido a vida através dos livros e não saber dar um passo na vida. Habituar-se a sonhar e ter medo de viver.
O sonho na verdade não tem contrariedades nem limites e a vida está cheia de asperezas. Por isso é bom e fácil sonhar. O pior é que quem se fartou de quimeras e de noites escarlates não pode habituar-se à existência banal; quem viveu com mulheres imaginárias não pode contentar-se com mulheres de viela. Muitas vezes o quis desviar desse caminho. E insistia:
— Mas afinal que sonho é esse em que falas?
— É para lá da vida, é a vida ideal. É talvez o céu. Em arte, é o livro que se entrevê e que gagueja, nunca atingindo o livro que imaginamos. É, em música, a aspereza em lugar dos sons e das vozes misteriosas que ouvimos em certas horas e que não podemos reproduzir.
— Mas explica-me...
— É uma labareda. É Hélia que só consigo ver quando a mereço, e que criei talvez noutro mundo. É o universo que os sonhadores acabarão por construir.
Por isso sofreu. Vejam o Diário. O seu sonho, por exemplo, é Hélia — a realidade é a mulher que se vende, que lhe fazia medo e o desvairava.
Porquê?... Como explicar a sensação de estrangulado que sentia ao pé dela, mãos geladas, o coração a galope? Eu compreendo... É tudo: a atmosfera da casa, que cheira a caldo requentado e a brutalidade, por onde cada um que passa deixa parte da sua força psíquica e do seu sonho — fios ténues, que ficaram suspensos das paredes, e nos envolvem, e quebram a energia. Certo é que em torno da gente se forma um ambiente feito de outras ideias e de sentimentos; dos nervos torcidos pela dor e pela paixão; uma atmosfera de resíduos, de abortos de pensamentos, de sensibilidade, se destaca e erra. Eis porque sentimos que alguém nos é repulsivo ou simpático e que certos sítios fazem sonhar. A questão está em que a rede dos nervos se sensibilize e sinta o ambiente que de cada ser se evola, formado pelas suas ideias e pela sua emoção...
Já viram que todas estas mulheres são mais ou menos doidas, de olhares espantados e uma linha que se quebra, ora ávidas como um velho seco e metálico de Balzac, ora perdulárias; viciosas e castas, com risos que de súbito desvairam? E que com elas toda a gente se desabotoa e da alma humana, esgoto de lama amassada em lágrimas, sabem o bastante para se sentirem apavoradas e enternecidas... Conhecem os velhos moles e viscosos, todas as repugnâncias e todas as perversões, e da humanidade deve formar-se-lhes no crânio uma ideia de pavor e de loucura.
Para K. Maurício era mais do que isto... Para ele cada criatura se faz acompanhar na vida por outro ser. Por outro ser invisível que no silêncio se torce de dor e que com os nossos actos podemos a todo o momento magoar. Para além das figuras de desgraça ele via outras figuras de dor...
Com esta imaginação e este feitio de encarar a vida, devia por força ser ele próprio quem cavasse a sua desgraça. A juventude dos outros espantava-o: a forma como os mais se abriam em risos, tão naturalmente como árvores se enchem de flores, deixava-o amargo. Perguntava-se: terá toda a gente esta mesma luta consigo, para se acostumar a viver?... E, no entanto, não era a vida em si que o torturava: era a desigualdade entre o mundo exterior e a quimérica imagem que na sua alma construíra... Tudo nele era contraditório. A vida, ainda que aziaga, lhe parecia uma ventura. A ideia da morte perseguia-o. Havia dias em que o ruído de uma folha caindo o sobressaltava, e desde os vinte anos que nunca mais pudera arredar a morte de ao pé de si.
Sensibilidade exasperada, fizera-se por imaginação um ser desgraçado, de quem todos deveriam rir. Tinha-se rancor por ser tímido e torto. Exagerava tudo, com a mania de acarvoar os mais miúdos pormenores da existência, e abria olhares espantados, se se sentia ferido pela vida, como quem acorda de um sonho para a realidade agressiva.
Há nos seus papéis uma parte que decerto se refere a essa época. Todas as folhas que deixou são encadeadas de pedaços amargos onde por vezes luz o ouro da quimera.
«Tive esta noite uma sensação de frio no coração: não havia cobertor que mo agasalhasse... Que vale viver? Ilusão morta, ilusão nascida, até que se vai para a cova, transido e ainda absorto o olhar!... Ponho-me a repassar sensações antigas pela minha alma de agora, e é sempre a mesma coisa, só com o tédio em lugar da candura... Da juventude ficou-me uma recordação amarga: correria de botas rotas atrás da ilusão. Quem foi que disse que era uma coisa que toda a gente sabia — viver? E por certo a mais dura aprendizagem, para quem tiver nervos e coração...»
Com que sorriso de piedade se desesperava por ter acreditado na arte e na virtude, quando só existe, hirto, o ouro. Aqueles que nascidos sem ilusão, ou que cedo a tinham arrancado, triunfaram, mercê da tenacidade: ele, que passara a juventude absorvido no Sonho, quando acordou, já tarde, viu-se velho, cambado e escarnecido. E só tinha sofrido...
«Porque é que me secaram?», pergunta num dos seus papéis: ilusão ainda, pelo menos por esse tempo. Desta forma procura enganar-se, iludir-se sempre, numa prosa bravia, quase em literatura o tipo que se talhara na vida: feitio de encolhido, gestos desajeitados, ar de quem não sabia onde meter as pernas nem as mãos enormes.
«Mentira!... É que nós todos não vivemos de máscara e não representamos como velhos atores? Quem há aí que seja a sós o mesmo que é cá fora e quem foi que em certas horas não representou até consigo mesmo? A Vida endurece e ai daqueles que persistem em sonhar; pobres dos que teimam em perseguir a quimera, sem quererem ver as duras pedras do caminho!»
O que há a fazer ao sonho é escondê-lo e recalcá-lo, para que nos deixem viver ignorados. Para que não o escarneçam. Para que os outros — os que não sonham — o não despedacem com uma alegria feroz. Sonhar é um crime. Há uma altura na vida em que é forçoso escolher — ou o sonho ou a vida prática. O grande golpe então é matar o sonho e adquirir o hábito das pequenas coisas. Há quem o estorcegue de repente a uma esquina; há quem leve mais tempo a liquidá-lo, misturando a vida prática com a vida quimérica, tentativa de que só resulta mais negro despeito. Creio que todos nascem com um quinhão de sonho, e que, mesmo nos que conseguem aniquilá-lo, há horas em que fixam o olhar num ponto doirado; e em que voltam a cabeça com saudade... Mas é tarde; a labareda está reduzida a cinzas... Talvez por isso mesmo odeiem secretamente os outros, os que sonham sempre, os que sonham até à velhice, com um ar extravagante de lunáticos, não dando a mínima importância às coisas da vida consideradas importantes. Pobres e ridículos sonham, e é esse o seu quinhão, melhor ou pior. Os homens práticos pouco a pouco caem no sorvedouro que os traga e leva como sombras inúteis, enquanto a caravana dos desgraçados lá segue o seu rumo à parte, de olhar extático, desprezada e secretamente invejada, sob os gritos de maldição.
K. Maurício só era feliz quando se refugiava no sonho, só era feliz quando se calafetava por dentro, construindo à sua vontade um mundo quimérico onde era rei ou palhaço. E isto chegou a ponto de tocar as raias da loucura... Na realidade eu detesto esta figura fora da existência — na realidade eu chego a invejar este tipo que se matou, embebido em sonho e à procura de um sonho maior. Diz-se que do túmulo do lúbrico Casanova sai ainda hoje uma mão de ferro que segura as raparigas pelas saias — ao contrário, este homem, de tal maneira se entranhou no mundo da Morte, que nem a trombeta do juízo final conseguirá jamais acordá-lo...
A sua vida, a sua alma, ele a estatela nas páginas esfarrapadas do livro que se segue e que deixou escrito. Entre a barafunda das notas destaca-se A Morte do Palhaço, romance incompleto, e quase autobiográfico: por isso lho publico, juntando-lhe o que nos seus papéis encontrei com título de Diário. Esta história de um palhaço sempre agarrado à sua quimera, não é afinal toda a sua história?...
Onde nestas páginas acaba a Vida e começa o Sonho? Nem ele mesmo o saberia dizer. Esse Diário, sobretudo, que me parece completar um livro curioso e com bruscos ressaltos de alucinado, surpreende-me e revolta-me. Mas ponho-me a pensar: Que importa que eu o não sinta? A mesma irritação com que leio estas páginas, não quer dizer que são verdadeiras?... Que dor é que ele esconde e se adivinha nos esgares da prosa raspada e de monólogo, e na ideia que sente escorregadia como um olhar de fruste? Tem gestos arrepelados na frase, com ímpetos de energia, e logo cai exausto.
Ele não sabia escrever! Não, ele não sabia escrever, juro-o, mas punha febre nos papéis, de um feitio tão áspero como a sua alma, e mesmo, se é curioso, é por esta mesma maneira feita de repelões: nunca pude deixar, ao lê-lo, de escutar o ruído abafado de um coração a bater...
Que amálgama de lama e de dor, ao mesmo tempo pícara e comovente, não sai para mim desta espécie de autobiografia! Há pedaços do Diário, folhas e folhas ingénuas, em que uma frase sentida fica, sugestiva e acuta, e de todas estas linhas uma fisionomia deve transparecer, de desgraçado, de quem afinal a gente não sabe se rir se chorar. Apenas corto algumas páginas. É que nunca se arrepiaram ao ter uma ideia, em que a gente foge de pensar e afoga apenas nascida?...
É no Diário que, com uma singular ferocidade, se conta. Por ele é fácil reconstituir a vida desse homem, de uma sensibilidade exasperada, que sofreu sobretudo pela imaginação. Nada literárias, mas vivas e humanas, as folhas do jornal dão-me a impressão de escutar um homem que fala só, que diz num monólogo entrecortado e áspero o que sofre. Muitas vezes me pergunto até onde é sincero. Nem ele mesmo decerto o sabia. Cada um que tome deste livro o que quiser... O que é verdade, porém, é que, como Beyle dizia de Julien — todos os dias era tempestade na sua alma.
Certo é que às vezes irrita-me, e outras comove-me. Há horas em que consegue ainda levar-me a rasto como outrora e em que frases suas ficam a vibrar no fundo da minha alma. A minha vontade então era pregar bem alto a alguns imaginativos que tomem a vida a sério, se não quiserem ser despedaçados como ele: — Não sonhem, vivam! Reparem que a existência atrás da quimera, sem querer ver as pedras do caminho, fê-lo morrer, depois de uma vida de casas de hóspedes, de vadiagem e de dor. A vida é dura, a vida não se fez para sonhar; para triunfar é necessário bater para os lados sem ver quem vem, agarrar-se a gente com sofreguidão, morder... Ai dos vencidos! Pobres dos que hesitam um instante! Auxiliar alguém é perder tempo: prá frente! prá frente!... Fora o sonho! Para que é que em pequenos nos mentem e nos dizem que há amigos e afeições?... Entra a gente na vida com ilusões, que só se perdem com pedaços de alma, quando muito melhor seria dizer-nos que há unicamente o dinheiro. Dinheiro! — esta palavra faz vibrar os mais moles: gadanhos convulsos estendem-se ávidos, os olhares ferem como lâminas... Para que andamos a mentir uns aos outros, quando nos sentimos todos, aos trinta anos, capazes de sacrificar um irmão ao interesse?...
Veem um imaginativo que entra na vida? E um jovem inteligente, tendo sobre a existência ideias lidas. A sua sensibilidade exaspera-se ao primeiro contacto com o mundo. Cheio de entusiasmo, talha uma vida de romance. Em breve, porém, encontra tropeços: a cada passo a alma se lhe magoa e todas as brutalidades o ferem. É que ele não viu que, ao lado da vida sonhada, é preciso viver uma outra vida dura, de todos os dias. Repugna? É necessário, porém, a gente afazer-se, esmagar toda a piedade e afeição, para não ser despedaçado. Quantos chegam a velhos a tal ponto vivem na mentira, acreditando que amaram, que souberam dedicar-se e que na vida se pode ser bom? Se procurarem bem no fundo da alma, esmiuçado cada um desses sentimentos, encontra-se apenas o egoísmo descarnado e duro...
K. Maurício estoirou a cabeça com um tiro de pistola, e era na verdade o que tinha a fazer de melhor. Trabalhar como? Trabalhar em quê? Ele que, aos vinte e sete anos, se sentia em imaginação capaz de tudo, mas que na verdade era incapaz, o miserável, de um esforço que não caísse logo num desânimo de dias. A mais leve contrariedade bastava para o desalentar.
Estou a vê-lo esguio e calado, com os olhos em brasa, o casaco no fio, o violino debaixo do braço e à sua volta todos os grotescos que levava de noite para as bandas do Sonho. Só para eles fazia vibrar até à dor o violino. E o seu poder era então extraordinário. Com o violino na mão, arrastava-os como um rebanho, para o sonho ou para o crime.
Corriam os arredores da cidade, as ravinas onde o luar escorre e um braço de árvore rompe a silvar de entre as pedras. Sobre as oliveiras de tronco carcomido, com um único galho e uma folhinha a nascer, caía um luar triste que as nuvens prestes sufocavam escurecendo o quadro — para quase logo o monte outra vez aparecer com a fuga das árvores de súbito estancada... Era nesse sítio deserto que gostava de tocar só para os desgraçados.
Sob a claridade vaga, a paisagem parecia criá-la a música, outra paisagem estranha, escalvado e soturno lugar de sabat: oliveiras torcidas e cinzentas, convulsos no ar os braços, despenhando-se pela vertente; à esquerda um calvário, três cruzes como três forcas no alto, em baixo a nódoa da planície, o borbulhar de multidão esparsa, que se imobilizara petrificada. Era um mundo de fantasmas o que enchia a noite... Os sons entranhavam-se na escuridão e faziam estremecer as sombras até que ele parava de tocar e o silêncio caía como a tampa de uma cova... Outra vez a música começava num gorgolejo, arrepiada de dor, vaga, dúbia claridade misturando-se ao luar entre nuvens, e perturbava-nos como um crepúsculo sobre águas mortas: pouco a pouco alastrava-se pela paisagem, sinfonia de almas a errar numa névoa lilás...
Na noite acarvoada, as névoas empastavam-se, com feixes macabros de luar, o vale a repercutir agora as risadas do violino, a Catedral de uma imobilidade acusadora no alto. E, esguio, K. Maurício evocava uma planície rasa, sem árvores, de uma única cor monótona, onde como um rebanho, nessa claridade de agonia, passavam, com olhares de desespero, os grotescos, os sonhadores e os doentes...
Ninguém bulia. Que quimera dolorosa, com espirros escarlates de sonho, lhes incendiava as almas, chuva de estrelas cadentes na noite negra e funda! Cada um se punha para o seu lado a sonhar e aquilo quase os aureolava, aos pobres, todos eles grotescos, doentes e tímidos! Cada um se agasalhava com a púrpura daquela quimera, e puxava a si, dedos afiados e sequiosos de gozo, os restos enlameados do seu próprio sonho. Era um bando que se sumia no negrume e a que o negrume dava relevo e mistério — o bando de espectros que o seguiam como sombras.
A música do homem do violino corria com o luar e dizia-lhes tudo o que eles não sabiam exprimir: o mal da vida, a dor inquieta que por vezes, sem causa, lhes premia o coração, o que era a morte, a ambição e o amor. O espectro de uma oliveira torcia-se, esvaída da dor que o violino espalhava. E encolhidos, de olhares extáticos e arrepios de febre, punham-se a pensar: Que mal excecional é este de viver? E porque é que tanta criatura que sofre crava as unhas desesperadas na vida, sem a querer largar?...
Porquê esta ânsia de querer viver a vida dura e egoísta ou, o que é pior, aborrecida? Os dias seguem-se aos dias, o sol não aquece, os amigos têm sempre a mesma cara e a mesma afeição, que afinal irrita e desespera. Cuidado, porém, em não a experimentar, se a gente quer ter ainda ilusões na alma! Todas as manhãs se acorda com um pedaço maior de secura e esta pergunta: Para quê? Para que vivo? Para que nasce o sol, a água corre e as árvores continuam a ter flores a cada primavera que chega? Parece que já se assistiu a tudo, depois de a gente ter visto como todas as coisas são incompletas e diferentes do ideal que talhamos. Se tudo se sonhou, como não achar tudo pequeno e não ter em frente das sensações de perigo ou de prazer ou — era só isto? — de espanto, que sobre cada uma repetimos — únicas palavras que o tédio sabe dizer, depois da imaginação ter falado. A mesma coisa sempre, as mesmas caras, as mesmas emoções, as mesmas ideias remoídas, e também a mesma raivosa aspiração de ideal, a luta entre a lama e a alma, a sofreguidão inapaziguada de sonhar.
A vida é boa quando de todo se perdeu e se tem pena de não se ter vivido, como a água de um rio, depois de haver chegado ao mar, chora por não apanhar mais sol e banhar mais raízes de árvores. Custa a perdê-la, porque se tem sempre a esperança de se encontrar um lugar, um momento, em que se construa a quimera; custa a perdê-la, pelo que está fora dela — o Sonho. Como um tronco que arde e se extingue, tem-se pena de não se deitar mais labareda e de se não ser ainda brasido; por tudo o que se não realizou, por tudo o que se deixou fugir. Quando se morre, o que se debate ainda dentro de nós com fúria — é a quimera. O que me custa a deixar não é o corpo, é a alma inquieta. Com a morte agarrada a mim, porque é que cravo as unhas na vida, raivosamente? Porque quero sonhar, tirar das coisas, das árvores, da luz, das flores, materiais para ilusões. Ao que cada um se prende é às suas aspirações, às suas penas e não à matéria e ao corpo!...
Morrer é não sentir, não ver, não ouvir, e o que custa, não é perder tudo isto sempre igual, sempre a mesma coisa, deixar as pedras com que arquitetamos para além. Vede: a vida aborrece, mas cada um guarda no seu íntimo a secreta esperança de realizar não sei o quê... Muitas vezes nem se sabe... E se a ilusão cai por terra, morta e inerte, fica sempre a aspiração de sonhar, a raiva de tecer mais doirado...
As mesmas ações, as mesmas cores, direis vós... Cá fora é certo, mas dentro o cenário muda: o cenário está em brasa. Queres ser rei? Queres vingar-te?... Sonha!
Singular ligação a destes tipos que o acaso reunia naquela casa de hóspedes da D. Felicidade: um doido, um anarquista, o Pita, a patroa, o Gregório, antigo chefe de repartição, que havia anos estava encarangado num quarto, uma velha que só saía de noite, e essa figura amarga, o Palhaço, que passava horas como se só a si próprio se escutasse. Todos tinham chegado ao fim da vida, de unhas arrepeladas para o gozo, com o aspeto das coisas servidas que se deitam fora. Usados pela existência, pela ambição e pela febre, arregalavam os olhos para a vida. Neles havia o que quer que era que inquietava e fazia pensar. Em vez de ficarem de uma secura atroz, tendo analisado de perto todos os sentimentos, o amor e a amizade, a experiência dera-lhes tintas de sonho ao desespero: e era como se um bicho de esgoto criasse asas e se pusesse a voar. O Doido sonhava — e todas as suas visões vagas caminhavam numa atmosfera de beleza, para de súbito, num pormenor, ficarem grotescas, aos pulos como um sapo. O Anarquista tinha gestos de profeta, e na sua eloquência havia rasgos de visionário: como um vendaval que arrombava portas, assim ela entrava pelo sonho dentro, engrandecida. Evocava as multidões, a miséria humana, a dor humana. O Pita era um misto de filósofo e de ladrão. Sabia tudo, vendia tudo. Amara princesas e trazia um velho xaile-manta, que de tanto ter visto a miséria parecia arrepiado. A Velha passava o dia a contar as rugas diante do espelho, na raiva de se sentir escarnecida. Meditava quanto tempo podia amar ainda, enganava-se e convencia-se de que não estava velha nem feia. Punha flores no seio estancado e raso como uma tábua e arrepiava os cabelos. À noite saía, rodava nos sítios escuros à espera de uma aventura de amor, ou, desvairada, ia pelas ruas da cidade, a arrastar um xaile púrpura.
O Pita às vezes seguia-a e espiava-a, com o olho cheio de curiosidade, ruminando lá por dentro:
— Encontro-as às vezes nas ruas, caiadas aos sessenta anos e sonhando ainda com a juventude. E são as que se atrevem, as que se expõem aos riscos, porque muitas como esta arrastam pelas casas de hóspedes o seu sonho inapaziguado de amor... Fá-la tímida e má o ter de viver duas vidas, uma de imaginação, outra de realidade. Por isso tem o olhar desvairado para dentro, de quem segue um sonho e anda neste mundo por acaso. Esta cidade trágica fez-lhe um cenário perfeito, com a noite em que a escumalha vem à tona, as ruas esganadas e o vício... atrever-se-á ela? Duvido... Viver é tudo!... Viver!...
Se todos estes seres se juntavam e conversavam, as suas palavras ardiam ou gelavam: causavam arrepios, como lâminas que de repente se desembainham e ficam no ar suspensas: eram feitas de cadáveres ou de claridades... Umas vezes pendiam para o sonho; outras para a terra.
Vocês todos têm pensado na vida destas criaturas? Desde a juventude que não tiveram risos. Depois o pequeno emprego, nunca o gozo satisfeito, a imaginação e o apetite sempre alerta. As mulheres! Ainda um dia hei de ter aquela mulher, quando tiver dinheiro!... Nunca satisfizeram o seu amor e o seu desejo. Aturaram as insolências dos patrões e o desprezo do Metal. Nunca tiveram na vida ocasião para praticar um crime que lhes desse o ouro ou o poder. Correram casas de hóspedes a ruminar ideias de ambição ou de ódio, e essas mesmas diluídas e derrancadas... São sórdidos, têm pequenas manias e inéditos recantos de alma, e nunca, como os pobres cavadores, viveram o contacto da natureza, das grandes árvores, da água e da luz.
Acontecia que à mesa, depois do jantar, na obscuridade que o Pita amava, ficavam de conversa. A princípio o Palhaço não falava... Quase sempre fugia para o quarto. Mas de uma vez, que se falara de amor, escutara e discutira — daí ficaram com o hábito de se exasperarem com conversas, que o Pita tingia de sonho...
O Pita era um homem de barba hirsuta e olhar vivo nas órbitas fundas e sem pálpebras. Unhas, roera-as todas. Tinha a ciência da vida, visto que andara sempre aos pontapés de toda a gente e se dava com a ralé. Vivia à custa de mulheres, e como de uma vez lhe perguntassem como arranjava ele, dono de semelhante caveira, que as mulheres o amassem, disse com desprezo:
— A mulher é uma esfinge.
Nessa noite o Anarquista lia uma proclamação para abrir o seu jornal A Miséria. Com o manuscrito na mão, o olhar incendiado, perguntou:
— Pita, que lhe parece?...
E ele, seco, respondeu:
— Muita filosofia...
— Mas que diabo, Pita! Você sabe que estimo a sua sabedoria... Diga a sua opinião sincera...
Todos se absorvem no Pita, que passou a mão pela bola de bilhar que usa em vez de cabeça e a seguir falou:
— Não está mau de todo... Muito palavreado... Fale na terra e fale na miséria... Sabe que em Setúbal, nos arrozais, para ganhar apenas o pão negro, mulheres trabalham na água como bestas, até se cortarem pelas virilhas? Sabe que há pequenas de oito anos que se chegam à sua beira com um ar de vício e têm esta frase trágica: — Eu faço tudo!...
Muito decorativo, citou o vício, que, apenas noite, corre como um esguicho de lama pelos recantos negros da cidade. É a fome?... É, disse ele. E além disto os burgueses estão dando à ralé, cheia de apetites e quimeras, um espetáculo desaforado...
— Oh Pita!...
— Desaforado... Cite factos, encha-me esse papel de factos e bote então se quiser a filosofia de fora. O palavreado não é mau, mas é porque os pobres conhecem melhor a miséria e o crime que um desgraçado me falava uma noite em fazer saltar tudo...
— A miséria e o crime — disse o Doido — são velhos como a terra... Você tem visto tudo e tem sido tudo: já foi rico e já viveu de arranjar mulheres para os outros... Mas escute: a questão é mais funda... Suponha que sobre esta mesa está a palpitar o Coração Humano... Há coisas eternas. O que fez crescer o anarquismo, como uma raivosa maré de lama — é esta coisa simples: o ódio aos ricos e a inveja... Você, eu, todos os que aqui estamos juntos, o que daríamos para ter o ouro, o ouro com que se pagam as mulheres mais lindas, as quiméricas mulheres todas feitas para o gozo, e sobre cujo olhar negro a gente se debruça como sobre um passado lendário; o ouro com que se tem o amor e se deitam a perder os nossos inimigos?... Eu, vocês todos, temos feito de há muito este raciocínio: a vida dura dez, vinte anos, depois segue-se...
— A cova...
— O nada. Portanto vale a pena gozar de todo o nosso cérebro e de todos os nossos nervos. Deixar o coração bater o mais que puder, satisfazer a valer todas as paixões... Só o ouro é que dá isso e ninguém recuará diante de um crime, certo da impunidade, para o obter.
— Às vezes corre-se-lhe o risco...
— Outrora esta vida era transitória... Quanto mais se sofria, mais duro era o pão e a dor mais negra, maior também na vida eterna era a felicidade. O ódio contra os ricos, os que gozam enquanto as mais criaturas sofrem, existia, mas havia a certeza que iam para o inferno. Pagavam caro os beijos, a felicidade, o sonho... Agora a ilusão caiu por terra, a vida é sôfrega e a maré dos que estão ávidos de gozo sobe...
E o Pita resmungou, com o olho a luzir:
— Vai ser um rico saquezinho...
— Com mulheres violadas, sangue, apetites desenfreados, vaias contra a arte e o belo...
— É o ouro, é o ouro que tudo pode e tudo faz!... O ouro que era ainda capaz de fazer levantar da cama o próprio Gregório!
E a dona Felicidade, que levantava os pratos, deu um suspiro tão fundo como se nela suspirassem todas as Donas Felicidades, desde a Dona Felicidade das cavernas até à Dona Felicidade contemporânea.
Pita, a essa hora da noite, tinha espirros de génio pela caveira, numa excitação contra a vida e contra a dor. Pelo começo da noite é que Pita começava a ser amargo, com um grande desprezo pela sociedade. Pita também a essa hora estava algo na mentira: embebedava-se com as decorações sobre a miséria e sobre o coração humano, e a fantasia fazia-o perder-se, fazer grande, como um pintor que na febre atirasse broxadas de génio para a tela. Pita parecia uma evocação de Poe. Pita sentia, depois da bebida, o frio dos desgraçados, a febre dos noctâmbulos: sabia a enxurro: e tinha na fantasia toda a púrpura e toda a lama que as borboletas têm nas asas, e que ele apanhara ao roçar-se pelas sargetas imundas da cidade:
— E aqui tem o amigo... O raciocínio é um vício com o qual se chega a tudo — até a ministro... Teoria vai, teoria vem — palavras leva-as o vento... A verdade amarga e única é esta: é que na vida é preciso sonhar, para não se morrer transido, tantos são os pontapés que a gente leva na alma e noutra parte. Ou então tem a gente a necessidade de se endurecer e de pôr o coração como uma pedra.
— Pita!...
— Como um calhau... Vá a um sítio aonde se sofra — ao hospital. Tenho-o em frente da minha mansarda, o luzeiro sempre a arder nas janelas. O que está aquela pobre gente toda a noite a tecer?... Aquele estupor de alambique de sofrimento toda a noite resfolga...
— De quê!...
— De alambique — disse, seco. — É uma imagem... E há coisas que se não curam, que é o que me revolta... Deixe-os sonhar... O sonho é tão necessário prá vida como o pão.
— Eu, para o meu uso, até os tenho inventado para certas horas de sofrimento — e quantas noites passo a imaginar ser rei ou ser carrasco!...
— Atire-se-lhes com um pedaço de sonho, como se fosse um pedaço de pão!...
— O pior, Pita amigo, é que o sonho desvaira-os...
— Pois a questão essencialmente reduz-se a isto: pertence aos homens de Estado saber canalizar o sonho da ralé, e desde que hoje ele se não pode aproveitar nem para fazer conquistas, nem para fazer heróis — todo o esforço deve tender a conservá-lo como lume sob cinzas, inofensivo e latente. Destruí-lo, arrancá-lo, é uma tolice, pois que outro virá — creia na minha experiência da vida — substituí-lo, e quem sabe se mais perigoso!...
Caiu em meditação o Pita. Oito horas da noite e a calva incendiada por entre o pêlo sem cor. Nunca mais o puderam levar a falar sobre o mesmo assunto. Tinha um grande desprezo por esta porcaria de vida e fugia agora para o pequename, a tromba a bamboar-se-lhe sobre a boca, numa festa. Tirou da algibeira uma boquilha de âmbar com uma mulher em pelota e um prospeto da casa John & Fixley, London — Segurança e Método, preços módicos. Assassínio de todas as sogras com o maior respeito e sem intervenção da polícia.
— Pita, estás aqui estás na Penitenciária. Vê no que te metes, Pita!...
E ele, descendo as escadas, com júbilo na voz rouca:
— Vou-me até ao pequename. A vida é uma quimera!...
O Pita sabia tudo: conhecia os segredos de todas as famílias e os vícios de todas as mulheres: em cada noite seria capaz de dizer quem estava para meter uma bala nos miolos, falido e desonrado, e quem adormecia no colo de nuvem da mais linda mulher da cidade. As suas conversas faziam frio: tinham dentro pesadelos e lama. Fora amigo íntimo de um banqueiro, jornalista assalariado para cobrir de infâmias os inimigos do outro. Tinha tido dias em que fora rico e pagara todas as suas fantasias — e noites em que tremera de frio à porta dos cafés, com a lista e preços das criaturas que se vendem.
Das suas conversas com ele, o Palhaço saía sempre com a cabeça cheia de fantasia e com um sabor amargo à vida — lama negra, onde vestígios, espirros de ouro, tivessem sido esquecidos. A sua experiência do mal de viver dava-lhe, à fantasia rútila, recantos cheios de inédito e de amargura, e era como se a sua alma fosse sacudida diante dele de toda a poalha negra ou escarlate que a existência lhe deixara... Depois do circo passeavam juntos até às primeiras tintas de alvorada. Àquela hora só noctâmbulos esguios se quedavam pelas esquinas, figuras que, ao pé dos restos de cartazes púrpura, de grandes letras, faziam destaque e evocavam, perto da pompa e da grandeza, a miséria da cidade...
Depois da conversa com o Pita, o cérebro em lume, ia pelo bairro pobre e desdentado, procurando ver materializado o rasto de que ele lhe falara, como um manto que cada um arrastasse, invisível e tecido a ideias e a sofrimentos...
— Pois quê!... — lhe dissera o Pita — Donde provém que as feiticeiras leiam no passado do homem?... Nada se perde, cada um traz consigo, cometa que arrasta a cauda de lama ou de ouro, todo o seu passado, vestígios de ideias, crimes, horas de amargura e horas em que se beijaram lábios de mulher, por quem a gente se perde... Creia na minha experiência da vida!...
— E para ver?... Para ver esse rasto que cada um traz consigo a nimbá-lo, luaroso e ferido de lágrimas?... Serás tu, Pita amigo, o Diabo, e queres em troca a minha alma?...
— Não, não sou, com pena o digo, o Diabo... Quem me dera ser o Diabo, para ser jovem, ter todo o ouro e todas as lindas mulheres da terra! Aí o pequename de seios duros e lácteos de estátua! O ouro que dá o poder, a consideração pública, os sorrisos de lábios de papoila das raparigas e a riqueza dos brancos!... Não sou o Diabo!
E, apontando com o seu dedo nodoso e descarnado para a cidade, disse:
— Vai sofrer, espremer da Vida a experiência. Deixa que te calquem o coração, assiste ao despedaçar do teu sonho, à tua humilhação, e depois saberás...
Tomado de respeito por tanto saber, com humildade se despediu:
— Muito boas noites, senhor Pita!... Então não toma mais nada?...
— Não tomo. Podes-te ir embora. Boa noite...
Com a cabeça a escaldar, parecia-lhe agora ver realmente o que Pita lhe afiançara existir... Cada criatura que passava arrastava consigo uma cauda — poalha luminosa de ouro ou cinza, feita de luar ou de escarlate. Lentamente pôde distingui-los, classificá-los, conforme o manto régio ou pobre que traziam. E na noite havia-os que deixavam um grande rasto rútilo, como estrelas cadentes, onde gemiam ais de mágoa, prolongados como um som de viola que se parte. Míseros, ressequidos e sacudidos pela dor, traziam uma cauda cor de cinza, com chuveiros de miríades de centelhas de lágrimas, e a poetas nimbava-os uma poalha de luar e de ouro. Velhas ardidas eram envolvidas por uma atmosfera baça, onde o imortal amor ainda luzia. E alguns deixavam atrás de si restos de mantos todos púrpuras, que se iam perder na lama e no esquecimento; outros, criminosos decerto, caminhavam numa nuvem negra, onde pedaços sangrentos escorriam como punhaladas, e havia-os todos verdes, de cambiantes infinitos. Muitos arrastavam caudas enormes pela lama, despedaçavam-nas de encontro às esquinas, e alguns procuravam deitá-las fora para não mais pensarem num passado tenebroso.
— O homem material — pensava o Palhaço — não existe. A vida é uma convenção. O que existe é sonho, o sonho é a única realidade. Sonhar! Sonhar!...
Da existência ficara-lhe o olhar desvairado, p'ra dentro, de quem segue na alma um sonho e anda na vida por acaso; o olhar daqueles em quem a vida interior é enorme e que ficam surpreendidos quando a dor lhes diz que o mundo existe. Só gostava de viver à noite. Tudo o que de dia é anguloso e duro, logo que escurece se dilui, e a meia- tinta acarvoa a casaria lôbrega e tortuosa. Os becos que surgem como sargetas rasgadas para o interior dos bairros viciosos, as covas das escadas, cheias de mistério, os tipos que só a essa hora aparecem, rentes às muralhas, envoltos na sombra, a esconder vícios e lágrimas, davam-lhe, nas noites febris, a sensação de um galope através de um sonho.
As paredes não eram diques à sua perceção, que ia até ao fundo das casas buscar os que sofrem e até ao fundo das almas tirar, para a luz, a miséria e o vício. Em tropel passavam, por dentro do seu crânio, imagens mordidas de delírio, as velhas sequiosas de amor, que, com dedos descarnados, agatanham para si restos de juventude, a maré dos grotescos, os impotentes, os que não têm a piedade de ninguém, atirados para a vida e calcados pela vida, e os ambiciosos, que caminham rentes às paredes, de unhas cravadas na sua quimera, botas rotas, pés frios e feridos, e o cérebro em brasa...
E assim as casas, as paredes e as coisas, de ouvir tanto grito, de se sentirem palpadas por mãos febris, tomavam naquelas noites formas de delírio e tinham vozes de tédio, de dor ou de ferocidade. Era um murmúrio indefinido, um ambiente nervoso, que a sua sensibilidade recolhia e traduzia em sonho. Já no seu covil tinha tido a mesma sensação a primeira vez que ali dormira. Pusera-se a pensar, o coração premido e vontade de chorar como se uma parte do seu ser tivesse sido aniquilada ou uma escarlate quimera fosse para sempre perdida: Quantos desgraçados, de tanto sonhar, puseram em brasa estas paredes negras? Quantas ambições aqui nascidas não foram despedaçadas e aí estão mortas pelos cantos?... Estes muros, que estremeceram com a dor ou se aqueceram com o sonho de outros, não serão para mim agressivos, por ser muito diferente o quimérico ideal que construo?...
Vivia num ambiente falso e fora da realidade. De tanto sonhar não podia senão sonhar. Às vezes exclamava de si para si, quando saía por acaso da atmosfera em que vivia submerso: — Valeu a pena? Valeu a pena? Estou cansado, exasperado, depois de uma velhice de fome e de misérias, com longas horas de ódio e olhares hipnóticos sobre a felicidade dos outros. A juventude sobretudo fere-me. Eu nunca fui jovem, nem nunca fui amado, e que fingidos risos de indiferença, que me fazem doer as faces, tenho pelo que chamo banalidades — saúde, amores, ter vida! Com risos curvaria o meu bico sobre as desgraças dos infames que têm vinte anos. Eu nunca os tive: fui sempre banal como um velho cartaz de esquina. Há dias em que me deito na cama e não tenho vontade de me levantar. Olho em roda. Toda a vida me parece aborrecida e vazia. E aflige-me não ter sido jovem, não ter vivido como os outros e insulto a minha quimera que me parecia de ouro, por quem me esgotei, para afinal a encontrar gelada... — Juntem todas as saburras que aturara para viver. Representara pela província, fora pateado, e dessa existência errante, de acaso, fizera também sonho amargo... Até chegar a ser Palhaço, quantas profissões! Actor, cocheiro de praça e mendigo. Da existência de noctâmbulo ficara-lhe um morcego a esvoaçar-lhe no crânio. Por fim, veio trabalhar para o circo. Só saía de noite. De dia ficava no covil do 4° andar, ruminando pedaços de sonho gastos e esquecidos.
Um grito, um grito na noite, um grito fundo que me interessa como se fosse eu próprio que gritasse...
Esta noite encontrei-o enforcado numa oliveira, num arredor da cidade. O luar escorria sobre a ravina, e naquele sítio desolado, triste e inquietante, ele era cómico, pendurado na árvore, mais esguio, a calva a luzir-lhe como uma hóstia, mole, repugnante e coçado. Diário? Nem este velho bêbado teve nunca diário! Foi decerto para se dar ares de incompreendido que deixou estas folhas ao pé da árvore. Como se a sua miséria fosse diferente das outras misérias! Escorraçado e azedo, perseguiam-no como um lobo, até que o fizeram andar com fome e morrer como merecia...
Eu nunca conheci um homem mais pitoresco do que este canalha! Nunca também, como diante deste trapo de enforcado, compreendi melhor a minha alma... Estou seco, sem emoções, e cheio de raiva. Eu ainda venho a endoidecer. Não tenham pena de mim. Esta maneira que tenho de escrever a golpes, inquieta-me até. E há quem escreva tão bem!... Muita gente anda iludida sobre a minha alma. Eu rio-me... Mas vamos lá a contar a história do velho clown Halwain.
Muitas vezes me contou com redondos olhares de inveja as suas noites no Circo... (Decididamente eu hoje não posso fingir e escrever como das outras vezes. Muito me hei de eu rir, quando eles lerem a história da minha alma!...) Na claridade branca dos refletores, ele fez intermédios que faziam mal: quis ter génio à força, e as suas farsas afinal, longo e rapado, incomodavam como um remorso. Lembrava misérias, deboches a uivarem com fome, e era lamentável e triste como uma tumba. De chapéu alto e casaca enorme, rígido e longo, parecia um cadáver fugido ao cemitério. Pouco a pouco empregaram-no em serviços ridículos: era ele quem levava pontapés dos outros palhaços, e, como ninguém lhe dava palmas, tiveram de o pôr na rua, porque metia medo...
Começou então a sua vida de miséria. Com um usado tapete, um fato de mascarada e uma cabeleira de três pontas, foi de rua em rua a pedir esmola e a clownear. Foi assim que eu o conheci, e só eu com ferocidade me ria, não das suas farsas, mas da sua alma e da sua desgraça — para ter que me rir de alguém, para me vingar nele da minha nulidade — e para me rir de mim!... (Eu hoje escrevo muito mal, tenho nos ouvidos sempre esta zoeira, e não me larga a ideia de que endoideço...)
Velho, com fome, enquanto outros na claridade dos circos eram aplaudidos! Que raiva de morte! Ainda se se tem consciência de ter génio!... Mas assim: com a certeza da nulidade, da miséria, da velhice, quando há alguém que triunfa e que é belo!... E ver-se a gente, por dentro, odiento, mesquinho, impotente, tenho a certeza de que os outros são indiferentes ou, o que é pior, bem pior — o que dá vontade de assassinar — o saber-se que os outros dizem: coitado!
Coitado de quê! Tivesse eu energia para o assassinar, dizendo-lhe: tenho mais vida, vês, tenho mais génio do que tu!... Eu não quero amigos! Eu não preciso de amigos para nada! Eu agora vou-me rir de tudo o que não posso fazer, ouves?...
Esse homem levou anos a imaginar-se aplaudido pelas multidões. A sua arte seria uma arte diferente da dos outros, a escorrer sangue. E desconhecido, sonhava sempre, cada vez mais aplaudido — e cada vez mais ignorado. E os anos passaram sobre aquele sonho inútil.
Começaram a cavar-se-lhe rugas da inveja, aos cantos da boca. Habituou-se a tudo: a pontapés, a dizer bem dos que odiava, para que eles consentissem que tivesse algum talento, a ter sempre um riso nos lábios espremidos, a passar horas mortais ouvindo dizer bem dos outros... E nem uma mulher em quem bater? Nem uma pobre alma miserável que fizesse sofrer para se consolar. Ninguém para torturar, ninguém!...
(Eu hoje estou doente. Nunca escrevi pior. Esta história não ficava mal com descritivo e a análise dessa velha alma, coçada e cheia de ódios miúdos, através de uma cidade lôbrega e comida pela Peste e pelo Vício — a análise da minha própria alma... Mas não posso mais. Sinto que daqui a duas horas estou doido. Antes porém quero dizer-lhes uma coisa: acreditem que tinha algum talento. Fui sempre um desgraçado, sem felicidade e sem paz. E os outros são felizes... E também não me importo de o dizer, porque já não me podem fazer mal: — Fui eu que o matei. Enforquei-o por maldade, para me ver livre dele, que me afligia e valia muito mais do que eu — o meu miserável companheiro!...)
Foi então que o Pita, que andava sempre a meter o nariz nos papéis dos hóspedes da D. Felicidade, disse de si para si: «Estás pronto!...»
Rompeu a sinfonia, numa música estranha, com notas que pareciam sedas rasgadas, uivos dolorosos, e esgares de alegria transformados em gritos... A multidão, em volta da arena enfarinhada, tinha enlouquecido — mar de cabeças a ferver; — e o gás assobiava em leques e borboletas de fogo, na púrpura do circo, onde as colunatas brancas e finas subiam, sustentando por milagre a abóbada do teto.
Logo ao primeiro compasso as mulheres, vestidas de escarlate, loiras e fardées, tomaram um e outro lado da rampa, e dois criados, de casaca e laço branco, pentearam a arena.
Um sussurro... Arabela e Siwit, leves, de um único salto gracioso, vestidos de gaze clara e transparente, com flores a sangrar, saltaram sobre o cavalo todo negro, escumante, aos corcovões de fúria: logo ela, de um pulo, apareceu de pé sobre a sela, na gracilidade e no triunfo da sua beleza fina e graciosa. Arrancou o cavalo na carreira em volta da arena, a cabeça em onda, o focinho negro quase a tocar-lhe as pernas, babado e raivoso. Apanhou-o Siwit e enlaçou Arabela, erguendo-a, segurando-a nos braços, sem o mínimo esforço, como quem ergue uma pluma. A música, em golfadas luminosas, subia para se apagar como uma fonte que se estanca. As palmas, marteladas, estrugiram quando caíram aniquilados sobre a sela... A música ia então a passo, vagarosa, e um vento fresco entrou no circo, trazendo da caixa o cheiro a cavalariça, a suor e a pele orvalhada de mulher...
A esse tempo o Palhaço, tendo acabado de riscar a boca de vermelhão e de empoar toda a calva, luzidia como uma bola de bilhar, espreitou de cima, do corrimão. O circo visto do alto, batido da claridade, parecia mover-se, rodopiar, afundar-se, com a maré de cabeças a ferver e o galope do cavalo, que recomeçara com a música.
Odília, postos os arames no momento de descanso, apareceu, branca sob a luz dos refletores, vestida de cetim branco, e até os cabelos, que usava empoados, pareciam cortados numa pétala de flor. Somente, a fazer destaque em todo esse poema branco, o guarda-sol, que lhe servia de maromba, era inteiramente negro, com grandes flores púrpuras. A fanfarra tocava não sei que música, fugidia e extática por vezes. E os refletores brancos batiam-na, diluindo-a em branco, enxurrando branco e leite sobre aquela figurinha pálida como as mortas. Avançou no arame, a passos curtos e leves de ave, movendo sobre a cabeça a nódoa nanquim do pára-sol, onde flores esvoaçavam num enxame.
Apenas Odília terminou, uma avalanche de palhaços veio entre risadas, gritos estrídulos e berros, até ao meio da arena — bando de caricaturas loucas no frenesi dos gestos, nos esgares das bocas: uns de cetim todo negro, outros de cetim escarlate ou verde, calvos e ossudos, dançaram uma farândola de epilepsia, para soltarem de repente as mãos, caindo em baques pícaros e aos rugidos. De repente imobilizaram-se, bateram os dentes, com bocas rasgadas até às orelhas, só bocas, numa expressão de terror cómico.
Não sei que aflitiva tristeza correu por todo o circo, agora petrificado, quando os criados cobriram de veludo um estrado de madeira. Em torno, todos os clowns se sentaram em silêncio. Uma mulher desceu a rampa, com um triste, um cansado sorriso à flor dos lábios. Serena subiu para o meio do sangue estagnado do estrado, e parecia uma flor atirada para uma mesa de autópsia. Os palhaços calvos e hirtos, de olhares fixos, batiam os dentes de medo, e ela sempre com o mesmo sorriso resignado contorcionou- se como um aranhiço, sorrindo sempre... Até que no meio dos palhaços, que fugiram de roldão, foi arrebatada como uma castelã roubada por mendigos, numa noite de pesadelo e de loucura...
E a música recomeçou o galope — e os cavalos escavaram a arena, montados por mulheres e homens do circo. Que velha, que encantadora alegoria, representava aquela perseguição, à roda, sempre à roda, em que as raparigas defendiam flores escondidas nos seios, que os homens procuravam roubar-lhes com beijos?...
Visto de cima donde o Palhaço se instalara, o circo retomava o seu aspeto de delírio, de redemoinho afunilado onde apenas cabeças sobrenadavam e braços faziam gestos de desespero. Ao fundo a galopada dos cavalos acelerava-se, à roda, sempre à roda, negros e em pêlo...
O último bravo lançado, o tinir da rede acabada de estender, e os voadores com sorrisos postiços, ele vestido de branco, moreno e forte, ela, frágil e loira, toda vestida de negro, treparam pela corda, marinharam até ao alto e, sentados cada um no seu trapézio, sorriram. A música aniquilara-se, tomada de espanto, e a multidão erguia a cabeça ansiosa. Siwit suspendeu-se no trapézio, seguro pela curva das pernas, os braços estendidos, esperando Arabela, que rasgou o silêncio com um grito e, lançada pelo ar, o cabelo a esvoaçar, toda ela envolta em poeira luminosa, com reflexos de ouro, veio cair- lhe, com um solavanco, nas mãos arrepeladas.
Era agora a sua vez. Desceu as escadas, apegando-se ao corrimão, atravessou o corredor, entrevendo nos camarins, pedaços de estofos, cartazes, pinceladas, notas escarlates, leques de gás, uivos vermelhos de tecidos, cabeças enfarinhadas, bocas rasgadas, colos, músculos de pernas...
A vida misteriosa e errante dera-lhe aspetos e linhas que tudo sabiam exprimir: canduras e vícios, a lama, as perversões mais ignóbeis das cidades e o olhar terno das virgens... Tinha tiques, olhares em gume, simples gestos, que bastavam para sugerir desgraças, mágoas, miséria e tudo o que fere as almas sensíveis. Dir-se-ia que vivera tudo e tudo conhecera: já fora cocheiro, mendigo e diretor de bancos poderosos, poeta e príncipe, bandido na Calábria, e porventura amado por uma linda mulher, que de paixão se finara. Cá fora, finda a noite de circo, emudecia numa tristeza abandonada, e absorto dobrava-se à beira da sua alma, como na margem de um lago... Apenas, porém, entrava na arena, enorme, esquelético, calvo e vestido de púrpura — assim tivesse atravessado um rio de sangue ou a vida — logo a sua figura se transformava, e nunca palhaço soube exprimir como ele o lado grotesco da desgraça e a amargura do riso. Ia à morte e desconjuntava-a: entortava-lhe as pernas, punha-lhe a foice à banda e descobria- lhe a calva. Dir-se-ia que o seu riso era feito da experiência da vida e que esse palhaço estranho fora construído com a lama de todos os vícios e com as lágrimas de todas as amarguras...
Era indiferente à multidão. Parecia que para ele só representava as farsas cínicas, sempre a mesma maneira de interpretar a vida que fazia frio. Lembrava um pícaro cadáver, anguloso e torto, que viesse fazer escárnio da cova. Às vezes a multidão enregelada pateava-o com fúria — e ele nem reparava. Depois sublinhava, tinha tiques que nunca mais esqueciam — e forçoso era que conhecesse tudo e tudo desprezasse, para assim tirar da Vida e da Dor, da Morte e do Amor, motivos de escárnio, de afinal o público não saber se rir se chorar.
Quando entrou na arena ainda Odília trabalhava no trapézio. Era uma figura de doença a desconjuntar-se, vestida de gaze verde, na cúpula do circo. Sorria. A cada momento parava, oferecia-se, agradecia com beijos atirados à multidão indiferente, ávida de perigos e de sensações fortes. Desceu a corda, saiu, com o mesmo resignado sorriso na boca, como uma pobre criatura que se despede...
Que se sabia da vida do Palhaço? Apenas terminado o trabalho, desaparecia, e toda a noite ou todo o dia o passava no covil da casa de hóspedes, a tecer ideias e a sonhar... O bico aguçara-se-lhe, mais salientes as maxilas, mais funda a ruga que lhe cortava a face, e duas ou três mechas de cabelo no crânio — máscara picara e sinistra. A figura ossuda criara maiores angulosidades e feitios desengonçados. Encontrou por acaso algum de vocês um homem que aflija como um remorso? Um velho que sintetize uma vida cheia de ilusões a princípio, depois batido e escarnecido, que dê medo de sonhar e vontade de só pensar no ouro e na prática?... Tem-se um arrepio. A minha quimera despedaçar-se-á como a dele e terei um fim de vida, por muito querer sonhar, de vilipêndio, de escárnio, e, o que é pior, sem ilusão?...
Assim, de toda a quimera antiga, de todo o sonho que lhe esbraseara as noites e lhe varria as tristezas, só aquilo restava. Em vez de ser um grande ator que interpretasse, de uma maneira única, a miséria, a morte e o amor, era apenas um pobre palhaço de circo... Caída na lama, a quimera parece sempre grotesca.
Foi nesta ocasião que apareceram no circo Camélia e Lídio. Vinham juntos, juntos percorriam o mundo, vivendo uma vida livre, de amor e perigo. Raro falavam com os outros artistas, e em torno deles se formara uma lenda. Eram talvez filhos de príncipes, fugidos para se poderem amar, ou criminosos, com um passado de remorsos e dor... Com eles andava sempre um grotesco clown, que nem sei bem como se chamava. Nesse tempo passavam pelo circo tantos nomes que apenas conservo no fundo da memória vestígios de cartazes, ouro e escarlate, como restos de pompa e de grandeza da minha vida de então. Eu nunca tive memória e de tanto sonhar tudo confundi, realidade e quimera... Todos o conheciam e sabiam que vivia no circo para fazer rir o público. Era o faz-tudo, o sofredores: levava os pontapés a valer e os tombos que magoam deveras. A multidão chamava-o como um cão, por assobios, e, por não ter graça nenhuma e ser desajeitado e se pôr às vezes a chorar — toda a gente se ria.
O circo era enorme e todas as noites a Cidade esguichava para ali a multidão, ávida de perigos alheios, e, entre leques de gás a assobiar, tenho ainda no cérebro a visão do público, de olhares fixos no prato da arena toda branca... O riso soprava por vezes como uma ventania furiosa.
Pôs-se o Palhaço a amar Camélia. Lídio e Camélia e ele eram os artistas que a multidão aplaudia. Do outro clown também se riam com ferocidade: nunca ali aparecera um palhaço como ele. Torto, anguloso e, no quadrilongo da face, os olhos furados a verruma. Nunca o vi senão de seda preta e na cabeça, posto ao lado, um chapéu alto velhíssimo e rapado — um chapéu que fazia estancar as gargalhadas e pensar na miséria... O Palhaço era o seu único amigo.
Visto que se pusera a amar Camélia, o clown atraíra-o como a decifração de um mistério, ou como a desgraça alheia encanta a nossa própria desgraça. Encontrava-o sempre deitado à porta do camarim de Camélia e nos olhares do louco surpreendera porventura um mundo de amor. Era decerto como ele um infeliz. A pouco e pouco conquistara-lhe a amizade. Bebiam juntos e, de noite, terminado o espetáculo, partiam de conversa pela cidade. Era singular o diálogo, cheio de grosserias e de ideal, palavras raspadas na alma de cada um, gritos, frases que estremeciam de dor.
A Cidade para aqueles sítios é cheia de negrume e de velhos palácios e casebres onde gerações inteiras passaram a vida, com as suas angústias e as suas alegrias. Corações bateram, almas floriram. Teceram-se obras de génio e canduras. Não há ali pedra que não saiba contar crimes e amores e, decerto, cada calhau, a princípio inerte, criou coração, sensibilidade e alma. Ou querem acaso sustentar que as coisas ficaram gélidas, sem se influenciar por todas as vidas dos que por ali transitaram?... A mim, nestas noites de luar caladas e misteriosas, me parece distingui-los, aos duendes, errantes em torno de cada prédio, e revivendo antigos dias de felicidade e de angústia. Vejo distintamente que se despegam das pedras, ideias, gritos, falenas escuras, que esvoaçam um instante e se perdem na noite, com um sussurro de asas ou de vozes tristes.
E tudo na treva é fantástico. Uma escada esganiça-se entre dois prédios, confundidos e enormes, e, arredado, um lampião luz na esquina de um beco. Parece que vão cair um sobre o outro, que são feitos de sonho e de pesadelos petrificados. Adivinha-se um começo de ruela num esgar, e umas escadinhas escusas trepam até ao negrume opaco...
Passo ruas, passo por monstros de feições carcomidas que sustentam pedras — e há que tempos que eu noto a contração dolorosa de uma cariátide, só ela imóvel e fixa na noite, angustiosa e eterna como aquele latido de cão que lá ao fundo uiva no risco negro das terras. Há que infinito me entra pelos ouvidos, ao mesmo tempo que a fixidez angustiosa da figura pelos olhos, dando-me a mesma impressão de espanto e dor!... Silenciosos caminhavam na campina, entre espectros de árvores e um fio de luar entornado. E perseguiam-nos os gritos dos casebres, o aflitivo vozear das pedras leprosas e dos prédios altos, riscados de chaminés.
— Foi o amor, então? — perguntou um.
— Foi o amor — respondeu o clown. — Foi o espanto, foi como se o mundo em torno desabasse. Não me lembra o que era, nem quero pensar nisso, para não deixar de a ver. Rico ou pobre, príncipe ou mendigo, tudo troquei por ela e ganhei com a troca...
— Mas ela não te ama. Vives como um cão escorraçado... Ela despreza-te...
— Não me despreza. Nem me importo. E depois amo-a. Vou para casa, com febre, transido, e cismo e sonho — e tudo isto no infinito se realiza afinal...
— Se realiza?...
— É como uma brancura, uma grande árvore, cujos galhos secos, de cada vez que o meu coração estala e o meu amor e o meu sonho vão sendo maiores, se cobrem de flores... Não vivo senão para isto, e, quanto mais humilde e mais batido, quanto maior for a minha dor, sinto bem que mais feliz serei depois...
— Tudo se realiza então?...
— Tudo. As árvores que não chegam a dar flor e as ilusões que não acabaram de criar-se...
Deram com um muro. Saltaram-no. E tomaram por um olival, mudo sob o luar, o Palhaço esguio, o clown torto e de chapéu alto. As árvores desciam a encosta, aflitivas de imobilidade. Faziam ambos na noite gestos desesperados.
— Realizar... Tornar material o pensamento, apenas porque o transmito da alma aos nervos, dos nervos aos músculos!... Um Poeta sonha e, embora não congele, em matéria, ideias e sentimentos — podes tu acaso crer que não tomem corpo, não vivam, e se não realizem no infinito?... Tudo: a pena que as árvores têm, porque não chegaram à primavera, para noivarem, os amores irrealizados, as ilusões que flutuam, se desprendem e vão como claridades, como suspiros de mágoa, viver pelo infinito fora...
— Mas ela adora-o e tem, apenas, piedade de ti...
— Ela que me importa!... A que eu criei, porém, servindo-me de Camélia como material para sofrer, como barro para criar; a que eu fiz viver com a minha febre e os meus nervos, com as minhas lágrimas e todo o meu cérebro, essa é a noiva que me espera... Deixai-me sofrer, ser miserável, batido e escarnecido... Há que tempos que eu ando tecendo a minha teia de fios de prata, de estrela para estrela!
— E sofres, e dão-te pontapés e toda a gente se ri de ti, clown!...
— E quanto mais sofro, e mais sinto a vida extinguir-se-me — mais ela vive; quanto mais humilde e rasteira, mais bela; e, quanto mais crescem as minhas penas, mais o luar faz crescer os seus cabelos. Pela simples razão de que é por ela que sofro...
— Contanto que ela não te escorrace...
— Contanto que eu saiba segui-la e sonhar, olhá-la e sonhar...
Pôs-se a amar Camélia, mas nunca o disse a ninguém, porque morreriam a rir do Palhaço, torto e tão desajeitado!... Todo o luar do seu sonho tomara enfim corpo e, como de nuvens espumosas de um poente se criam feerias, assim, como o que havia de vago e de impalpável na sua alma, a envolvera, idealizando-a. E, visto que nunca amara e estava velho e seco, pôs-se a querê-la por todas as que nunca tinha beijado e pelas carícias que ignorava, náufrago que se agarra à única tábua de salvação.
Deixem-no sonhar!... Mas ao mesmo tempo começou a dor a retalhá-lo, como uma lâmina que lhe arrancasse a cada minuto, com esforço, fibras, nervos, pedaços de coração e de cérebro. Via-se velho e seco, tendo perdido a vida sem realizar e sem conhecer a febre de viver por uma mulher, a angústia da dúvida, a recordação dos beijos que por muito tempo sabem na boca a medronho ou a fel.
Achava-se pícaro e sinistro: o sonho tinha-o tocado, dando-lhe aspetos de visionário ou de louco. Estava calvo, o nariz aguçara-se, formando com o queixo um bico formidável de ave de rapina, e, sobretudo, havia nas suas faces um rictus indecifrável, misto de riso e de concentração dolorosa.
A sua timidez era enorme — maior o seu orgulho. E com isto encontrava na alma delicadezas em que nunca pensara, carícias, restos de olhares, balbuciações quase infantis, que o deixavam absorto e aniquilado.
Era certo: Camélia não o podia amar, e nem ele se atrevera a dizer-lhe a sua paixão. Antes queria viver arredando a realidade sempre má e brutal. Sonhar ainda, sonhar sempre, mais valia que ouvi-la rir-se, despedaçar com o escárnio o seu amor. Tinha então, nas noites de circo, quando clamava, ao mesmo tempo que Camélia galopava no corcel negro, confissões que se arrependiam, olhares que exprimiam a paixão, para logo se transformarem, sem se atreverem a ir até ao fim, em hilaridades. As suas palavras ardiam por vezes, para de súbito caírem como bexigas a estoirar. Os seus gestos começavam num frenesi a contar o que sofria, para acabarem por se torcer em epilepsias de cómico; e a sua boca ia num esgar a vociferar, arrebatado, doido, a narração da dor, e terminava numa gargalhada estrondosa de palhaço. O orgulho não o deixava. Se ia a confessar-se, uma voz lhe pregava na alma: — Olha que ela vai rir-se de ti! Pois tu não vês como és desprezivo e cómico, Palhaço! Olha que ela vai fazer escárnio do teu amor, da tua paixão, das tuas noites febris!... Beija com sofreguidão, calvo e grotesco, a sua carne de mármore, a vaga do seu peito, mas em sonho! Afunda- te, passa horas à beira dos seus olhos misteriosos, negros e profundos como lagos, mas em imaginação!... Que mais queres tu? Diz-lho e nem permitido te será sonhar! Diz-lho e os seus risos despir-te-ão, mostrar-te-ão sem ilusão, ser grotesco, palhaço que arrancas gargalhadas à multidão, mesmo quando sofres... Se tu visses como a tua dor é pícara!...
E o diálogo persistia entre ele e a dor, ficando sempre vencido, esmagado: — És um desgraçado; és um desgraçado! Nunca amaste, não sabes nada de amor e atreves-te! Que lhe vais tu dizer? Com que palavras lhe vais contar o que sofres e o que crias na imaginação em brasa?... Olha bem para dentro de ti!... Vê que na tua alma, por mais que procures, nada encontras de belo, de grande, que lhe possas oferecer em troca da sua boca... Ideias, sentimentos mesquinhos, palavras que já nem sabes donde nascidas. Tu não tens pena de ti?... Grotesco, velho, servido — ninguém pode ao ver-te deixar de rir, enquanto para ela só encontraste ainda esta frase que a defina: — uma aparição!... Passaste a vida a sonhar abraçado a uma quimera que queimaste, e agora, quando a queres agarrar e deter, encontras apenas os teus braços descarnados. Nada. Fazes piedade!
Quiseste fazer rir e agora fazes rir. Viveste de sonho, tentas voltar à realidade — e a realidade atira-te para o sonho. Se abres a boca para falar de amor, todos desatam a rir. A realidade vinga-se. A realidade não cria palhaços como tu, a realidade cria homens, e os que se esquecem de viver não devem acusar a vida. Tens de ser palhaço até à morte. É inútil quereres voltar para trás, e por cada grito de dor que soltes conta com uma risada de escárnio. Fizeste da vida artifício, para representares as tuas farsas, e agora teimas em recomeçá-la?... Palhaço! Palhaço!... Davas tudo para não sonhares — para viveres — e a realidade obriga-te a caminhar até ao fim. Palhaço! Palhaço!... Talvez todos os homens, num dado momento da vida, perguntem a si próprios, numa angústia:
— Errei a vida? O meu amor foi o verdadeiro amor? O sonho que sonhei o melhor sonho? Felizes os palhaços que são palhaços até à última hora com a mesma convicção — e que não sentem este desespero e este fel. Palhaço! Palhaço! A tua vida foi um sonho — agora sonha! Quem se habituou a sonhar, tem de sonhar sempre, de se fechar por dentro com o seu sonho, para fugir à realidade. Agora só te resta fazer do amor sonho e da morte um sonho maior e mais belo.
No covil do quarto vivia desesperado. À noite no circo, parecia desvairado e a multidão dera em o aplaudir nas suas farsas, em escancarar a boca de riso. Nunca outro palhaço fora grotesco como ele na comédia do amor, que todas as noites representava, juntando-lhe de cada vez mais um pormenor, sempre velha, sempre viva e cheia de interesse... Quando Camélia aparecia sobre o corcel negro, linda e frágil, leve na gaze glauca como se fosse desaparecer, avançava todo torcido, a babujar-lhe tímidas palavras, dizendo-lhe a sua paixão de uma forma tão pícara que o riso caía como uma montanha que desaba. Até Camélia ria — e fugia num turbilhão, levada pelo cavalo negro a galope, enquanto o bobo caía despedaçado pela dor, com desesperos tão bem fingidos e lágrimas tão cómicas que a multidão aplaudia com delírio. Às vezes as suas palavras eram dolorosas, as suas frases afligiam, mas ela ria também e então o Palhaço exagerava tudo e dava uma cambalhota, com medo que passasse a escarnecê-lo, depois de ter gargalhado da farsa...
Um dia, fora do circo, ia talvez falar-lhe a sério da sua paixão — mas ficou empedernido. Nem sequer um gesto... E ela passou e olhou-o com a soberana insolência da juventude... Outra noite procurou convencer o clown a fugirem com ela, no fim do espetáculo, para a violarem, num recanto, sob a mudez da noite — mas o clown ameaçou apunhalá-lo.
Nessa noite recebera do Pita um recado para aparecer em casa, depois do circo, com mais dois ou três palhaços. Voltavam silenciosos, a grandes passadas na noite, ainda com os trapos da representação.
Três horas da manhã. Junto ao arco, na rua enlameada e negra, o Pita tinha tintas de diabo de mágica que vai perder uma alma. Agarrado à Velha, fazia gestos de epilepsia, parecia querer convencê-la, levá-la, diluí-la no negrume de um boqueirão de viela, escancarado como duas maxilas formidáveis. A sombra do lampião desenhava a carvão na muralha um aranhiço enorme...
— Pita! — berrou-lhe.
— É o Gregório que está a morrer... E eu quero que ele leve para a cova a ilusão da mulher seduzida.
Mostrou-lha com um gesto, e depois arrastou-a pela lama, e partiram.
O Gregório estoirava. Fora sempre pálido como os ofícios que escrevia. Nunca vira mulheres: passara a vida sobre o papel da repartição. Nunca tivera lágrimas, coração, alma. Ouvira falar em árvores e paisagens e havia anos que a doença o atirara para um quarto da casa de hóspedes de Dona Felicidade. Hóspedes eram, bem sabem, o Pita, uma troupe de palhaços, o Anarquista e o Doido. Pelos fins dos meses havia terrores, pragas. O Pita, porém, intervinha com a sua ciência da vida: fechavam-se as navalhas e a Dona Felicidade escrevia garatujas de contas no livro das Perdas e Danos...
Às vezes o Pita metia-se no quarto do Gregório a encharcá-lo de quimeras.
— O pequename!... Você nem sabe o que perdeu, meu rico senhor Gregório... Há- as por aí das mais belas carnações de frutas, polpas aveludadas, olhos verdes e quietos como lagos... O pequename, amigo Gregório, é a consolação do mal de viver...
— E os requerimentos, ilustríssimo e excelentíssimo senhor?...
O Pita tinha piedade dos grotescos que nunca amaram nem viveram, e que trazem na alma apenas restos de frases, detritos de ideias, conceções em feto. E, pois que o Gregório nessa noite agonizava, ele, que, ao contacto da morte, deitava sempre a filosofia de fora, pôs-se a tecer:
— O que alguns têm no pequename a mais, tem este desgraçado a menos. Ir para a cova sem ter possuído ao menos uma mulher, sem lhe ter lido nos olhos poemas de adoração e de perversidade! Vou-lha arranjar!...
E foi.
O Gregório morria. Tinha ainda uma hora de vida quando Pita fez um sinal com o dedo curto e a porta do quarto se abriu. Os palhaços, escarlates uns, cor de poente, leves como nuvens, entraram, e, cobras que se enlaçam num molho, torceram-se, deslocaram- se, tiveram génio, risos, gargalhadas, subitamente desfeitas pelo terror. Outro gesto do Pita e, quais pedaços de nuvens do poente varridas pelo vento ou pela noite, a troupe colorida dos clowns se desfez, a Dona Felicidade, com a boca cheia de pragas, pôs-se a uivar à porta:
— Paguem a conta! Paguem a conta! Ou morrem de fome!...
— Primeiro acto, senhor Gregório! — E deu um assobio, o Pita.
Então o Gregório, que nunca vira árvores nem paisagem, pediu-lhe com humildade uma leve explicação:
— As árvores? Como são as árvores?...
— Como cabelos de mulher ao vento, como pragas a silvar raivosas entre a penedia. Há-as todas verdes, há-as roxas, há-as em brasa, conforme a sua floração.
E como os seus olhos se abrissem ávidos e perguntasse:
— E a paisagem?...
— Como mulheres deitadas, de enormes seios duros e verdes, inteiramente diluídas em verde, meu rico senhor Gregório.
E pois que ele ficara absorto, de olhar perdido, num esforço de imaginação para ver, o Pita escreveu na parede a lápis: intervalo de vinte minutos para sonhar.
Depois, a outro sinal, o Anarquista entrou e, em palavras frias, em frases incisivas e curtas, pôs-se a narrar a miséria, os que morrem despedaçados na engrenagem da vida, os exasperados, o ouro que tudo calca e de tudo triunfa, e, num gesto largo, como se arredasse as paredes do quarto, fez-lhe ver a Multidão, no futuro, tolhida de fome e de ideal, despedaçando tudo, aniquilando tudo num enxurro raivoso.
— E nunca mais haverá requerimentos? — perguntou numa ansiedade o Gregório.
— Nunca mais! Nunca mais!...
E o poeta avançou e recitou um grande poema de amor, complicado e bizarro, até que o Pita baixinho resmungou:
— Abrevia, menino, abrevia, senão ele estoira antes de findar o espetáculo.
Efetivamente o Gregório agonizava quando o Pita introduziu a Velha, ainda a fazer-lhe supremas recomendações e procurando compor-lhe um molho de cravos de papel que ela trazia no seio.
— Faça-se silêncio, respeitável Dona Felicidade.
E todos arrumados à porta, os palhaços, como restos de mantos pomposos, o Doido estarrecido, esperaram, enquanto o Pita espreitava pelo buraco da fechadura...
Quando entraram no quarto, o Gregório tinha os cabelos revolucionados e o olhar perdido. A mulher acocorara-se a um canto.
— Não quero morrer ainda! Não quero morrer!...
— Viste tudo, Gregório... O estupor da vida é assim e agora seria repetir sempre a mesma coisa, maçada inútil, meu rico amigo!... A morte liberta. Vais ser árvore, paisagem, cor, nuvens de poente... Vais ser livre... Restos de chefe de repartição hoje, amanhã lábios de mulher ou alma de Poeta... Papelada fria que em breve se transformará em emoção e em lágrimas... É o último esforço: mais uns minutos de dor apenas, para nunca mais pensares...
— Pita, senhor Pita, ilustríssimo e excelentíssimo senhor, que é que fez à minha alma?...
— Abri-lhe um rasgão para que o sol entrasse; cores do poente, espirros de lume, enchi-te de quimeras antes de morreres...
E todos se curvaram em volta do catre, os palhaços mascarados, roxos, purpúreos, a Dona Felicidade, o Poeta, para verem o ultimo esgar do Gregório, enquanto o Pita berrava:
— Pode cair o pano!
Esta estranha sabedoria do Pita, o seu conhecimento da mulher, fez com que ele, naturalmente, pensasse em o consultar. Conhecia-as a todas, e dava-lhes conselhos práticos, penetrados de sabedoria, que elas escutavam com avidez. Sabia interessá-las como um amigo discreto e conceituoso ou como um velho armário onde se encontra de tudo, remédios para males amorosos, filtros que entontecem e perturbam, meias-coroas para ocasiões de desgraça e uma grande benevolência por todos os vícios e por todos os crimes. Passava-lhes a mão pelo queixo, beijava-as ao pé da orelha e, quando os amantes saíam, rompia ele também por detrás da mobília, com as palavras que alucinam e põem vibrações quase dolorosas nos nervos das raparigas.
Era-lhes indispensável: escrevia-lhes cartas de amor alucinantes e ia entregá-las em troca do vil metal; consolava-as quando Alphonse fugia; sentava-as nas pernas e desfiava o rosário do vício, com o olho lúbrico a apalpar-lhes o colo.
Assim, como lhe perguntasse pasmado porque é que as mulheres o adoravam, o Pita passou a mão pela calva, acendeu uma antiga ponta de charuto e falou conceituosamente:
— O pequename, meu amigo, é afinal fácil de levar: basta lisonjear-lhe o vício. Na alma de cada mulher, há sempre um pequenino diabo escarlate. Basta acordá-lo, se ele dorme; basta saber-lhe dizer palavras que o façam saltar, vivo e astuto... Às abandonadas, não lhes quebro a ilusão da volta do amante, mas lentamente lhes sugiro que há carícias extraordinárias que elas ignoram, braços que sabem enlear como cobras e fazem esquecer a amargura da vida, os dias sem dinheiro, a desonra e os credores até!... Às que amam, digo-lhes que ainda não é bastante, que a única coisa boa da vida é o amor e que elas não têm nos olhos nem na boca o sorriso extasiado de quem é verdadeiramente adorada. Às mulheres que têm o risco da primeira ruga na face e a ranhura do desgosto de começar a envelhecer na alma, conto-lhes que o amor é imortal e que o ouro tudo pode. O amante que sabe fingir e que se paga, a quem se atira com desprezo dinheiro, tem beijos de um raro sabor e nos seus braços passam-se horas esquecidas, que a ilusão tece de ouro e de púrpura... E a todas ensino que, do amor, é necessário saber-se espremer o metal dos velhos, as notas de banco dos ricos que amam as rapariguinhas perversas... Eis o meu segredo, vê tu! Banal como uma verdade sólida e antiga.
— Pita, senhor Pita, tenho uma coisa a pedir-lhe...
O seu olhar era incerto. Os dedos contraíam-se-lhe e a palavra saía-lhe sacudida. Enfim, como quem toma uma grave resolução, disse:
— Vai um cálice de genebra? Tome alguma coisa, senhor Pita. Peço-lhe que tome alguma coisa... Trata-se da minha vida...
Então o Pita lhe disse com certeza absoluta:
— Você ama.
E ele confessou a tremer:
— Amo.
O Pita coçou a calva, afastou as farripas gastas do cabelo e num grande silêncio encheu devagar o copo de genebra. O galego havia adormecido encostado ao balcão, e tudo no café era triste, aflitivo e mesquinho — as mesas de mármore sujo, desertas como lápides funerárias, as garrafas cheias de poeira enfileiradas no armário...
— Procedamos com segurança e método. Você ama. Está bem. Amar uma linda mulher ou amar uma ideia, amar seja o que for a valer na vida, é um bordão a que nos apegamos e que nos ajuda a caminhar até à velhice. Debruçar-se a gente sobre os olhos de uma mulher consola de todas as desgraças e de todas as misérias e até de crimes.
Perseguem-nos os credores, a falência vai abrir-se — olha-me amor, e sorve-me da alma todas as inquietações e todos os desesperos: quando me lembro de ti, a pistola aperrada e pronta para me liquidar — não é necessária já, pois já tudo esqueci... E ela ama-te?...
Ele disse com simplicidade, muito humilde:
— Olhe para mim...
E acrescentou estas palavras terríveis:
— Nenhuma mulher se importou comigo. Eu nunca fui amado.
O Pita olhou-o, perdido já nas ideias que se lhe esboçavam no crânio, como nuvens trazidas por uma ventania:
— És um desgraçado... Que importa ser-se ou não grotesco, para que lábios como ventosas nos suguem apaixonadamente?... Crês tu acaso que os tipos de beleza ideal é que são amados com maior sofreguidão?... Burro, que não conheces a alma humana, nem o coração das criaturinhas, ávidas de mistério e de dor, de dedicação e de martírio... Oh, e só por isto vale a pena: calculas que vaidade, que inigualável prazer, não é o de um sapo amado por uma flor rara?...
Afiançou-lhe que era belo, pelo sofrimento, pela vida, pela desgraça.
— De resto as mulheres são curiosas e têm o diabo na alma: o abismo atrai-as. A sabedoria consiste em encantá-las ou surpreendê-las: despertar-lhes o interesse, a curiosidade, porque se é pícaro, perverso ou admirável de beleza — que importa! Depois, as mulheres amam os extremos: toda a audácia ou a excessiva timidez, os assassinos e os santos, os heróis e os nulos. Não sejas tímido, ou antes, não desconfies de ti: põe-te a querê-la a valer, a querê-la com todo o teu coração e todo o teu cérebro. Não duvides e será tua. A vontade é omnipotente: amolece, arrasta montanhas e faz estremecer os corações. Não sei que ambiente de força trazem consigo os que querem — que todas as energias se quebram, e a própria natureza é abalada. Quer! Quer! Ouviste?
— Não posso: não tenho energia, nem força. Sinto vontade de morrer...
— Porque não experimentas tu as mulheres que se vendem?
— Aborreço-as...
— Compreendeste-as mal, eis tudo... Essas criaturas que tu desprezas são um pouco como tu e como eu: batidas pela vida, escarnecidas e com uma alma onde a candura se esconde para não sofrer... Olha-as: passam na rua lindas, fáceis, com sorrisos humildes, a oferecerem a sua nudez às pancadas e aos beijos... Sob o véu de cada criaturinha esvoaçam dois olhos negros, que nos prometem beijos que, por meia hora, fazem esquecer amarguras e quimeras. Que importa que sejas velho, feio e grotesco? Encontras, por uns miseráveis cobres, carícias que se não pagam, abandonos, olhares que valem um mundo. Por momentos farão a primavera na sargeta negra da tua alma. São elas — escuta — que dão aos mendigos, aos tímidos e aos grotescos escorraçados pela vida e pelas vaias da ralé a ilusão do amor!... Compreendes bem isto? Como tu, como eu, vivem sob o desprezo público, cuspidas pelos ricos, e no entanto sofrem, são curiosas e dignas da piedade humana... Precisas de bater em alguém? Aí as tens lindas, fáceis, sem a proteção da lei e à mercê das tuas perversões. Como todos os escorraçados, são humildes e os beijos das suas bocas têm o sabor da experiência. O amor à venda! O gozo sem responsabilidade! As horas tecidas a ouro, quimera de asas abertas — sem reverso de medalha, sem amargura e remorso! E queixas-te, estúpido!
— Não, senhor Pita, por mais que queira não posso. O que me oferecem é a voluptuosidade. Depois, além de grotesco e tímido, ela ama outro. E é enfim o meu primeiro, o meu único amor... E note: eu nunca na realidade amei — sonhei. Passei a vida a sonhar que era amado — e nunca fui amado! Elas passaram por mim na rua — extraordinárias, feitas às vezes de um nada de brancura, de um nada de sol, agasalhadas em peles sumptuosas — ou descalças e rotas com um seio que as iluminava como um dia de primavera — e nem sequer olhavam para mim... Mas eu não as esquecia: levava-as para casa — e sonhava com elas. Foram todas minhas amantes em sonho... Umas vezes, virgens e pudicas — outras vezes voluptuosas... À minha vontade, encerrado na escuridão do cubículo, apertava-as nos braços, e violava-as como num saque... E sonhei. E contentei-me em sonhar — até que deparei com esta mulher que quero possuir. Agora que sou ignóbil, agora que só me resta a morte — encontro o meu sonho real e tangível. Amo-a de uma maneira extraordinária, amo-a como quem se despede da vida.
— Mas então diz-lho...
— Repare para mim, olhe para mim. Seria bajulá-la. Não vê? Não compreende que a minha fealdade não é só por fora, mas por dentro? E não percebe que se ela calcasse aos pés este amor — o meu último amor — seria para mim pior que a morte! Ela resume todas as mulheres que amei em sonho e que nunca na realidade possuí. Eu nunca fui amado!
Não sei bem que impressão amarga e simultaneamente cândida havia naquele ser grotesco, tão humilde a confessar que amava. Não sei também que baque o Pita sentiu, que se transfigurou comovido e lhe disse:
— Tens então uma única coisa a fazer... Vou-ta dizer sem frases, como se fosse teu amigo desde pequenino... Morre por ela... A vida é lastimosa e estúpida para nós que não cremos e estamos gastos e nulos. A vida é uma série de desgraças, de maldades e coisas importunas e reles. Tens vivido, tens imaginado tudo, tens visto corações, lágrimas, desesperos. Que mais te pode restar? Vinte anos piores, dias a sucederem-se aos dias — noites de circo, a D. Felicidade, as minhas palavras que se repetem, o teu sonho que já nem te ilumina, pois que estás gasto e aborrecido até de sonhar. És grotesco, é verdade. Mais um passo e ficas sozinho dentro de um palácio desabitado. Eis aqui que aparece agora uma bela ocasião de morreres, o prazer único de morreres por uma criatura que adoras. Não a deixes fugir. Será a melhor coisa da tua vida, um fim como tu não merecias. Morre por ela... Depois de estares seco, morrerás com este encanto: o da tua alma se cobrir como as árvores!...
Uma pausa e depois insistiu:
— Mata-te — porque morres em estado de graça. Despida da matéria, a tua alma adquire a tensão máxima, uma força, uma expansão inexprimível. Supõe que depois de morto vais possuí-la na outra vida. Imagina a tua alma acompanhando-a sempre — até nos momentos mais secretos, hein?... Contemplá-la e talvez seduzi-la... Não sei!... Mas decerto rodeá-la de uma atmosfera de ternura e sonho — de uma atmosfera imaterial e viva que há de acabar por impregná-la.
— E o outro?
O Pita coçou a calva:
— É verdade, há o outro... Há o outro que é matéria sólida e que vem meter o nariz num caso destes tão espiritual... Mas tenta. É uma experiência, dirás... Mas é uma experiência que te não custa nada — se a alma existe. Larga essa carcaça ignóbil, vai enfim para ela em espírito, rodeá-la de dia e de noite... Adeus!
Eu não sei bem explicar o coração do Pita. Decerto havia nas suas palavras uma grande sinceridade e juntamente o prazer de dizer coisas belas e estranhas, mas, num canto da alma, uma porção do seu ser pôs-se a rir com escárnio e lhe disse baixinho: — Miséria humana! Grande malandro que tu és e te pões a aconselhar a esse desgraçado que morra, porque no fim de tudo o que tens é inveja, estupor! O que tu não podes é entrever a possibilidade de ela o vir a amar e de ele ser feliz com uma linda mulher, quando tu és desgraçado!... O que tu tens simplesmente é inveja, Pita!... Quanto à alma... O que na realidade me interessa não é a alma, é o corpo. O corpo é que eu queria imortal. Só quando se chega à minha idade é que se aprecia bem o cadáver. E depois uma alma não digere, nem toma nada... Olha que espiga!...
E o Pita, sabedor da vida e de todos os seus escaninhos, concluiu: — Inveja, dizes?... Vai para o diabo que te carregue! Sou assim, que queres? O homem é mau e estúpido! De que valem as tuas palavras, não me dirás, falador?...
E seguiu através das ruelas, sozinho, a discutir. Nunca, como nessas noites em que monologava perdido pelos bairros excêntricos, afogado em sonho, parando, gesticulando, apressando de novo o passo, conforme a teia das suas ideias se emaranhava ou desemaranhava — nunca o Pita se parecia mais completamente com um diabo pelintra, com um diabo de mágica caído na desgraça e na pobreza — mas discutindo sempre, negando e sorrindo até à morte.
O circo estava ainda a meia luz e o prato da arena deserto quando o Palhaço entrou. As cariátides de mármore branco que sustentavam os balcões diluíam-se na púrpura dos estofos em atitudes de esforço. Rompeu a sinfonia, os jovens de calções vermelhos abriram alas no estrado, e o lustre, como uma grande flor que se abre, desceu, dando toda a claridade à sala. Em cima, no alto, luziam riscos de fogo dos trapézios, uma confusão de redes, de arames cruzados, e, então, enquanto uma mulher a cavalo furava com a graça do voo arcos de papel branco, o público indiferente ficou silencioso.
Seguiu-se um trabalho de agilidade e de força: os três Fersts desceram a rampa num pulo, e um palhaço, vestido de lilás e de carapuça branca, começou aos encontrões às barras onde eles trabalhavam. Saltavam como pedaços de estofo atirados pelo ar. Suspendiam-se pelos pés, tão equilibrados e seguros que a multidão, já ruidosa, começou a aplaudi-los.
Coube depois a vez aos patinadores, ela grácil e rápida, desaparecendo no estrado, floco de espuma lilás levado pelo vento, eles grotescos e pançudos, como sapos verdes, amarelos, roxos, negros, que a perseguissem, aos pinchos desajeitados. E ela fugia-lhes sempre, graciosa, de braços arqueados e um sorriso postiço nos lábios vermelhos.
Todo o vasto circo cheio de ruído era extraordinário de colorido. A atmosfera aquecera. A música hílare em torrentes de sons acompanhava os trabalhos de agilidade e fantasia, que o público acentuava com palmas, com gritos, com ahs! de satisfação, com silêncios de espanto, com assobios de protesto. As mulheres, recortadas na luz artificial, pareciam mais belas, os movimentos perfeitos. Ah!, exclamava a multidão, que dali levava um resquício de claridade, alguma alegria e um pouco de ritmo e de sonho, para esquecer o negrume da vida.
Na claridade violenta do circo, Camélia apareceu enfim sobre o cavalo negro, toda branca, e passou rápida, esbelta e loura, a sangrar na luz púrpura, rósea e evocada num sonho, imagem que se desdobrava, na fúria do galope e no triunfo da música, como uma figura de quimera, conforme os jatos dos refletores. As cores, restos de poente, escamas de sol, escorriam sobre o cavalo negro, até que, entre a rajada de palmas, caiu no selim, com uma graça de cisne, toda branca outra vez...
O Palhaço, numa cabriola, veio então rojar-se-lhe aos pés, amoroso e cómico... Todo de seda negra, ferida de escarlate, junto à gracilidade de nuvem de Camélia — céu de catástrofe onde o luar aparecesse — dava a impressão de um salteador que tentasse violar uma virgem. Era certo que os seus olhos, na face longa e amarela, tinham desespero, amargura, falavam de ilusões despedaçadas, mas os seus braços desengonçados, todo o corpo anguloso e torto, abririam risos de escárnio até na quimérica ventura de um noivado. Aquele pedaço de clowneria estrelava-lhe todo o resto da noite.
Para que ela se não risse, fingia o amor (bem sentido e cavado na sua alma, na verdade), fazia da paixão um riso e de tudo o que tinha em si de ternura, como uma árvore que foi forca e se cobriu de floração — uma gargalhada. Não, não queria que ela se risse ou tivesse piedade, mas no feitio lambão porque passava a mão pelo seu peito marmóreo e lácteo de estátua, para depois chupar com gula os dedos, havia amarguras inéditas; no olhar raivas e, em todo o corpo desengonçado de clown, ímpetos de a morder e fugir com ela presa nas garras.
Um minuto de pausa: a mulher toda branca caiu outra vez sobre o dorso nu do cavalo; de dentro, com a lufada fresca do ar, veio o cheiro a cavalariça misturar-se ao ruído das palmas. E logo a galopada, no estridor da música, recomeçou, e Camélia, como a fantasia de um poeta, verde, escarlate, a sangrar como um crime, incarnou outra vez a quimera, sobre o cavalo negro e raivoso, e de rastos, agarrado às crinas do animal, o Palhaço desatou aos gritos, despedaçado de encontro à arena — restos de um amor do passado, ilusões mortas, venturas para sempre perdidas na lama e no esquecimento... E as palmas da multidão caíram como granizo.
A seguir Lídio trabalhou. A toda a altura do circo, enorme, e sem rede, fazia trabalhos de prodígio e de perigo, com a sombra de um sorriso nos lábios, enquanto o circo hipnotizado sentia a impressão da queda num abismo.
Para tirar àquela parte do espetáculo o aflitivo de pesadelo, o empresário, como quem atira para uma cova negra um galho de macieira em flor, fazia coro aos trabalhos de Lídio com um bailado em que entravam as mulheres mais lindas do circo. E catadupas de luz jorravam do palco... Mão-cheia de flores atiradas para a arena, com risos claros, vinham de roda, de súbito estacadas para Lídio. Ao meio o Palhaço tinha ímpetos de paixão, na indecisão da escolha, e elas dançavam desfeitas em papelinhos multicores levados pelo vento... Lídio no trapézio equilibrava-se num perigo enorme!...
Quem cortou a corda do trapézio?
O Palhaço não o disse, mas é certo que havia tempo que os seus olhares luziam de ódio para Lídio e que a sua conversa sacudida, nervosa e tecida de rancor, se estancara. Na arena havia noites em que a dor se misturava demasiado às suas farsas e em que a multidão o pateava raivosa. Os seus gestos, em linhas quebradas, exprimiam ferocidade e em toda a face, comprida e amarela, se lia (o que transformava de súbito os risos em pasmo e a gargalhada em terror) não sei o quê de sinistro...
Reparem na grande farsa que ele agora representa para Camélia e para todo o circo, que não sabe se há de rir ou pateá-lo — a sua última farsa — amar ou morrer. Amar ou morrer! Amar ou morrer!... Pode-se porventura exigir dos outros que nos amem? Impor a uma mulher que nos ame, quando somos velhos, desajeitados e grotescos?... Piedade? Mas eu não quero a tua piedade — quero o teu amor!... E começou a passear na arena a figura angulosa e enorme, com o bengalão a rasto e o aspeto de velho amoroso e ridículo. Todo o circo se riu enfim. Outro salto e os risos estancaram. — Mas repara, repara, não no que há em mim de grotesco — no que eu sofro, no desespero com que me agarro a este amor que é a minha própria vida!... Deixa-os rir a eles, mas ao menos não te rias tu porque passei a vida a sonhar e esqueci a realidade... — E ei-lo o homem que sonha, o homem de olhar perdido que não vê, que não ouve, que anda aos tropeções na vida porque sonha; o espanto e a dor do palhaço grotesco que cai de repente na realidade e a amarga... O homem que é feliz e tudo desdenha — até que o amor o puxa para a realidade. E abria a boca enorme e desdentada, e piscava os olhos pintados de vermelho, ria-se ele próprio da farsa dolorosa que representava — amar ou morrer! Amar ou morrer! E com ele toda a multidão outra vez gargalhou. — Que fiz para ser assim?... Eu nunca fui amado! Eu nunca fui amado!... Uma vida de miséria e sonho, atrás de um ideal, sacrificada a um ideal, que só na velhice compreendi que me iludiu. E agora não posso voltar para trás! Viver para um sonho, se esse sonho nunca se alcança, se se torna em barro disforme, de que toda a gente se ri, nas mãos secas da velhice, viver assim é ser grotesco? Oh, na vida só o amor existe! Só o triunfo existe! Mas é tarde para a recomeçar! — E era o corpo, era a fisionomia, eram os gestos ao mesmo tempo cómicos e trágicos, era o próprio chapéu alto arrepiado, que iam desenvolvendo a farsa, fazendo ressaltar os pormenores amargos, e narrando as saburruras de toda a sua existência, o sonho de todas as suas horas inúteis, as quedas e as desilusões, numa mescla que fazia rir e calafrios ao mesmo tempo. — Amar ou morrer! — Um esgar... A figura do homem que arrastou a vida sem amor — do pobre sem amor. E a sua atitude exprimia o sofrimento de se contentar com desprezíveis mulheres do acaso; o dia de primavera em que se depara com uma criatura ruça e sumarenta que passa, e nem sequer nos olha. E até a paisagem se via através dos seus gestos — um fundo roxo, fios de sol que reluzem na água e, no primeiro plano, uma abelha a zumbir no pé de urtiga onde o orvalho deixou suspensa uma gota que rebrilha como se fosse uma estrela... Outro grito: e ele encontra a mulher que ama — a mulher que o há de amar; a mulher que, depois de uma vida ridícula, de pobre, de ignorado, de sonhador, o há de amar antes da morte — a mulher em quem há de cevar-se até esquecer as suas noites geladas de sonho — as suas noites esbraseadas de febre. Outro salto, outra exclamação e palavras mascavadas de palhaço que até a dor tornam ridícula. — Pergunto então: um palhaço não tem direito ao amor, embora seja belo por dentro e a alma se lhe abrase em amor? Quem passou a vida a sonhar, se chega ao momento em que a vida não se compreende sem amor — não tem direito a ser amado? — Então, tal foi a sua atitude, de penante ao lado, que todo o circo gargalhou com estrondo, ao mesmo tempo que ele gritava mais desesperado e mais alto:
— Amar ou morrer! Amar ou morrer!
Quem cortou a corda do trapézio?... Lídio, apenas sentado, sentiu um estalido e o seu olhar estoirado de angústia nunca mais se tirou do único fio porque a corda ainda pendia — tão leve, tão fino...
Descer?... O mais pequeno movimento era a morte, a queda na arena, despedaçado. O bailado se petrificara, poeira de ouro e de sangue, afinal abandonada pela ventania. Ninguém bulia e no silêncio sentiam-se bocas mastigar em seco e dentes que se chocavam de terror... O perfil fino de Camélia cortara-se de pavor e o Palhaço não tirava dela os olhos pequenos e quietos, encostado ao bengalão, o chapéu velho cada vez mais arrepiado. Gelada, a boca torcia-se-lhe de terror... Um minuto enorme de silêncio em que aquela figura grotesca fitou Camélia e em que Camélia o compreendeu enfim:
— Amar ou morrer? Amar ou morrer?
E ela num ímpeto gritou:
— Amar! Amar!
Então devagar, todo negro, com flores escarlates na túnica, muito devagar subiu a corda — e ninguém respirava. Devagar, segurou, pela parte superior, o trapézio tecendo com os braços a vida para Lídio, que logo desceu, quase inerte.
...Viu-se então um trapo negro, bordado a cores escarlates, vir de cima, lá do alto do circo, e com todo o ruído das bexigas de porco, que prendia na túnica, o Palhaço estoirou na arena, grotesco até na morte...
A música, desvairada e hílare, rompeu numa marcha de triunfo, e a multidão, entendendo que tudo aquilo era uma farsa de génio, sacudiu-se na tempestade estrondosa do riso, enquanto a poeira do bailado, borboletas de fogo, de luz, verdes, escarlates, roxas, sob o jorro dos refletores, desaparecia num terror pânico.
Na galeria, o Pita, a guedelha em pé no crânio rubro, acompanhado da D. Felicidade e do Poeta, rompeu em berros de triunfo:
— Fora o autor! Fora o autor!...
O Diário de K. Maurício é constituído pelos pedaços de alma que aí vão. É um monólogo destacado e rouco, com frases incompreensíveis e quase sem ligação. Alguns pedaços eu corto: é que há coisas que se não publicam — farsa para que os outros se riam, dores para que os outros sintam piedade. Lembra-me um clown que tivesse por força de fazer rir a multidão ignara. Esses corto-os e para mim os guardo; os outros aí vão, apesar de ver que perdem o interesse com que sangram aqui, no caderno de papel gelado, nestes sarrabiscos que têm vida e contam a sua dor.
Tal como são, dão-me, porém, o que nesse tempo, já remoto, se chamava um estado de alma. Parece que ele, em noites de desespero, fazia literatura da sua dor, para se esquecer. São frases bruscas às vezes, páginas entrecortadas e monólogos espremidos do fel. E de súbito, num acesso, julga-se ouvir uma boca dizer-nos, na noite e ao ouvido, segredos que nos transem.
Todo este Diário é áspero, com frases inacabadas, monólogo de quem vai numa subida a pique, mas, como é vivido e sofrido, amo-o e enternece-me, como se o próprio K. Maurício, numa longa conversa, me mostrasse a sua alma de grotesco, incompleta, mas tão dolorida e tímida, que me enche de piedade. A cada ilusão morta, como a sua sensibilidade estremece e como ele chora! Que estranho pessimista este, tão ingénuo! Decerto que nem sempre foi sincero, mas no Diário raramente pensou que teria leitores, assim como em todas as páginas que a seguir transcrevo, e em muitos pedaços atirados para o papel numa sofreguidão de se contar...
Às vezes termina o monólogo, para se seguirem, como em todas as páginas do Diário em que a dor raciocina, bruscos ressaltos de loucura e sonho. Esta mecânica ingénua de opor à realidade o sonho, a uma ilusão morta uma ilusão viva, de quantos imaginativos não é o único amparo!... Amálgama curiosa, de uma decifração difícil às vezes, incompleta, com notas para livros — notas que eram apenas uma maneira de se iludir — não é bem uma vida, bem uma alma? Quantas vezes, ao lê-lo, me parece que escuto uma voz que me conta toda a minha juventude, com cansaços súbitos, desesperos, e este: amanhã! amanhã! que sem cessar me repito.
«Sabes que não tenho a culpa. Há outro ser dentro em mim que faz, sob a minha vista, tudo o que é mau, sem que eu tenha energia para protestar, nem para me opor... Porque é que eu sofro com tudo e porque apenas as coisas simples e inesperadas me encantam? Um galho de árvore tocado de luz clara, que porventura encontro no caminho, um sorriso de mulher que passa e que eu nunca saberei quem é, apesar de o guardar no coração, um desmaio de céu ao sol-pôr... E, ainda nestas coisas, o prazer vem tecido de amargura: e uma tristeza deliciosa, como a de um amor que vai findar e de que a gente se apressa a beber os últimos olhares, feita, eu sei!, da pena de não ser a árvore, o sorriso, de os não ver todos os dias, de talvez os não sentir mais fundo... Para os outros gozos de que falas e para que vou de propósito, levo então sempre comigo um dos múltiplos seres de que sou composto, acordado e de pé — a Dúvida. Não me abandono nunca: vou a raciocinar, já de antemão tendo visto tudo, e tendo medo da amargura que resta sempre na alma... Duvido de tudo, até das coisas mais simples, de forma que, apesar da minha sensibilidade, parece que feita de propósito para o gozo — converto-o sempre em dor. Sou como uma guitarra demasiado afinada e a que estalam as cordas...
Vocês têm reparado numa coisa?... Que se vertem lágrimas unicamente por vermos os olhos de outros doentes... É por uma questão de alma idêntica que damos esmola e que temos pena das desgraças alheias. A piedade é afinal por nós e não pelos outros...
É como quando sei que estou a fazer uma coisa má e continuo; quando sei que estou a fazer sofrer alguém que amo e continuo. Há uma parte do meu ser que se revolta, mas não sei que fatalidade me impele e me faz ainda, para me esquecer, fazer pior...
Hoje, por exemplo, foi para mim um dia de exaspero, destes dias em que não amo ninguém — e agora bastou esta macieira, como uma frase sentida e arrancada do fundo do coração numa conversa estéril e seca, para me arrasar os olhos de lágrimas... Como eu sou contraditório!
A desgraça nos outros aflige-me por egoísmo. Quando alguém me descreve um doente ou eu o vejo, tenho pena do egoísmo: começo a ver aquela doença em mim. E é por um raciocínio idêntico que dou esmola. Egoísmo — egoísmo e vaidade.
Encontro a dor no fim de tudo. Não vou para um prazer sem pensar no fim, na desgraça que em tudo se aninha, no tédio de ter realizado... E na minha alma se faz a pouco e pouco um grande vácuo, um amargo tédio por a vida ser só isto, por o sol brilhar só de uma forma, e por já ter imaginado todas as coisas... E no entanto eu não vivi senão por imaginação.
Sou apenas um duro egoísta, sem alma, capaz de me enternecer, de uma grande sensibilidade, mas não de uma grande dor? De tudo sentir, mas não de sofrer muito?
Eu que me comovo com uma palavra sentida, serei tão incompleto e tão grande egoísta, que não seja capaz de sofrer? Homens de génio há que morrem-lhes os filhos e ficam secos, e porque um certo dia, numa certa hora, pisaram um bicho, é como se lhes tivessem calcado o coração! Assim conheci eu alguém, que fugia de casa a chorar de todas as vezes que lhe podavam as fruteiras do quintal e que deixava a mãe a morrer à fome!
Esta piedade que eu sinto por tudo o que na vida magoa, não é um egoísmo? Não é antes piedade por mim próprio e um dilacerar da minha própria alma?... A minha desgraça cavo-a eu e com que fúria! Pormenores que para os outros passam despercebidos, miúdos casos da existência que para nada importam, com que furor, ainda que se rompam fibras, eu não os cavo — coveiro que anda a abrir a própria cova para enterrar o quê? Restos que para nada importam, porque a alma, ilusões, tudo já despedacei. O meu infortúnio faço-o eu, maldita sensibilidade! A minha alma corcova, com pedaços torcidos, paralisias em parte e noutras tão sensível que se lhe não pode tocar...
A minha face empederniu-se. Apenas nas horas de dor um rictus ma corta, com uma expressão de amargura. Poderosa máscara arrepelada de dor, tenaz formada pelo nariz recurvo e pelos fortes maxilares salientes. Depois há nos meus olhos quietos e baços, nas menores linhas da minha figura, não sei que canalhice, que massa de lágrimas e de esgoto!...
De tudo o que queria ser se fez em mim uma grande derrocada. Por vezes ainda um resto de ambição brilha num ímpeto, como uma lâmina que se desembainha, mas logo cai prostrada e morta...
Esta mesma secura em que vivo me aterra. Sou como uma criatura que visse o fundo de todas as coisas: no amor o interesse, na caridade o egoísmo. Estou seco como um mirrado galho de árvore ao fim do estio e em tudo encontro o fastio e o tédio.
O mesmo horror da morte me passou. Encolho os ombros agora, e, de entre tudo, só uma coisa me resta: o Sonho. No covil do meu quarto, donde agora nunca saio, agarro-me com sofreguidão à mais miúda ideia, até que de a exagerar me canso. Tanto sonho que a queimo. Tenho mesmo os sonhos divididos, de forma que tudo o que eu queria ser, os triunfos que sonhara, as grandes coisas que imaginara, as vejo, as tenho aqui comigo, conforme a minha vontade omnipotente. E há dias em que me deito cedo, dizendo-me: Vou ser Deus! Deus!
É por isto que eu fujo de conversar.
Sou tão comediante, que nunca digo o que penso e o que sinto. Também nunca oiço o que os outros dizem, e, enquanto finjo escutar atento, penso no que vou dizer. Assim o que digo são restos de frases, palavras que trago na cabeça. E da conversa saio sempre humilhado e irritado...
Desato a chorar com uma pena de mim!... Estou aqui, estou doido.
Às vezes vou passear com outros e no fim de uma hora acordo persuadido de que tenho conversado muito. Na verdade tenho ido mudo: a conversa tem sido comigo, sempre comigo, destacada, feita de pedaços, e não sei discriminar onde começa o sonho e acaba a realidade...
Eu nunca estou só. Quando me isolo é que estou mais acompanhado: torturas, sombras, ilusões...
Quando, alta noite, na cidade toda negra, vejo uma janela que ainda luz, me digo: Tu, quem és, tece, tece, ainda que tudo seja vão, se quebrem os fios e nada te reste por fim: tece, ainda que na engrenagem te vão ao certo pedaços de coração, de nervos e de alma...
Desolação infinita destas noites de invernia brava, com o mugir da água escura e o mar a buzinar na costa. Todos se deitam cedo, e eu encosto a testa, a escaldar de febre, aos vidros da janela... Como ninguém me conhece! Como eu próprio me conheço mal!... Deus! E uma cova negra, de infinito, diante de mim... Só o mar brame numa tristeza que me faz chorar...
Passo o dia a espancar o pressentimento de uma catástrofe e é singular como a desgraça me aproxima dos desgraçados. A desgraça não isola como a felicidade. Eu faço parte da legião dos que sofrem e não é por mim só que eu falo nem sinto: vejo a desgraça em tudo. É que em tudo acarvoo e só me sossega o sonho, construir outra vida imaginária. E como um espinho a espicaçar-me persiste, até que me enche, por fim, uma amargura infinita, uma desolação, que esta noite de ao pé do mar, a água escura, a ventania revolta, mais acarvoam, com o meu destino, a minha sorte, o meu futuro assim negro...
Na vida eu não tenho senão, não direi amigos, mas pessoas por quem me apaixono e inimigos. Nunca indiferentes.
Porque é que eu faço de propósito coisas que fazem sofrer? Que prazer encontro nos espinhos que me dilaceram?... E o pior é que eu sou diferente dos solitários que só se ciliciavam a eles: sou diferente porque sofro e faço sofrer os outros.
Oh, os meus amigos! Eis que hoje, porque um deles é feliz, me ponho a raciocinar sobre a amizade, e muitas coisas que sentira sem saber exprimi-las e que lera sem saber compreendê-las, me aparecem agora nítidas. É que eu já alguma vez me alegrei com a felicidade de um amigo? Que é que senti, senão esta alegria exterior, adquirida e ensinada, quando alguém com quem vivo é feliz? Inveja ou raiva — e sorrio, a boca seca, o olhar perdido numa quimera de desastres e de amarguras... E no entanto sinto a necessidade de me dedicar, de amar, de sofrer com a dor alheia. É isto afinal: eu só sou amigo dos outros quando eles sofrem, e preciso que me sejam inferiores, que sejam perseguidos pela desgraça, para eu os amar.
Que os indiferentes ou os meus inimigos sejam jovens, belos, ricos, que me importa? Mas que aqueles que vivem comigo sejam mais felizes do que eu, tenham mais talento, calquem a minha vaidade a todos os minutos e me venham contar, para eu me alegrar, os estúpidos!, como são felizes, enraivece-me e faz-me sofrer. Quem odeio são os meus amigos — se triunfam...
E isto obriga-me a pensar nos desgraçados e nos grotescos, na dor dos impotentes, na miséria dos que têm de ser nulos toda a vida; neste roer da inveja, que enche de rugas, que entorna fel na alma e faz das noites um monologar contínuo, cortado de ilusões e de quedas, e da vida um desespero. Que livro, o livro de um incompleto, que narrasse a sua ambição e os seus ódios, que estatelasse com orgulho toda a sua alma, para que os outros se rissem da sua impotência! Revoltante e humano, surpreenderia pelos recantos inéditos de alma, se dissesse toda a amargura reles, mas que faz sofrer e que despedaça muito mais do que as grandes desgraças, que na sua grandeza têm quase uma compensação, e que não deixam para toda a vida os vestígios saburrentos destas misérias irritantes. Esse esguicho de lama daria talvez a sensação de riso e de arrepio de um clown enforcado num ramo de azinheira, em sítio ermo e bravio...
Com que extraordinária sinceridade me ponho, numa fúria, a descobrir, nos outros, vícios e defeitos que eu mesmo tenho e a odiá-los por isso!... Tenho a certeza de que é invejoso! — digo-me. Mas porque é que me encarniço a procurar nos que amo más qualidades? Sou sincero quando, sem raciocinar, imediatamente, ao encontrar nos outros um defeito ou um vício, os rebaixo aos meus próprios olhos, para me demonstrar que são indignos de ser meus amigos?... Não, não é por isto: eu é que sou invejoso e, por inveja, é que os humilho com fúria na minha própria alma...
Egoísmo absoluto, secura de alma que me desespera. Nem uma ideia a que me agarre, nem ao menos sentir, ter uma dor de alma tão forte que me faça esquecer... Esquecer! Felicidade de ser árvore!...
Como é pequena a Dor que eu, imaginativo, engrandecera! Ó quimera da vida! Pois a vida é isto? Estes apertos de mão, esta mentira, este monólogo entrecortado de risos, de lágrimas e de infâmias? Este sonho e esta lama? Esta inveja e esta vaidade? Isto é que é a vida? Ou eu sou diferente?...
Os pessimistas! Mas eu adoro-os, tanto quanto os otimistas me irritam como criaturas que não têm alma. Que é ser pessimista? É crer na vida como ser diabólico, blasfemar é ainda acreditar em Deus. Pois não são só os que sofrem, aqueles a quem magoaram nas suas ilusões, e que, como uma grande sensibilidade, a vida brutaliza, que se põem a dizer mal dela?
Dá-se comigo uma coisa curiosa: é que muitas vezes me acontece estar a dizer palavras falsas e a representar, sabendo-o. Digo-me: Estás a representar! — e apesar disso continuo, com o mesmo sorriso fingido e as mesmas palavras feitas para a galeria.
Diálogo:
— Porque não fazes isso?...
— Já o fiz, porque já o sonhei: já tive a imaginação do triunfo, de ter vencido, de ver os sorrisos amarelos dos meus inimigos. O resto agora é o estupor da realidade: é transformar uma coisa alada, de sonho, numa obra fria e de pedra, torturante sempre e tão seca, tão dura!
Tenho vontade de chorar, de me desfazer em tristeza, de me pôr a dizer baixinho o que sofro, as iniquidades que me nascem na alma: há certas horas em que a gente tem necessidade de dizer tudo, de contar a sua vida: creio que a confissão cristã é obra de um grande psicólogo...
Ao contacto da vida cada vez me degrado mais. Fujo para o sonho com um «ah!» de satisfação... E há dias em que me enlameio na vida para me encharcar com mais alegria no sonho.
Fecho as janelas e as portas — fecho tudo — porque só a noite é propícia ao sonho — e reentro na minha vida habitual, na única em que me sinto viver, em que sou rei e amado, com os fantasmas que criei e que vivem na minha companhia. Até as paisagens de sonho me parecem mais belas que as da realidade.
Já vivi numa cidade construída de restos de sonho que uma ventania de loucura atirara para a planície, como nuvens aglomeradas num fundo azulado de tempestade.
(Às vezes os meus sonhos riscam-se de carvão, mordem-se de delírio — e há fisionomias que depois encontro na vida e que já vi com linhas diferentes que as desfiguravam. Na rua surpreendo às vezes olhares de quem me conhece, logo reprimidos...)
Era uma cidade edificada ao pé de uma laguna vítrea como o olhar de um morto: água gélida e polida ao fundo da planície, que nenhuma charrua lavrara, Nínive construída de uma só pedra enorme e negra.
...Sei que a multidão, no silêncio e no negrume, arrancava de súbito em correrias pelas ranhuras esganadas das ruas, sem destino e sem sentido. Curvada, numa dor contida e atroz, sumia-se na noite e deixava um risco de som magoado como uma viola que se parte. Ficaram-me na memória restos de caras aflitivas, linhas, esgares, corpos hirtos e rapados. Toda a turba fugira, subindo um calvário, descera o monte, alagara o vale, terras nuas até ao horizonte acarvoado, com um brilho de dúbia claridade quieta ao meio... E, porque as nuvens alastrassem, desaparecera, comida da treva, como se a tragasse, num grande silêncio, a própria noite.
Mas a claridade cortou outra vez o céu, uma claridade baça, imóvel, em feixes, iluminando metade do monte, metade do vale, deixando o resto no nada, uma grande mancha alastrada sobre a vertente da esquerda, e a multidão apareceu, indecisa, fugidia, adivinhada extensa na luz dúbia, a encher toda a planície, como num carvão de Sequeira, e troncos contorcionados, faces arrepiadas, contrações de dor, misturavam- se, a subir, a esgadanhar-se, numa fúria de vida... E, como a luz caísse então para o fundo, toda a planície se coalhava da turba. E os gestos que eu fazia repetia-os a multidão, e risos baixinhos, como um chapinhar de maré, iam agora do princípio ao fim da planície...
Sucede-me às vezes ir pela rua fora e ter a impressão de que toda a gente parou a olhar-me. Não me volto para não endoidecer, porque tenho a certeza que dava com a multidão parada, imóvel, a olhar para mim, não com a mesma cara indiferente em que fingem não me conhecer, mas com a outra dolorosa, com a cara trágica da verdade com que as encontro no sonho. Os risos, oiço-os e perseguem-me como o chapinhar da maré que sobe...
Eu estou doido! A minha vida é uma contínua humilhação em busca de uma quimera. Depois pergunto-me: Para quê? É que vale a pena? Não me engano? Quem me diz a mim que não sou tão nulo como os outros, absolutamente como os outros?... Enregelo-me só de pensar em tanto esforço perdido, se penso que trabalho para que os outros tenham pena de mim. Como eu os odeio! Com que risos, que me fazem doer as faces, não os escuto contar-me como triunfam! Para que consintam que eu tenha valor, lhes sorrio, com fel na alma, a boca seca: humilho-me, encolho-me, não tenho opinião e depois a sós enraiveço-me. A voz cá dentro começa a acusar-me: Para que te humilhas, besta? E diz-me como sou vil, mostra-me a minha alma mesquinha e a sangrar... Depois, esta mesma certeza de nulidade faz com que eu me ponha a pensar na morte deles, um a um, ou em fugir para muito longe: nunca mais ver ninguém que por mim mostrasse um interesse, que eu sei fingido, uma amizade que me enraivece, porque se parece com a compaixão...
Eu não compreendo a amizade assim, nem o amor assim. Parece-me gelado e faço sempre até da secura uma paixão. A piedade que tenho pelos bichos estende-se até às duras pedras dos caminhos. Acredito que tudo sofre, que tudo tem alma e emoção — as árvores, as criaturas e os calhaus. E até, sabei-o, já uma vez me aconteceu ter lágrimas pela sorte de uma pedra que nem minha conhecida era.
Muitas vezes me parece que sou composto de duas criaturas: uma cheia de emoção, sendo capaz de correr perigos para salvar um bicho da morte, outra que dentro em mim se encarniça, raivosa e má, com invejas, pragas, coisas mesquinhas, tumultuárias e indefinidas...
A vida parece-me uma má tragédia onde as criaturas são despedaçadas por entre lágrimas, berros de pavor e risadas de escárnio. Tenho visto gente crescer, amigos mortos, catástrofes, árvores que se cobrem de flor, noites tão húmidas de luar e de vozes dispersas que dão vontade de morrer. Que faço eu aqui? Não acredito em nada a valer, não tenho fé, nem sou capaz de me sacrificar por uma ideia: vou no vagalhão, empurrado, arrastado ao sabor das ventanias. Parece-me que já vi tudo e já senti tudo. E no entanto tenho medo de morrer e ponho-me a pensar às vezes que só vale a pena viver para sonhar noutra vida melhor: para tecer quimeras, ideias... Mas tudo isso é tão fugitivo!...
Vi que a multidão é má e se ri e despedaça, indiferente, criaturas; vi que há homens tão desgraçados que até na dor são ridículos. As suas amarguras fazem rir a multidão. Nascem para sofrer, eternamente perseguidos, encolhidos, habituando-se até à desgraça...
Outros têm na vida um método e vão por aí fora e tudo subordinam às suas ideias, torcendo a vida p'ra que ela caiba dentro de regras. Riem, choram, atropelam-se. Sofrem e f azem sofrer. E as árvores gelam de flor, há noites de tanto luar que fazem palpitações de coração. Tudo em torno é indiferente a esta tragédia, em que uns não sabem para que representam há tantos séculos, e os outros, de tanto escutarem, vão ouvindo por hábito sempre as mesmas coisas, monótonas e repetidas...
Para afinal morrer!... É certo: todo este sonho, esta luta, toda a vida feita de desesperos e de lágrimas, de coisas encadeadas, umas ridículas e outras dolorosas — para afinal morrer!... Se olho para trás, é a mesma cadeia, tecida a lama da vida e a ouro do sonho, amassada nas mesmas lágrimas; se me ponho a ver o que me espera, é a mesma coisa ainda: caras que envelhecem e se fazem duras, corações petrificados, o mesmo tédio, a mesma rua comprida e estúpida. Que estás tu aqui a fazer?... Ah sim, os outros!... Os outros não me importam — se não os odeio... Para que é que eles me humilham? Para que é que eles triunfam na vida? Para que é que são felizes, quando eu me desespero?...
E a verdade negra é que esta mesma inveja me dilacera... Quando me ponho a odiá-los, ao sorrir-lhes, uma voz se encarniça dentro de mim, a bradar-me: Sou um invejoso! Sou um invejoso!... E depois tenho a noite perdida, deprimido, humilhado, a cara a doer-me de lhes ter sorrido, na alma o rancor, a vontade de romper um dia a cuspir-lhes o meu ódio...
Mas isto não dura, pois que eu nem no ódio tenho energia...
Esta noite bem vi que falavam de mim e que se riam de mim. Bem o sei e bem o sinto, e é humilhado, rasteiro, que eu me ponho a escutá-los, a falar-lhes...
Acontece-me às vezes não ver um amigo dois meses: quando outra vez o encontro, é para mim um desconhecido.
Suspendem-se na minha alma teias de aranha, como num cubículo de há muito abandonado. Não sei o que hei de fazer. É um tédio vago, feito de névoa alastrada, que só foge com a vinda da noite, para que vou desesperado como para um princípio de cova, um começo do mistério do não-ser. Aborreço-me a mim próprio, depois de ter aborrecido tudo: fico absorto, sem bulir, desesperado por não sentir, nem pensar.
É por isto que eu fujo de conversar.
Não é por ser comediante que nunca digo o que penso e o que sinto. Também nunca oiço o que os outros dizem, e, enquanto finjo escutar atento, penso em ti — vivo para ti... Assim, o que digo são restos de frases, palavras que eu trago na cabeça. E da conversa saio sempre humilhado e irritado...
Às árvores, para dar flor há de lhes doer.
Ando a passear na vida uma imaginação desgraçada, que me faz achar tudo pequeno na realidade. É assim que por imaginação tenho sofrido tudo e sentido tudo: portanto, se uma desgraça cai sobre mim, ou se vou entusiasmado para um prazer, acontece-me amiúde ter um — era só isto! — de espanto. Tanta vez tenho assistido à minha perda e à dos outros, a escarlates quimeras, que ser morto ou ser rei, enforcado ou carrasco, não me espicaçaria com novas sensações. Estou gasto e velho, porque, sem — ó desgraça! — ter vivido, tudo vivi. Eis a razão de ao lado da minha amargura, do feitio azedo, de perseguido, que há em mim, uma outra porção da minha alma estar cheia de ilusões, de candura e de lágrimas: é que tem sido por imaginação e não na realidade que vivi.
Tenho medo de morrer. Porquê? Pelo desconhecido: e muito mais me aterra outra vida, consciente, do que o repouso, ser couve, árvore, macieira do meu quintal. Tivesse eu a certeza de que a morte era apenas a transformação e nada de pior, e, morto, me plantassem uma árvore, um simples espinheiro na cova, e toca a ser seiva, a ser flor, a apanhar sol, sem sofrer e sem coração e sem pensar. O que me aterra é encontrar-me depois com não sei quê de espantoso, de cova... — O que me aterra e o que me atrai.
Serei eu incompleto? Sou apenas um duro egoísta, sem alma, capaz de me enternecer mas incapaz de uma grande dor? De tudo sentir, mas não de sofrer muito?
Homens de génio há que morrem-lhes os filhos e ficam secos, morrem-lhes as mães e ficam secos, e porque um certo dia, numa certa hora, pisaram um bicho, é como se lhes tivessem calcado o coração!... Assim, conheci um homem que fugia de casa a chorar todas as vezes que o hortelão podava as fruteiras do quintal, e deixava a mãe morrer à fome! E estes homens sabem descrever a dor como ninguém, contam-na, por imaginação, nos seus livros, tão sofrida que nos fazem chorar.
Um pobre homem que sofra muito, e que nos conte a dor, é muito menos capaz de nos transmitir essa sensação do que um homem de génio. Porque um sofreu apenas, sofreu como uma árvore que se corta, sentiu a dor: não a comentou, não a explicou, não a transmitiu ao cérebro, não a armazenou: sofreu como um simples, e, se a quiser contar, tem duas ou três palavras apenas: falta-lhe a imaginação da dor. Algumas vezes essas duas ou três palavras valem por todas as páginas do outro; mas valem só para quem tenha imaginação para as receber, para as sentir e para com elas criar...
Não! A grande dor, tão humana, talhada de uma só peça, que aniquila e parte o coração e o crânio, não a sentem; perde-se, desfeita em múltiplas sensações, que vão despertar ideias. Por isso mesmo também os nervos se lhes torcem e vibram com a água que corre, com tons violáceos de montes, ou com a saudade, com a alma de uma árvore, pois que eles até sentem as coisas agressivas ou de braços abertos...
Enriquecem o seu cérebro, a sua personalidade, e o seu génio é cada vez maior. Egoístas duros, tiram dos outros o que lhes pode aproveitar, dos amigos o que lhes pode servir para a sua alma: incapazes de sofrerem, de se dedicarem, de viverem a não ser para eles próprios.
Quanto mais desenvolvem a sua personalidade, feliz e rica, menos aptos para sofrerem a grande dor e mais prontos em sentirem piedade por tudo, pelos bichos, pela paisagem, por uma árvore que se esgalhe num fundo opalino, por um azul do céu que os enterneça, lágrimas nos olhos a uma palavra sentida, coração como uma pedra diante de uma grande desgraça.
Às vezes para fugir a mim mesmo percorro os arredores desolados da cidade. Deito-me na terra ao pé de uma poça e ponho-me a pensar...
As rãs verdes atiraram-se à água: pelhau! pelhau!... Últimos dias de Abril e um calor de forno. Debrucei-me à beira da lagoa, à sombra, estendido nas agulhas dos pinheiros. Ao lume da água esverdeada e lisa nasciam salpicos de floração pequena e viva e verdes tufos de erva.
Apenas me estendi, que logo as rãs deitaram a cabeça de fora, o olho esbraseado e vivo posto em mim. Decerto o meu aspeto as tranquilizou, e adivinharam porventura a simpatia que eu tenho pelos bichos inocentes, pois que sacaram a barriga para o sol...
Já à beira do caminho encontrara muitos sapos que nem buliram sequer, extáticos para o sol, para as árvores, para a primavera, na felicidade de se sentirem viver e crescer: à beira de um caminho, um tinha outro às costas; em cima de um calhau, outro parecia petrificado, a babar-se, numa fascinação. E toda a lagoa fremia de vida: pequenos bichos viviam com ferocidade, álacres, e corriam, nasciam, morriam contentes. Rãs pançudas coaxavam com satisfação, por estar calor e por vir a primavera; e uma tinha um coá-coá de baixo, tão glutão, que eu mesmo me senti rir, enternecido. As árvores medravam, cobriam-se de flor. Não tive mão em mim, que não me pusesse de ouvido à terra, a escutá-la estremecer, desentranhando-se em vida e em amor. Que bafo é este procriador que atravessa a matéria, a fecunda e a transforma em seres e em vida? Que força é esta, única, cega, que cria, organiza, e além transforma? Quem me diz a mim que ainda não hei de vir a ser rã, ou espinheiro de valado, e que, morta a razão, não terei enfim a felicidade dos bichos — a de se sentirem viver?...
A imobilidade não existe, a morte é uma transformação apenas... Ser hoje homem, amanhã ser sapo ou ser flor, que importa? Tudo se paga; a felicidade que estes bichos têm não me pertence: nem sou vivaz como este espinheiro florido, nem o sol, a luz, a primavera, me impressionam como a eles. Se raciocino, eles não têm coração para ser despedaçado, nem alma para que os outros se riam.
Que é Deus? É esta força inconsciente, cega, fecunda, que rebenta na matéria, enche de flores as árvores, de emoção os poetas, e, cega como o destino, forte, sem piedade, tudo transforma, e leva, num aluvião, corações, lágrimas, cérebros, para irem mais tarde, numa outra primavera, cobrir de flor as cerejeiras?...
Borboletas noivavam, perseguiam-se aos pares, amarelas, escarlates, cor-de-rosa — pequenas flores a voar, a estremecer na luz, a poisar de leve nos galhos... Borboletas, árvores, bichos, a cada primavera que vem, toda a terra estremece, de tal maneira que me quer parecer que ela é também viva e se sente feliz por viver e noivar.
Porque é então que tenho medo de morrer? É esta transformação que me aterra?... E eis o que na primavera, diante da Vida, me ponho a pensar.
Se eu pudesse com a consciência de mim próprio ir ser árvore de caminho, macieira de quintal, deitar galhos, encher-me de floração, ser feliz com o sol, com a primavera, com o azul, dizer comigo muito contente, e muito baixinho: Olha, lá vai aquele homem trabalhar, sofrer... — que me importava a morte?... Se eu soubesse que, bicho, forte, vivaz, à espreita numa toca, dizia comigo: Espera, lá vai aquele poeta a tecer!... — até era amigo da Morte!... O que me custa, afinal, é a perda da minha personalidade: habituei-me, de tal maneira, ao sofrimento, que me custa a deixá-lo e a ser feliz. E vale realmente a pena? Vejamos: o que faz a minha desgraça, e a nossa desgraça, é a consciência e o raciocínio. E é isto exatamente o que me custa a perder. Porventura um bicho se põe a pensar: fiz mal ou fiz bem?...
E eis que também, ao ver grandes árvores fortes, sinto que tenho pena de não ser assim, de não deitar galhos, dar sombra, esfuracando a terra com raízes. Decerto alguma porção do meu ser se lembra de ter sido pinheiro... Vocês nunca ouviram, numa noite babada de luar, um escorrer triste de água, como vozes a chamar, a chorar? É a água que se lembra de ter sido árvore, gente, e reluz... Para a minha esquerda tudo está coberto de floração: parece que bandos de borboletas cansadas poisaram sobre os galhos dos pomares anainhos...
Tudo isto vive em ferocidade, desde as árvores até às couves luzidias e verdes daquela pequena horta...
A terra fermenta e dessa podridão saem árvores, bichos, ilusões... Ponho-me a pensar: o que é a vida diante desta cova eterna — o infinito? Que é viver? Sinónimo de sofrer? E a morte de que tinha pavor, a morte que o desvairava?...
...Sempre a mesma coisa, as mesmas palavras remoídas, as mesmas caras — que me irritam — as mesmas ideias, que me surpreendo a repetir... Mas para que vivo eu? E o que é a vida?... Sou igual a esta árvore e o mesmo sopro procriador que a enche de floração é que me tolhe de sonhos?...
Se me surpreendo a pensar, de noite, e olho para a cova do infinito, tenho medo que me fuja a razão. Indago, olho para trás, para toda a minha existência, a ver se decifro o enigma que me tortura... Pois a vida é isto? Estas lágrimas e esta dor, estes apertos de mão fria, este tédio e esta lama, este desespero de querer sonhar?... E o que represento eu diante do infinito, o que é a humanidade diante do que não acaba — buraco escuro onde a poalha dos mundos nasce, envolvida no mesmo mistério que neste Abril salpica de floração as macieiras?
Sensibilidade exasperada, com ímpetos de louco, sinto-me como fora do meu lugar, em busca nem eu mesmo sei do quê, enquanto à volta de mim a vida se sucede harmónica e viril. A primavera tudo enche de floração, a morte cobre tudo de vida. Aborrecido, eis-me sem energia e sem vontade, a não ser às rajadas de nervos — e tudo o resto no mundo me parece vivaz e forte.
O que faz a minha desgraça é a consciência e a razão. Por lógica sou obrigado a concluir pela felicidade do não-ser, de entrar no bafo procriador, que tudo enche de vida e de emoção, de fazer parte do inconsciente, de ser a força que se não pode separar da matéria, com as suas combinações químicas, hoje árvore, amanhã luz, seiva, água corrente, tudo menos homem, porque esse raciocina e sofre, enquanto o resto sente, sofre talvez, mas não é desgraçado, porque a desgraça provém não do sofrimento em si, mas da razão...
Fico horas estendido na terra a ver crescer as ervas e no meu crânio vai um ruído de fermentação, como se eu próprio me diluísse na matéria. Imagino a Morte e a Vida. Toda a terra ferve em decomposição de cadáver: brotam as árvores, que pelo seu turno se enchem de floração e mais tarde morrem: ela própria é um vasto cemitério, regado a lágrimas e a amargura e de onde a fecundidade, a emoção e a vida renascem. A química produz, conforme a substância da matéria, a Vida, a Morte, a Luz e o Amor. Portanto, a vida é sem destino, sem outro fim que não seja viver. E viver para morrer é irrisório.
(E no entanto, o que eu tenho é um medo enorme da morte... Posso fugir, procurar esquecer, ler os meus filósofos, que o terror da morte não me deixa. Descarnada e triste, encontro-a no fim de tudo, em todas as coisas. Até este galho de macieira, tão coberto de floração que me enternece, a própria fecundidade, a minha emoção, ma fazem lembrar. Confesso-o, confesso-o, tudo é vão, filosofias, palavras, sistemas!... Só existe uma única coisa boa: viver, viver!...)
Quem me dera a mim, em lugar de uma criatura levada pelas rajadas dos nervos como por desencontradas ventanias, ser um homem de emoção sempre igual e sempre pronta. Deveria na minha vida ter tido uma grande desgraça que me afastasse deixando- me mais forte e sozinho: teria um quintal com uma grande árvore, e aí, com os meus filósofos, construiria um sistema para o meu uso, com pena da humanidade e lágrimas e emoção diante de tudo — das árvores e dos bichos. E quando morresse seria enterrado ao pé da árvore (porque o cemitério ainda me desvaira mais do que a morte) e ajudá-la-ia a crescer, a pôr mais flor e mais galhos.
Ponho-me a ver e no fundo do meu ser não encontro senão egoísmo e vaidade. Se sou bom é por vaidade e por comédia: represento para me enganar a mim e aos outros. Quando uma doença ou a morte dos outros me torcem os nervos, porque é que tenho pena, canalha? É porque me vejo logo a mim, estendido, doente, morto...
A verdade é que a minha alma é seca como uma pedra, e não é pelos outros que choro, é por mim.
Digo estas coisas nem sei bem porquê: é como se no fundo do meu ser alguma voz murmurasse as palavras que repito. Às vezes surpreendo-me a dizê-las, a fingir sentimentos, a mascar frases que já ouvi. Comédia! O que dentro de mim murmura é aprendido, ensinado, visto que não sinto. Ainda hei de espancar tudo quanto em mim é fingido e mostrar-vos depois a minha alma, a sangrar, cheia de ódios, viscosa, mais viva... Isto é tudo fingido. Outrora eu me supunha desgraçado por ver que em troca do amor, da paixão que punha nas mais miúdas coisas da vida, em todos os sentimentos que, exasperado, engrandecia, não encontrava senão cansaço ou afetos que me pareciam gelados. Depois pus-me a pensar: mas eu é que sou doente, e a vida foi-se às ilusões, arrancou-as e deixou-me a alma nesta secura.
O amor e amizade que procurava não existem, nem podem existir, eu bem o vejo agora. Era tudo falso, aprendido, inventado. (Mas esta invenção é ainda a única coisa boa da vida para mim. E as lágrimas que chorei, tenho pena de já as não chorar, e tudo o que sofri sobre as minhas ilusões mortas, quem mo dera sofrer ainda!...)
Como a vida me repele, cada vez mergulho mais fundo no sonho. Sonho mais, sonho acordado. Ando aos tropeções na vida.
O sonho é o único refúgio que me resta. A amizade é uma mentira, a vida fere- me? Reentro no sonho. O amor é grosseiro? — tenho Hélia, que criei, à minha espera...
Na minha alma é tudo vago e inacentuado, como nos dias cinzentos de névoa...
Tudo é ilusão e mentira. As árvores que eu amo sobretudo na terra, as coisas e as criaturas, são ilusões: a gente é que as cria, as faz belas ou tristes, sofredoras ou hirtas; a morte e a vida, transformações que para nada importam; o homem, uma quimera com ânsia na alma...
Portanto só o sonho nos resta e só por ele vale a pena viver.
No fundo do meu ser se amontoou um grande, um profundo asco pelas criaturas. Sob a máscara da virtude encontro o egoísmo e a vaidade. Acho que só vale a pena dominar, conduzir a multidão estúpida e ignara, para passar a vida e esquecer esta luta continuada de exasperos e de aspiração que na alma de cada um se debate. Mas se vou a lutar pergunto-me com tédio: Para quê?... E há dias em que tenho pena de não sofrer como outrora... Horas e horas aperto a cabeça nas mãos e pergunto-me raivoso: mas que ideia faço eu de mim e da vida? Que é que eu significo?
Encontro a dor no fim de tudo. Não vou para um prazer sem pensar no fim, na desgraça que em tudo se aninha, no tédio de ter realizado... E na minha alma se fez pouco a pouco um grande vácuo, um amargo tédio por a vida ser só isto, por o sol brilhar só de uma forma e por já ter imaginado todas as coisas... E no entanto eu não vivi senão por imaginação.
É sempre a mesma coisa há meses, a mesma ansiedade sem causa, que não sei de onde provém. Parece-me que espero uma desgraça desconhecida, uma catástrofe que ignoro — e que nunca chegará. Que nunca chegará, ouves bem?... Vivo alheado, o cérebro espalhado por todas as coisas: apenas esta inquietação me domina e enche. Se saio do sonho, não sei viver. Sobressalto-me com o menor ruído imprevisto: a porta que se fecha é para mim uma angústia. Compreendes isto? Antes a catástrofe que espero caísse sobre mim e me estatelasse no solo, do que este terror contínuo, a inquietação do que é vago, o aflitivo do nada...
E eis-me assim absorto: as ideias não me prendem, as coisas não me prendem: vão e vêm sem se fixarem no meu espírito, num redemoinho. O findar das tardes, nesta primavera, é-me então doloroso. Quase nunca saio: é na prisão do quarto andar que teço as minhas ideias. Vês tu? Às vezes tenho esta ilusão: de que o meu quarto está cheio de teias de aranha, a tal ponto tenho aqui imaginado e sofrido... Sobretudo ao fim da tarde é tão triste! A luz entra pelas grades, pálida como clarões de almas que se extinguem. O crepúsculo enche-me de nostalgia. Lembro-me de coisas de outrora, e é como se sobre mim passasse o afago de olhares tristes de todas as mulheres. Tenho pena do que não vivi, do que não gozei, da luz e das árvores que não vi, de todos os sonhos que me não lembram; do meu quimérico passado, há mil anos, quando fui Rei e Poeta; e parece que uma parte do meu ser morre nesse instante, irremediavelmente, na luz que se extingue. Amanhã já não serei o mesmo: a minha alma deve fazer diferença. Deixa-me explicar-te isto melhor: é como se eu fosse composto de diferentes seres, cada um com as suas ideias, os seus sonhos e as suas ilusões, e, por cada tarde que finda, na luz que cerra os olhos, um desaparecesse para sempre, levando-me uma parte de ventura e de tristeza...
Há tardes que se evolam como perfumes; enchem de nostalgia e enervam...
Eu nunca estou só. Quando me isolo é que estou mais acompanhado.
Aí vem, aí vem a desesperada hora do crepúsculo... É dia de entrudo hoje. A rua está muda. Só a chuva cuspinha, há lama negra, um lampião começa a brilhar com uma tristeza feita de tédio e de coisas miúdas, vazias e nulas, e um bêbado dá arrancos, com baques pícaros nas lajes...
Bem sei, é a desesperada hora do crepúsculo; escusavas, bêbado, de mo vir lembrar com os teus berros de uma amargura que põe os cabelos em pé, e com os teus tombos pela lama mole e negra, que me degradam, como se me salpicasses de vómitos, e me fazem pensar no suicídio... Aí vêm os mortos, aí vem Hélia, de mãos estendidas para mim, aí vem a noite, os fantasmas, a cova, bem o sei... Cala-te! É inútil, tudo é inútil: não é a luz do candeeiro que faz surgir os espectros, quando a minha alma está cheia deles, como de negras falenas. Tu, para quem escrevo estas últimas linhas, homem, escuta... A ciência é vã como os berros daquele bêbado que se roja pela lama. Não creias! Não creias! Que não acredites no desconhecido, quando a tua alma é feita de uma porção de infinito amassado em terra! Não acredites que os mortos voltem, e não tarda que eles venham chorar desesperadas lágrimas ao pé de mim!...
Vomita, estúpido, vomita na alma!... A esta hora os poetas começam a sonhar, os criminosos a tecer os crimes, e quantos dramas no escurecer, quando as lágrimas se não veem e só os soluços se ouvem, se passam entre paredes frias, nesta aflitiva hora do crepúsculo! A pobre costureira, que se debruça sobre o tecido para ver ainda, por certo se lembra de um amor já findo e deixa cair lágrimas sobre o linho gelado como as suas ilusões mortas; e tu, cuja janela aberta dá para o mar largo, em que estás a pensar, de olhos absortos, como se o visses, ao afogado, teu noivo, aparecer para as suas núpcias?... É certa, é certa, pois, aquela história da rapariga a quem o namorado morreu no mar e que o viu um dia, nesta hora angustiosa do crepúsculo, sair lívido e amortalhado da espuma, levando-a para sempre consigo?...
Tudo tem vozes, a esta hora, as ervas humildes e as secas pedras. Tudo tem bocas. Lembra-se a gente de olhares que não sabe já de quem são, de perfis perdidos, de corações que cessaram de bater...
Tudo em mim me diz que tu existes. Não viveste, mas és uma criação do meu espírito. Existes mais do que se pertencesses à realidade. Como, de contrário, explicar as lágrimas que choro por ti, o estado de alma indefinido em que fico nas horas tristes do dia, quando parece que a minha emoção se espalha pelas coisas e uma ânsia erra? Pertences ao sonho e és a única mulher que amei. Amei-te e adorei-te. Sonhar é bom — mas não é tudo... E depois escuta: ainda esta noite, quando eu bebia o luar, senti que te tinhas sentado ao pé de mim... Ouvia a tua respiração lenta, e não me voltei para que não fugisses, mas, sem que reparasses, devagarinho, pude ainda ver os fusos dos teus dedos. Outras vezes acordo alta noite, certo de que me chamaste, e já tenho também sentido, quando choro muito, que me poisas a mão no coração, pois que a dor súbita se estanca... Como, de contrário, explicar a própria vida, amarguras, lágrimas, tédio e rotina, a vida que só tem de belo o sonho?...
Ainda esta tarde, na hora de crepúsculo sobre todas amada que escolho para pensar em ti, eu tive uma visão... É singular! Muitas vezes tenho visto os meus mortos queridos, e a minha mãe quantas noites não tem aparecido ao pé de mim, desfeita em choro!... É singular como os sábios negam aquilo que não sentem ou não viram!...
Espera!... Espera!... Vou sonhar e vou criar à minha vontade a atmosfera para viveres comigo.
Foi noutro tempo, num tempo em que me parece que era sempre Maio, e longe de todos os corações gelados e dos sorrisos postiços. Havia árvores, árvores com grandes cabelos verdes soltos, um caminho que eu tantas vezes andei, de coração inquieto...
Vivíamos juntos e amávamo-nos, nesse sítio arredado e melancólico, com grandes árvores, uma antiga casa fidalga, e a vida livre, primaveras a noivarem, paz, invernos bravios sonhando ao pé do lume, e livros de poetas. Tempo lindo, saímos ambos: às vezes em Maio, no ar fino e doirado, as árvores deitam a primeira flor como um cândido sorriso ou um coração que pela primeira vez estremece. Levava um livro comigo e Hélia escutava. As minhas palavras animavam a paisagem: davam alma às coisas, às árvores, às águas das lagoas. Toda a minha alma se desprendia ao pé dela e a emoção espalhava-se pelas coisas. Aquecia. Ao ver grandes árvores, chorava: as árvores davam- me a impressão de me achar entre amigos a quem tudo se confia: sentia-me bom. Contava-lhes o que as pedras sofrem, o que as coisas sofrem. Líamos ou olhávamos as montanhas. Descobriam-se carreirinhos entre os pinheiros bravos: lenhadores rachavam árvores; um bom homem montado no seu burro partia; uma nuvem lilás errava quase a desfazer-se no céu. Para onde? Para onde? Onde iam dar todos os misteriosos carreiros da floresta? Como quereríamos ser a nuvem, partir, seguir todos os caminhos por entre os pinheiros, ser lenhadores, o saloio que lá vai no trote alegre do burro e que alguém num lar espera, as próprias árvores, a luz, a água que corre, a chuva, o sol; desfazermo-nos nas coisas, ser, com a mesma alma, a alma das montanhas e das ervas humildes...
A casa tinha uma varanda de pedra e era lá que te encontrava sempre, com o teu sorriso triste e o olhar doce e resignado. É certo, amei-te, como porventura tenho amado todas as criaturas que encontro na vida, tristes, humildes e cansadas... O amor em mim é tecido de piedade. Nunca as mulheres triunfais me fizeram bater o coração como as pobres criaturas melancólicas, feias, arredadas, cujos sorrisos têm mágoas e cujos olhares são velados pelas lágrimas... Tenho vontade de as consolar e de as beijar. Será por humildade? Será por egoísmo, porque me sinto, eu próprio, assim encolhido e doente, incapaz de beijar com sofreguidão lábios rubros de vida e de saúde, lábios jovens? Ou porque o amor que sabe a lágrimas me tenta?...
Espera... Não és apenas uma mera criação de sonho... Quando escrevo, sozinho, fechado, acontece amiúde estar com medo de voltar a cabeça para trás: tenho a certeza absoluta de que está alguém comigo, a olhar para mim...
Hoje beijaste-me.
Nesta hora aflitiva do crepúsculo, quantas criaturas, transidas pela vida, se põem a tecer quimeras, sonhos fugidios, nuvens!... Da terra começa a sair o hálito violeta da sua evaporação: nas almas se criam ténues figuras de sonho, de ilusões queridas. Tenho vontade de chorar e ainda hoje me não aconteceu desgraça... Alguns criam espectros negros e desesperados, a outros vem Hélia, de mãos febris estendidas, beijá-los na boca. Dir-me-ás com o teu sorriso de mágoa: — Sonho, é sonho tudo!... — Como se eu não tivesse a certeza de te ir encontrar no infinito, pois que nada se perde senão a vã realidade! Tenho muitas vezes, até irem altas as estrelas, cismado em ti, amor; criei-te de lágrimas, de aspiração, de tudo o que em mim próprio é imortal; e agora és tu mesma que, aqui ao meu lado, me contas a alma desta história.
Sonhar! Mas eu já não posso sonhar só isto. Preciso de sonhar mais — de um sonho sem limites que me satisfaça.
Dias há em que me deito na cama e não tenho mais vontade de me levantar. Olho em roda. Toda a vida me parece aborrecida e vazia. A minha falta de energia exaspera- me. Estou gasto e com rugas aos trinta anos. Estou cansado e esgotado, sem imaginação e sem nervos. Aflige-me não ter sido jovem, não ter vivido como os mais, e insulto a minha quimera que me parecia de ouro, por quem me esgotei, para afinal a encontrar gelada e fugidia... Errei o caminho: não era por aqui.
Voltar à realidade? Mas eu cheguei ao ponto em que desconheço a realidade. A realidade tem para mim formas monstruosas. Ainda falo como os outros — ainda falo mas como num sonho. Titubeio. Caminho à pressa pelas ruas, para me meter dentro do meu cubículo. E não me larga a impressão daquele beijo que me deste e que me devorou até ao fundo da alma, deixando-me na boca uma frescura deliciosa que nunca mais passa.
Petrificado. Uma luz pastosa, uma toalha de luar, atmosfera feita de sons magoados, estendida sobre a planície seca, lisa até ao infinito. De súbito, como um riso que se estanca apavorado, o som cessou, ficando no ar uma inquietação vaga, um terror de vida suspensa. A luz espalha-se para o fundo, como uma nódoa que se alastra e come a treva; subia pelas coisas, descia, esbranquiçada, mole e a flutuar, esparralhada... Num soluço de claridade senti que alguém vinha: não podia olhar, voltar-me, encerrado na prisão da minha capa de pedra. Fazia esforços para mexer um dedo, um dedo apenas. Dizia-me: — Estou a sonhar! Estou a sonhar, sossega! — e parecia-me, que, enfim, como quem ergue uma torre, conseguira abrir uma fresta de pálpebra, pois que, mar represo que encontra saída, um esguicho daquela mesma luz esbranquiçada se me precipitara com ruído no crânio... E outra vez me beijaste. Tenho-o na boca, o teu beijo delicioso e gelado.
Era em Abril e toda a floresta parecia sonhar. As velhas árvores, os velhos troncos tinham gritos: estremeciam. O luar tecia, prendia os seus cabelos de prata nos galhos negros. Por vezes uma árvore parecia aureolada: outras dir-se-ia que, atrás dos troncos, em emboscadas, me esperavam de espadas desembainhadas, para me matarem. Havia vagas claridades suspensas nos ramos, caídas como mantos — e todas as montanhas, extáticas sob o luar, falavam baixinho. Noite de luar, noite de primavera! Oh, os montes na calada, na voluptuosa noite, pareciam seios a palpitar!... O brasido do sol ferira troncos, que escorriam o seu último sangue, já exaustos, já moribundos. E o sussurro crescia, o sussurro aumentava. A montanha era um enorme coração que começasse a bater sob o luar misterioso, que eu ouvia cair como água de uma fonte... Andei, era a hora: lá no alto, ao pé da cruz, a esperei — pois que não tardaria que ela viesse, eu bem o sabia.
Por baixo de mim a pedra, a terra húmida, estremeciam: todos os detritos, o velho pó que havia sido outrora flor, a cinza que fora cérebro, a terra que se lembrava de ter batido em coração — se tinham posto a falar, a agitar-se como milhões de pequeninas almas, e toda a montanha tinha vida, gritava sob o luar a escorrer, prendendo-se em fios nas árvores, desembainhando punhais nas moitas...
És tu que vens? És tu? Uma grande serenidade caíra sobre o meu coração, que nunca pulsara tão rítmico, tão forte, tão alto... Olhei-te: estavas atrás de mim, de mãos estendidas, e na tua boca, em todo o luar de que és feita, havia um sorriso extático...
Há que tempos, há que tempos eu o esperava! Todo o meu desespero era remorso, todos os meus gritos, todas as minhas palavras vãs, não exprimiam senão a pena de não te ter sabido amar, senão a certeza de que nunca me perdoarias — de que eras feita de luar e eu de lama negra.
Desci até à matéria, muitas vezes fui atrás de seres grosseiros que me atraíam. Muitas vezes me enlameei — mas só tu, que não existias, foste o meu verdadeiro, o meu único amor. Trouxe-te sempre escondida como num sacrário e as melhores horas do meu dia reservei-as sempre para pensar em ti, para sonhar contigo, que não existes — e foste sempre para mim a única realidade.
Estendi-te os braços, caí a soluçar, desfeito em lágrimas...
É dia de entrudo hoje. Toda a vida é aborrecida e nula. Só tu me restas, minha vida. A vida é como aquele bêbado que anda aos tombos na lama e que me degrada, apesar de eu o não ver... Espera! Espera! Só o sonho existe. Criei-te. Vou eu mesmo procurar-te: daqui a duas horas a pistola aperrada terá, enfim, por uma ligeira pressão no gatilho, para sempre unido à minha vida a tua vida...
Ó Morte libertadora, tu que acalmas todos os desesperos e resolves todas as dúvidas, aperta-me enfim nos teus férreos braços. Morte! Estou cansado. Tenho de há muito uma ferida no cérebro e o coração estoira-me de bater. Adivinho em ti o sonho sem limites. Tudo o que me pode acontecer de pior é procurar o desconhecido e encontrar o nada. Mas isso mesmo vale mais do que o tédio e a aborrecida, a nula vida. Virei já do avesso todos os sonhos, esgotei-os, fui tudo em imaginação e não o fui na prática, falho de energia. Imaginei ser Deus e imaginei ser árvore. Estou farto de ver o sol e assisti já a várias primaveras. Conheci homens e países. Faço trinta anos e a vida vai para mim — se não tenho a coragem de procurar-te — reduzir-se a um hábito: adormecer com o mesmo sonho, cumprimentar com o mesmo frio sorriso, fingir que tenho afeições e admirar o que os outros admiram. Resignar-me. Perder o que em mim resta, como num lar que não tarda a apagar-se de todo.
Que posso eu ainda ser? Porventura um aguerrido soldado, de coração forte?... Mas já na dura Idade Média, com férreos guerreiros, escalei por surpresa, nas noites turvas, de unhas cravadas na penedia e respiração oprimida, negros castelos no alto de montanhas a pique. Entrei em combates e de um me lembro, em que os rudes campeões, defendendo o território, comungaram ao alvorecer com terra da sua pátria, para assim significar que saberiam morrer por ela. De outro sei que tinha um amigo e ligados nos atirámos ao ardor da refrega, morrendo juntos, de mãos unidas e sorriso na boca...
Dirigir povos? Ser poeta? Ter a banal popularidade e forçar a admiração dos meus inimigos? Calcá-los aos pés, insultá-los, dizer-lhes com rancor: — Venci?... — Mas tudo isso o sonhei já e mais, visto que criei e fui Deus.
Depois, a época é banal. Cada um tem de reduzir o seu sonho, de o tornar medíocre e de se sujeitar, para vencer, a sorrir com a multidão ignara; de misturar o seu egoísmo a todos os egoísmos, e por último, confesso-o, a minha energia, consumi-a a tecer, os meus nervos estão gastos de arquitetar quimeras, o meu cérebro e o meu coração puídos de tantas coisas aquecerem... De forma que descer para a realidade é uma tortura, tão pequena e tão aborrecida a encontro.
A razão! Só a razão fria, gelada, é que eles admitem. E a intuição, porque não? Pois não é como se um homem se servisse apenas de uma das mãos, tendo duas? Não será incompleto tudo quanto fizermos apenas com uma parte da nossa alma?
A razão não basta, a razão tem sido educada, arrastada, habituada a seguir a rotina, a andar pelo velho caminho árido e seco. A maravilhosa intuição é que por vezes nos vale para arrancarmos um pedaço ao desconhecido.
Para quantas criaturas esta vida exterior, fingida e nula, não é apenas um trabalho de forçado, com a grilheta na imaginação? Quantos desgraçados nunca encontraram na vida nem o amor, nem a amizade e se refugiam no sonho?
Conheci um poeta pobre que em vez do amor tinha de se contentar com as mulheres perdidas. A sua poesia era cheia de febre e de aspiração: as criaturas pálidas e sonhadoras que passavam nos seus versos pertenciam ao céu — e, às noites, amava as mulheres perdidas. Fazia-as soltar os cabelos, dizia-lhes palavras de paixão. Chorava verdadeiras lágrimas.
O estupor da vida que nos encharca a alma de quimeras, para as não podermos realizar; que nos dá a imaginação — e a vida prática; que nos deixa sonhar, para depois nos atirar das estrelas à terra! E porquê? Para quê? Que crime cometi eu, Senhor, para que tu a cada momento me castigues, a cada instante me faças tropeçar e fazer parte do infinito e das ruas da cidade, da Via Láctea e da multidão?...
Há dias em que acordo não sei para quê. Vejo as mesmas caras, os mesmos corações, a mesma luz. Fugir, só se for para a morte, visto que não tenho forças para me refugiar num grande trabalho ou num grande ideal que me absorva.
Resta-me isto: habituar-me à vida, habituar-me a ponto de não ouvir, de não ver, habituar-me até a aplaudir. Roçar-me pela vida prática até ficar, ao seu contacto, idêntico a todos. Encher a alma de palavras, de frases aprendidas, de sentimentos falsos, de crenças usadas e banais. Ser toda a gente. Sorrir ao que os outros sorriem, admirar o que eles admiram... E no entanto, se me vejo assim, se me visiono daqui a anos assim — recuo de pavor... Ali está sobre a mesa a pistola aperrada. É melhor morrer, estoirar o cérebro, onde resta ainda um vestígio de sonho, do que acabar daqui a anos, esvaziado e grotesco como uma bexiga rota...
É certo, porém, que não é sem um sentimento de piedade por mim próprio e lágrimas que eu deixo a vida. Por duas vezes senti já o anel de ferro da pistola no crânio; por duas vezes o braço me caiu cansado e inerte. Espera... Quem vivesse mais alguns anos a ver... Talvez que este sentimento de aspiração seja um presságio. Poderás ainda realizar, ver a quimérica felicidade. Depois, me lembram agora porventura apenas as coisas boas e simples que tive na vida: um sorriso, primaveras, o encanto de uma amizade longínqua...
Mas não te vês, não te sentes tu próprio aborrecido e vazio? Não é apenas o tedium vitae dos antigos. Estás cansado, consumiste-te, ardeste, sonhaste demais: nunca a tua vida poderá prolongar-se assim: resta-te entrares na vida prática, seres nulo e banal — ou então morrer.
Morte, tu que os homens têm vestido de horror, boca muda e enigmática, olhos vazios como covas. Morte consoladora — és tu afinal que me restas. Há criaturas desonradas — tu abres-lhes os braços. Libertas. Consolas de todas as amarguras. Igualas. Desgraçados ou reis, beija-los com os mesmos lábios gelados. Às criaturas a quem os nervos, por já não poderem mais, estalam — tu abres-lhes os braços. Aos que se sentem humilhados, arredados, oprimidos pela injustiça — tu abres-lhes os braços. Aos criminosos e aos párias — tu abres-lhes os braços. Morte, Morte consoladora, abre-me, pois, os teus férreos braços.»
Restam ainda de K. Maurício, entre papéis inúteis, rabiscos, notas, caricaturas, os contos que a seguir publico, pois que de alguma forma completam a sua curiosa fisionomia intelectual.
Este Palhaço, de quem toda a gente se ria depois de escarnecido e de ver em farrapos a sua quimera, que não pôde realizar, encontrando sempre o nada, entre os braços descarnados, quando queria agarrá-la — mergulhava mais fundo no sonho. E ainda assim ficava grotesco como um sapo que fizesse namoro a uma estrela.
As páginas dos seus últimos dias formam um volume para mais tarde, completando, com esta Morte de um Palhaço, o livro a que ele próprio pôs o título de A Vida, autobiografia de K. Maurício.
O sonho, a incapacidade de equilibrar as duas vidas — a vivida e a sonhada, fizeram desta criatura um ser curioso. E é apenas por isso que a amálgama dos seus papéis se publica. A sua aptidão para sofrer, a rede dos seus nervos sensibilizando-se com miúdos pormenores da existência, com a vida das pedras e das árvores, com a alma do que é inanimado, a sua emoção paradoxal, deram interesse à sua prosa e à sua fantasia. Mais nada.
Esta feição, que transparece na primeira e segunda partes do seu livro, completa- se com as páginas que se seguem e com o volume a publicar-se. A vida é má, tumultuária; a vida não vale o que por ela se sofre — e no entanto ele tem um medo enorme de morrer. A vida é restrita, igual, repetida — e eis que K. Maurício se põe a sonhar no desconhecido.
Singulares criaturas devem nascer por este fim de século, em que a metafísica de novo predomina e a asa do sonho outra vez toca os espíritos, deixando-os alheados e absortos. A necessidade do desconhecido de novo se estabelece. A ciência, que por vezes arrastara a humanidade, que a supunha capaz de ir até ao fim — bateu num grande muro e parou. Que importam o princípio e o fim?
Ora é exatamente o princípio e o fim que importam. O caminho é estéril, seco e aborrecido. Para lá do muro é que está a verdade e o belo — Deus. E todas as criaturas se puseram a pensar, e sentiram a necessidade de um ideal. A Fé cristã embotara-se. Era preciso inventar-se outra coisa.
A alma do homem toca o infinito. Se as suas mãos débeis não podem já com uma durindana, os cérebros e os corações estão em brasa. Ganhou-se em nervos — perdeu-se em equilíbrio. Não se assalta um castelo de armadura e mãos enclavinhadas na penedia, mas conquista-se o outro mundo...
De tudo isto, da fadiga produzida pelo exaspero crescente da luta pela vida, devem nascer criaturas singulares, aberrações extraordinárias, curiosos cérebros cheios de sonho, nervos capazes de sentir o que por agora é do domínio do sonho... K. Maurício não pertence um pouco a estes seres, pela sua sensibilidade, e sobretudo pelo seu desequilíbrio e pela incapacidade de realizar?... Tímido e fugindo à vida, quase sem saber exprimir-se, exagerando miúdos pormenores sem importância, quando passava gelado pela verdadeira dor, com meses de inércia, absorto no sonho, para de súbito romper numa audácia de que todos o julgariam incapaz, temendo a morte e desejando-a com a mesma sinceridade, contraditório e lógico — não é um ser cómico e pícaro, sinistro quase, desgraçado e profundamente humano e dentro da sua época?
Uma luz que se apaga e mais nada! Desde há séculos, talvez desde 1122, que esta lâmpada arde na capela. Fundação de quem? Quem foi o pobre ou o rico que deixou ao convento primitivo uma doação em troca da luz que arde há tantos anos? E o que se quis perpetuar por esta forma? Uma catástrofe ou uma esperança? Acendeu-a, numa hora de dor, qualquer mulher ajoelhada aos pés da Cruz, cumprindo uma promessa pelo filho em perigo? Pela Pátria em perigo? Ignoro-o. Os títulos do convento nem sequer mencionam o nome do fundador. Só sei que, hoje mesmo, a luz se extingue. O padre ao meu lado insiste:
— Hoje mesmo.
— Apaga-se?
— Apaga-se. Há oito séculos que esta luz arde sem sabermos porquê? Mas hoje, esta noite, a lâmpada não é renovada e a luz morre.
— Morre! E até agora nunca se apagou?
— Nunca. Das casas do cabido vinha o rendimento para a luz e o rendimento acabou. A luz extingue-se esta noite.
Apagar uma luz é nada. É um facto insignificante e vulgar. Mas uma luz que arde há tantos séculos, dia e noite, uma luz que perpetua não sei que dor, que suprema angústia ou que suprema esperança, faz-me pensar na vida e na morte.
Do convento antigo resta a velha igreja de pedra e uma torre de granito com ameias. A frialdade aqui dentro vem do claustro húmido, com dois túmulos encravados na parede, e deste conjunto de edificações sobrepostas. Até na igreja há acrescentos de diferentes épocas. A capela românica, metida na muralha, é talvez a igreja primitiva. Só se dá por ela ao pé do altar. A abóbada é achatada, o granito de grão áspero esboroa-se, e já há muito que a chuva, que se infiltra dos telhados, a teria arruinado se a não escorassem grossas traves de castanho. Cheira aqui dentro a terra e a sepulcro, e o ambiente, a escuridão palpável, põe-me em frente da grande realidade do além.
Sento-me para assistir à agonia da luz que arde há oito séculos, renovada num subterrâneo pelas mãos dos vivos e dos mortos — e agora mesmo vai morrer. Mais uns minutos passam, o tempo roda e a agonia irrisória deste fio de luz prolonga-se e assume no meu espírito proporções de tragédia. Parece-me que outra coisa maior vai morrer no mundo. Para todo o sempre, a dor que a acendeu e a sustentou ao lume da vida vai desaparecer na treva espessa. Outra morte maior avança, mais calada, mais profunda — a morte definitiva... Só faltam alguns segundos. A camada de azeite, fina como um papel, reduz-se cada vez mais. O padre senta-se num banco puído, ao meu lado, com aquele ar meditativo dos seres habituados ao silêncio e à sombra. Ao pé do altar estão duas mulheres amachucadas como trapos, duas nódoas mais escuras na treva opaca da capela.
A luz amortece e crepita. Vai morrer. A luz vai morrer! Mas do altar um farrapo negro de mulher ergue-se; do farrapo saem mãos esguias que tocam a lâmpada e a luz reacende-se. Recuam as trevas e o vulto ajoelha-se numa prece balbuciada. Não distingo as feições nem sequer os traços das figuras. Confundo o ser que sofre ao meu lado com o outro que há séculos acendeu pela primeira vez a lâmpada. Confundo com a dor a sombra que se destacou da sombra e ergueu lentamente os braços. A dor não morre. O que não morre é a dor! Tenho-a aqui presente. A dor não data de há oitocentos anos, mas de sempre. Tão antiga como o homem, nossa eterna companhia, dura e benéfica, caminha connosco e ao nosso lado.
Agora o drama insignificante cessou, e não me interessa a lâmpada, nem a velha capela glacial, nem as mulheres amarfanhadas suplicando. O que me interessa é a continuidade da dor. Sempre a dor! A de há séculos e a de hoje, a que acendeu pela primeira vez a lâmpada e a que a não deixou apagar-se. Sempre este grito sufocado, o gesto repetido, as mãos erguidas e o choro correndo desde que o mundo é mundo. Pelo amante ou pelo filho? Pela Pátria? Pela dor ignorada dos seres que a vida calca, pela ânsia que nos devora, pela aspiração tão inerente à alma como o pólen à asa, para voar. A dor nunca se extingue... Luz e dor andam ligadas e não há que separá-las. São talvez o melhor da vida — a dor que nos redime, a luz que nos sustenta.
Mas então — pergunto — é a dor que não se extingue ou a luz que não se extingue?
Nem a dor nem a luz.
Esgalhada e seca, os seus frutos eram cadáveres ou corvos. Ninguém se lembrava que tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia séculos servia de forca: ninguém se deitava à sua sombra, e até o sol fugia da árvore estarrecida e hirta que havia séculos servia de forca.
Em frente ficava o Palácio Real, construído num bloco de pedra escura, e só o Rei, de alma igual à sua alma, nua e trágica, se pusera a amá-la, a árvore triste que havia séculos servia de forca.
Que doença estranha, lenta mas tenaz, matava o Rei?... Só amava os crepúsculos, as agonias da luz, o passado, e a multidão silenciosa vinha vê-lo, ao fim da tarde, de cabeça encostada aos vidros das janelas, fixo o olhar nas águas verdes e limosas e no espectro da árvore levantada diante do Palácio. Tudo o que era vivo fugira de ao pé dele, porque o Rei mandava punir a juventude e o amor, e dez léguas à roda o país tinha sido assolado pelos seus guerreiros brutais. Mandara queimar tudo, devastar tudo no seu reino. Nem uma folha nem uma ave — nem um sinal de vida. De pé unicamente a árvore, desde séculos estarrecida e hirta, a árvore maldita que no seu reino servia de forca.
No silêncio tumular do Palácio os passos do Rei ecoavam pelos corredores desertos, lentos ou precipitados, conforme o pensamento tenaz que o devorava, gastando pouco a pouco as lajes duras do chão. Não podia amar. Nem a voluptuosidade, nem o ideal, nem o amor, nem a carne láctea das mulheres: tudo lhe era vedado. Horas atrás de horas se ouviam no Palácio os passos do Rei doente, toda a noite, toda a noite a rondar...
Sucedeu que veio a primavera e todas as árvores, para lá do território assolado, estremeceram e se cobriram de flor. Borboletas nascidas do seu hálito noivavam no azul, e dois mendigos amorosos, de países lendários, entraram e perderam-se naquela terra praguenta, ela envolta na poalha dos cabelos louros, ele feliz e esbelto, preso ao seu olhar. Eram pobres. E assim, apenas vestidos, vieram enlaçados com a primavera cobrindo a terra erma que calcavam de vida e de amor. Eram pobres e felizes. Flores esvoaçavam pela sua nudez, e as macieiras dos quintais deitavam galhos fora dos muros, de propósito para os ver passar.
Azul, sonho, entontecimento, toda a atmosfera estremecia. Só o Rei no Palácio deserto vivia braço a braço com a dor. A vida, a luz, as árvores enojavam-no. Queria todo o país negro, deserto e escalvado; e o amor que trespassava a terra e os bichos, a própria morte que tudo transforma, lhe pareciam abominação e afronta. Odiava a vida. Mas deitava-se e sentia palpitar as fragas: os montes eram seios duros, as árvores cabelos ao vento. Para não ver, encerrava-se no Palácio construído de um bloco de pedra, e sozinho ficava então de olhos postos na árvore. Contemplava-a. Como o Rei, ela era seca e hirta — fora-o sempre — e os seus frutos cadáveres ou corvos. À passagem de Abril e dos mendigos, tudo à volta se transformava: só ela quedava inerte diante da vida e do amor, a árvore trágica que havia séculos servia de forca.
Um dia o Rei soube que dois seres felizes tinham transposto as fronteiras e mandou-os logo prender. Nas últimas noites sentira-os nos espinheiros túmidos, nos sapos dos caminhos que pareciam extáticos, nas coisas que estremeciam, na noite magnética cheia de murmúrios, no vento que atirava para o castelo ramos luminosos de árvores. Punha-se de ouvido à escuta, e a terra, a noite e o mar sufocados iam talvez falar, iam enfim falar!...
Quando os soldados os trouxeram ao Palácio, com eles entrou um bafo novo: cheiravam a sol e à lama dos caminhos e pegava-se-lhes húmus aos pés descalços. A vida rompeu por aquele túmulo dentro e, pois que iam morrer, dir-se-ia que a morte, em lugar da foice simbólica, pela primeira vez trazia nas mãos um ramo de árvore.
Dois mendigos e amavam-se! Nem sequer eram extraordinariamente belos, mas deles irradiava uma força imensa — daquela rapariga sardenta, com resquícios de palha pegados aos cabelos, daquele homem cuja carne aparecia entre os farrapos. Não davam pelo Rei, não davam pela Morte. Amavam-se. Atreviam-se num país que ele mandara assolar para que nunca mais diante dos seus olhos pudesse aparecer a imagem da vida e do amor!
Olhou-os o Rei durante alguns minutos em silêncio, e depois fez um gesto aos carrascos, que logo se apoderaram deles e os levaram. Sorriam-se os mendigos cheios de terra e ervas, e, enlevados, olharam um para o outro, ignorando o que se passava em volta — olhos nos olhos, mãos nas mãos...
Noite negra, o Rei subiu sozinho ao terraço. Restos de nuvens, restos de mantos esfarrapados arrastavam-se pelo céu. A árvore onde os dois tinham sido enforcados mal se distinguia no escuro; mas de lá vinha um frémito, a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus corpos decerto. Em vão reduzira tudo a cinzas — por baixo das cinzas latejava a vida. Toda a terra parecia fermentar. Ouvia murmúrios. Se as árvores falassem! Se as árvores e as coisas dissessem tudo o que sabem! A água chalrava, perdia-se em fios pela terra. Mas então ele não mandara secar as fontes? Vozes, mais vozes ainda no escuro, a voz baixinha e humilde das árvores cheias de folha, que o vento chegava umas para as outras... Mas então ele não mandara despir para sempre as árvores? Pior... Mais fundo ainda, no negrume opaco da noite, o sussurro da vida — como se ele não tivesse mandado espezinhar a vida!... Encostado à muralha, passou a noite absorto. As nuvens galopavam, o grasnido dos corvos afligia-o... Porque não iria ele também ser macieira, mendigos, húmus? Transformar a dor em felicidade? Beber o sol arrastado no aluvião da vida? Oh, como odiava a juventude, a ternura, os lábios jovem que se beijam!...
Só a árvore esgalhada e seca o prendia ainda, a árvore sinistra que no seu reino servia de forca.
Ficou até de manhã de olhos postos naquele fantasma triste e enorme, negro como as ideias negras que tecia, seco como a sua própria alma — a árvore desmedida que no seu reino servia de forca... Começaram os cerros a tingir-se de violeta, as árvores a azular, e a forca, em que se absorvia, a destacar-se de entre a névoa, a árvore esgalhada e imensa que havia séculos perdera a seiva e a vida.
De súbito, ficou imóvel de espanto. Aquecida com o amor de dois mendigos, tinha o galho em que pendiam enforcados cheinho de flor. Dura e má como as pragas juntara no ramo que os cobria toda a flor que a terra assolada não pudera produzir. Era nada, quase nada, algumas flores miudinhas prestes a sumirem-se ao primeiro sopro — era dor estreme e sonho estreme. Nos seus braços tinham sido enforcados muitos desgraçados e as suas raízes mortas pelas lágrimas de aflição. Tolhida com os gritos, não bebia água nem sugava húmus. Vira passar homens, primaveras e reinados, sem se comover, mão arrepelada a amaldiçoar a terra e o castelo. Assistira a transformações de solo, a tempestades, a cataclismos e a guerras, sempre petrificada como a morte — e naquela noite, trespassada pelo amor dos dois mendigos, desentranhara-se em ternura, como se nela se concentrasse toda a paixão, a primavera e o noivado da terra — a árvore maldita que desde séculos servia de forca.
Era uma floresta enorme e silenciosa. Os esqueletos negros das árvores pareciam séculos petrificados. Nada bulia: a vida parara ali, estancada e lúgubre. As raízes em garra mordiam a terra, e, entre os troncos, um Deus sinistro aparecia — vaga realização do espanto. Estava desde o princípio das coisas, quieto e hirto, à espera, no interior da floresta. O seu corpo disforme perdia-se na noite; a sua cabeça mergulhava nas patas, a caverna da boca prestes a triturar os homens e as coisas. Não se sabia bem, nem se descrevia bem: parte perdia-se na sombra; parte era construída com restos de pesadelos, pedaços de sonho e de ânsias dispersas. Uma casa caíra por terra, como um mundo que desaba.
Ao pé não se via senão o horror, mas quem o espreitava de longe ficava surpreso diante do seu aspeto de ferocidade e de lascívia. Tudo fugia da floresta: as árvores, que ali cresciam desde a criação do mundo, estarreceram e não deram mais sombra nem flor, as aves caíram geladas. À volta o terror e o silêncio dominavam o Deus, misterioso e assustador como todas as coisas de que se não sabe o princípio. Inacabado, esboçado, os seus olhos e as suas mãos, todo o seu corpo mergulhava no sonho e cada homem à vontade lhe acrescentava novos aspetos e pormenores...
Supunha-se no país que ele se formara de aspirações irrealizáveis, da ânsia, das noites de febre dos doentes, dos sonhadores e dos poetas; de tudo o que não tem destino, das tristezas vagas do crepúsculo, de quimeras inacabadas, de crimes, do sonho dos grotescos, que ali se petrifica no Deus solitário e incompleto assombroso de imobilidade, entre a floresta silenciosa, e reclamando sempre sofrimento, gritos, lágrimas.
O Deus sustentava-se de dor. Nos noivos de cada ano escolhiam-se à sorte os sacrificados para o apaziguarem. Sacerdotes, vestidos de túnicas brancas, como quem desfolha flores à beira de uma cova, ofereciam ao monstro a vida dos amorosos. O fim do sacrifício era um findar de ceifa, em que a terra ficasse estivada de corpos jovens, de papoilas sangrentas.
No país aterrorizado, todos os anos pelo princípio da primavera, para apaziguar a cólera do Deus, se fazia a escolha dos noivos. Ninguém se atrevia sequer a olhá-lo: parecia que as suas garras se cravavam em toda a terra, a esmagar a Vida e o Amor...
E um grande terror na primavera, época dos noivados, pesados nos corações. Quem viveria? Quais dos que, de mãos enlaçadas e olhos nas estrelas, às noites falavam do amor, escapariam à morte? E a incerteza andava nas almas dos enamorados como um espectro negro a rondar. Se os seus olhos se prendiam, logo se afastavam uns dos outros com horror, e muitas mãos gelavam entre mãos queridas. Donde vieste tu, meu amor? Porventura existes ou não passas de uma imagem que na minha imaginação criei? Se te beijo penso por vezes que estás morta. Fala, fala mais, embora as tuas palavras sejam vãs, para que eu me convença de que ainda existes... E de ano para ano, nesse país onde o Deus dominava, as almas se purificavam, pois que ninguém ao certo saberia dizer se o seu noivado se continuaria no infinito. O amor transformara-se. Já se falava baixinho, e os olhos arrasavam-se de lágrimas: o amor, pouco a pouco, se mudara em sentimento religioso. De forma que, quando o Poeta de cabelos flavos veio para casar com a Princesa e reuniu em volta de si os noivos desse ano, nenhum estranhou as suas palavras. As suas palavras são talvez incompreensíveis e metafísicas para ti que me lês, mas não o foram para os noivos do país quimérico, onde o Deus feroz existia. Disse o Poeta que o amor era imortal — e só no infinito se sublimava. As criaturas que morriam sacrificando-se pelos outros iam ter o seu noivado eterno para lá das estrelas, onde as quimeras tomam corpo e todas as aspirações se realizam. Disse tudo o que só a intuição dos poetas adivinha e os sábios ignoram. E, pois que a primavera chegava, todos aceitaram as suas palavras, e todos se submeteram à morte. Cada um desejou no infinito o amor infinito e cada par de noivos procurou com ansiedade nas árvores a primeira floração — e às estrelas cada noite se prendiam novas aspirações. Ficavam horas de mãos dadas, a olhar o céu, sorrindo...
— E lá como seremos nós então?...
— Como a pureza, como a brancura...
Cada ano, em Abril, a procissão dos noivos entrava na floresta como um soluço que a atravessasse. Era ao cair da tarde, ao fim do dia pálido e melancólico. Caminhava a fila, numa tristeza feita de saudade do que se perde com a vida de aspiração e de sonho. Brancos, iam enlaçados aos pares. Deles seriam escolhidos os que iam morrer — e, entrando na floresta, não sabiam bem se caminhavam para a morte se para o amor... Sabiam que iam morrer para apaziguarem o Deus e para que houvesse menos dor no mundo...
Atrás iam os sacerdotes, vestidos de linho e a cantar.
Ora nos princípios de Abril desse ano, tinha havido um calor excecional. Alguns dias de chuva e vento desabrido, e depois, de um dia para o outro, uma corrente magnética atravessou o espaço.
O vento cessou, descerrou-se o sol: ouro embebido em azul — entontecimento — e as árvores, trespassadas de luz, estremeceram e desentranharam-se logo em flor. Noites quietas, caladas, mornas, e um luar majestoso.
De noite, tarde, saí. Parecia verão. Ainda fim de inverno e uma noite como esta! Uma noite translúcida, uma noite misteriosa e suspeita... Cada noite que passa entranha- se na alma com ânsia e terror. Magoa-me e deixa-me extático. Mais uma que foge! E outra ainda!... E quantas mais, para as não tornar a ver, para não tornar a sentir este mágico esplendor? Uma a uma somem-se no silêncio, tão grande que o sinto de encontro ao meu peito — e uma a uma recolho-as e calo-as dentro de mim mesmo, para as levar para a cova... Mas esta noite de verão ainda no inverno inquieta-me e surpreende-me; esta noite assim quieta, branca, impassível e calada, aflige-me. Paro. Dou mais dois passos e detenho-me. Espero uns momentos, e de repente desenrola-se diante de mim um drama que não previa...
O vento morno acalma, a temperatura modifica-se, e tenho a sensação imediata de que a noite cristaliza. Então a mais extraordinária dor a que jamais assisti se passa diante dos meus olhos — a dor que se não ouve. Uma tragédia no silêncio. Uma tragédia sem gritos, sem rumor, sob o céu empoado de estrelas. Uma tragédia como não li em livro algum e de que nem Shakespeare se lembrou. Diante de mim estavam as árvores carregadas de flor, as cerdeiras bravas, os abrunheiros e os salgueiros, toda a floresta imensa que me envolve, desentranhada em emoção, iludida por aquela primavera antecipada e fictícia. Flores por toda a parte, em todos os galhos; flores nos espinheiros; flores nas sebes; flores nas macieiras vergadas de flor. E de repente um frio instantâneo e mortal, um frio que aperta e fere com arestas finas que entram na pele, colhe-as e destroça-as. As flores geladas caíram por terra.
Doeu-me o coração. Por pouco não gritei. E o silêncio cada vez maior, a angústia cada vez mais pesada... Nem um frémito. Só luar a torrentes, o mágico luar e aquela dor inocente, aquela dor monstruosa na imobilidade congelada. A esta mesma hora no vasto mundo a dor calca aos pés e tritura, sem se deter com gritos, insaciável como o velho Deus da floresta para o qual avança a fila dos noivos, branca e resignada. Quantos beijos perdidos se morressem! Quantas horas perdidas se o Deus os recolhesse!
Olhei para o alto. Nunca o céu foi mais belo nem as estrelas mais lindas. Eis a harmonia dos mundos... Porque a harmonia subsiste. Não há nada que a altere — pensei. Ou será aquilo lá em cima também dor que não se ouve? Será aquilo doirado dor tumultuária, imensa, frenética, cujos gritos não chegam cá abaixo?...
Brancura de luar ou brancura de neve, é indiferente para o caso. São muitos. São inocentes e morrem. Os seus olhos debalde interrogam este mesmo céu, onde as estrelas parecem faúlhas do meu lume atiradas para o espaço... Será tudo dor? Será tudo aquilo só dor?
O frio aumentara na noite côncava e tão branca como a neve das estepes. Adivinho no silêncio um «ah!» de pasmo: as árvores contraíram-se e gritaram de aflição (toda a flor morreu); mas, como não têm boca para gritos, o grito não se ouve. E que importa gritar, se o som vai só até cem passos de distância? Depois passou não sei que comunicação misteriosa, que corrente de sensibilidade, de tronco para tronco, de raiz para raiz. Uma interrogação no ar:
— Porquê? Mas porquê?... As árvores, surpreendidas, não entendem porque sofrem. Ninguém sabe porque sofre. E o silêncio glacial, a atmosfera cada vez mais contraída de frio, quase a estalar como um vidro, e lá no alto, sempre, o inalterável panorama celeste... Todas as flores murcharam. Ninguém ouve o grito imenso que neste mesmo momento sai de tantas bocas inocentes — das bocas dos sacrificados, dos que morrem obscuros por uma ideia ou por um sonho, ou mais simplesmente dos que oferecem a sua vida por outra vida. O Deus monstruoso reclama sempre mais vítimas.
Só a dor existe, só a dor cega e sem boca para gritar, que neste mundo extraordinário se estorce — a dor incógnita. É uma coisa imensa, é uma coisa ilimitada que anda aos tombos no universo. É uma coisa imensa, cujos gritos ninguém ouve. É a dor feita de todos os sacrifícios, de todas as dores desconhecidas e caladas... Lá em cima Procion e Vega reluzem brancas e azuladas, Aldebaran e Arcturus vermelhas como fogo, e a maravilhosa Vega cintila com brilhos azuis, verdes e escarlates: é outra imensa floração de dor.
Na terra, um charco de sangue; sobre o sangue, a devastação das flores; à volta, a floresta imensa e despida, a floresta trágica que se revê nas lagoas pútridas como num olhar de morto. Só o Deus — dor, feito de velho granito -, o Deus inalterável enterra as patas monstruosas no húmus e continua a exigir mais vítimas...
Santa Eponina era tão pálida e tão linda, que, ao vê-la, as multidões ficavam extáticas, as árvores estremeciam e os bandidos das montanhas, conquistados, vinham rojar-se-lhe aos pés. Era uma flor — a flor humana. Mais que beleza havia nela encanto e alguma coisa que não pertencia à terra — expressão de inocência e ao mesmo tempo de espanto diante do mundo, como se a figura doirada e branca pressentisse a desgraça e a dor.
Fora criada entre mulheres vestidas de brocado, num berço de ouro, sobre o qual o rei e a rainha se curvavam, absortos naquela pureza que lhes sorria entre rendas. Cresceu e vinham cavaleiros de países afastados para se baterem por ela, e trovadores, guiados pela sua fama, esperavam à noite sob o balcão do castelo real que ela aparecesse para a cantarem. Não caminhava: chama clara que desliza, ninguém a recordava senão como uma brancura e um olhar de piedade que passasse.
Já em pequenina seu ascendente era enorme sobre os homens e os bichos. Às vezes fugia do castelo, perdia-se na velha floresta entre troncos que não tinham idade e ia comer pão de rala na cabana dos lenhadores ou caminhava direita a um buraco sinistro donde ninguém se aproximava sem terror. Era a cova de um santo, de um santo tremendo que só pregava cóleras.
— Onofre! Onofre! — gritava, batendo as mãozinhas. E para dentro da caverna fazia:
— U! u! u!...
Logo se sentia um rugir de folhas e de entre a esteira de esparto, a vasilha de água e alguns ossos esburgados, emergia, rosnando com ferocidade, a cabeça hirsuta de um bicho, metade pedra, metade sapo, com a boca maior que o antro escuro, e que ao vê-la ficava logo dominado, transformando-se todo num riso sem dentes.
— Vamos ver os bichos!...
E lá o levava pela mão, ralhando quando ele estorcegava nos gadanhos os ninhos e as aves, até à lagoa, onde as feras que o santo subjugara, aproximando-se-lhe de rastos até aos pés, vinham beber ao fim da tarde.
Como aprendeu o sofrimento e a miséria da vida? Não sabia nada da dor e só cismava na dor! Debruçada sobre as muralhas, parecia interrogar a mudez. Toda a noite ficava encostada às ameias, embebida num grande sonho de que só acordava quando ouvia uma voz a chamá-la. Não eram os corvos, nem uma grande águia que todas as noites recolhia ao ninho no alto do castelo. Não era o murmúrio das águas que ali chegava como um eco. Era uma voz interior que a sacudia toda e a tornava mais bela. Para que Deus perdoasse ao mundo, devia ser calcada como as ervas rasteiras. Ser nada nas mãos de Deus — para que Deus a ouvisse.
Como soube que nas concavidades dos montes, nas noites caladas e túmidas de luar, há mendigos sequiosos de amor? Desgraçados que passam a vida à espera de uma boca que lhes estanque a sede que os devora? Sonhos desesperados e febris, fomes, almas que se perdem, criaturas que raivam com urros bravios, chagas e podridões, e que, entre pragas, pedem a Deus alguém que lhes beije a boca gretada?
— Vou partir sozinha... — anunciou um dia.
Opuseram-se os pais. Mas ela todo o dia e toda a noite chorou. Vieram bispos, santos e o velho solitário, seco e nodoso, que parecia o tronco de uma árvore, e que disse: — É a vontade de Deus. — Ofereceram os reis os seus tesouros, construíram-se templos, fizeram-se promessas. E a santa Eponina, sem uma queixa, todo o dia e toda a noite chorava. A voz chamava-a, cada vez mais alto a chamava. Até que vieram os castigos, e dois anos as terras de semeadura não deram pão. E o velho solitário incessantemente pregava nos campos: — Deixem cumprir a vontade de Deus!
Vê-la morta! Antes vê-la morta do que deixá-la partir por esse mundo, pura como um lírio, entregue às mãos do diabo! Era a única filha daqueles reis, a graça da sua velhice, e delicada como uma flor. Mas outro ano estéril veio. A corte heráldica, recortada em ouro, desapareceu, fugiu; os homens esmolaram, reduzidos a osso. Ressequidas sob a vastidão implacável do céu, as campinas pareciam planícies doutro mundo já morto. As águas encharcaram, os campos converteram-se em ossários de pedra. Ao longe via-se passar um bando de fantasmas: era a população que emigrava, mostrando os punhos ao palácio, onde o rei teimava em não deixar partir a filha. Secaram por fim as fontes, e o velho castelo foi abandonado pelos escravos que fugiram e as ameias desguarnecidas pelos soldados desertores. O velho rei teve de fechar as portas pelas suas próprias mãos. Até que um dia, o solitário, vestido com um saco, foi bater com um grande calhau nas portas chapeadas e clamou:
— Cumpra-se a vontade de Deus!
— Só temos esta filha, esta única filha!
Mas ele estropiou com o calhau no velho castanho denegrido, e o eco repercutiu- se nas abóbadas solitárias e nas almas imersas em negro desespero.
— A vontade de Deus! A vontade de Deus!
O castelo no alto da montanha era um altivo ninho de águias. Abriram-se as portas, e santa Eponina desceu o monte. De toda a parte tinham vindo os bispos de grandes barbas de luar, os cavaleiros andantes refulgindo ao sol como espadas, e o povo de alma rude e piedosa que em baixo se amontoara chorando em silêncio. O seu pai e a sua mãe choravam. Abençoaram-na os velhos bispos, estendendo as mãos sobre o vale; partiu um soluço da multidão que caiu de joelhos, quando ela desceu o monte, sem que ninguém a detivesse, deixando-os para sempre — santa Eponina virgem, filha de reis, com florestas, riquezas e guerreiros fortes.
Oh como a noite é grande, imóvel, calada, misteriosa, nos sítios ermos, nas grandes florestas podres de velhice; nos montes escalvados só pedra e luar, onde as sombras fantásticas se cosem com o fraguedo, à espera de uma alma errante que se atreva a passar! No alto do castelo os velhos reis escutam numa profunda angústia. Vão devorá-la as feras? Vão estrangulá-la os bandidos? Vão ultrajá-la os homens sem alma que rondam na imensa solidão do país despovoado?... E de repente ouvem na noite branca e quieta um grande grito... De dor? Não, um uivo de alegria, um grito frenético de prazer, o urro dos homens bestiais no momento em que saqueiam uma cidade. Mais fundo ainda, na noite de luar derretido e coalhado, o rugido das feras tresnoitadas sob a magia do luar e o império da natureza. Outra vez o silêncio... E os velhos reis debruçados sobre as ameias choram. E agora — oiçam! oiçam! — o estertor, na noite negra, das mil almas sequiosas que a esperam — o grito do desespero, da podridão humana, dos fundos incógnitos da treva. Oiçam! Oiçam! Ouve-o o velho rei trémulo, que pede a Deus a morte, ouve-o a rainha só dor, que pede a Deus um milagre, ouve-o a multidão, que se roja na terra chorando silenciosamente.
Só Onofre, seco e feroz, clama:
— Cumpriu-se a vontade de Deus!
Souberam-no os desgraçados, os que viam prestes a realizar-se os sonhos de volúpia das noites solitárias, os irrealizáveis sonhos de volúpia que os aqueciam nas noites infindáveis. Souberam-no as feras que vão violar as feras e às quais só o cansaço e a dor deixam prostradas. Souberam-no os dementes, que viam diante de si a luxúria e a morte, e diziam-no em segredos que as bocas pegajosas e imundas só contam a medo à lua branca como um cadáver. Ela entrava nos covis e os seus beijos tinham uma frescura de que ficavam anos com a impressão e a saudade. Entrava nas cidades dos leprosos, nas cidades abandonadas onde as figuras se escoam como fantasmas; nos bairros sem nome das grandes capitais desordenadas que recebem o lixo humano e propagam em conúbios monstruosos o lixo humano; nas cavernas profundas onde o sol se recusa a penetrar e só um fio gelado de luar desvenda o remexer das larvas. Por toda a parte ela aparecia branca e sem um queixume, dando a boca como uma fonte de água pura aos ladrões e aos carrascos.
E mais extraordinária era ainda por não compreender — branca, inocente e límpida entre os chascos, sem compreender a lascívia, os desejos, o sonho de volúpia das almas tenebrosas. Foi de todos. A filha de reis, criada mimosa num berço de ouro, fez-se trapo, pior que trapo, obedecendo à voz que a tornava mais rasa que a lama, e saindo pura de todas as impurezas. A matéria não importa — se o espírito está com Deus. Que digo! À matéria é preciso degradá-la.
Foi dos mendigos e dos leprosos. Esperavam-na cosidos com a noite para caírem sobre ela sem palavra, beijando-lhe os cabelos de ouro. Andou com os ladrões nas estradas e nas mãos de meretrizes. Desceu aos antros. Vinham as matilhas esperá-la à beira dos caminhos, nos sítios ermos e bravios e nela cevavam a sua voluptuosidade e o seu grotesco sonho de amor. Havia monstros que não se atreviam a aparecer à luz do dia, e na noite profunda só o olhar cego e frio, átono e frio, imóvel e frio, lhes luzia. Batiam-lhe. Sujeitavam-na a extraordinárias carícias, a lascívias que durante muitos anos tinham imaginado. Dormiam à sua sombra. E ela, sempre com o mesmo sorriso de piedade e de tristeza, abandonava-se alheada. Atiravam-na fora como um trapo, e santa Eponina erguia-se e partia com a sua candura imaculada. De toda a parte acorriam os mendigos ascorosos, caravanas de leprosos: alguns arrastavam-se pelos caminhos, com rugidos, outros blasfemavam na noite, não querendo morrer sem a terem possuído.
— O que eu quero? O que eu quero é dormir contigo, bem junto a mim, à minha carne onde as chagas supuram, é sentir a tua frescura na crosta desta pele que requeima como uma brasa — ó minha amada! — E as fauces abriam-se em risos que já não eram da vida mas do túmulo. — Dá-me a tua boca! O que eu quero de ti é a tua boca! — E ela curvava-se sobre os seres imundos que não tinham boca e que insistiam de entre a podridão: — Beija-me na boca!...
Desceu mais baixo ainda, não por amor dos homens, mas por amor de Deus, ignorando a matéria e saindo pura de todos os enxurros humanos — santa Eponina, filha de reis, com escravos, florestas e guerreiros fortes. Desceu mais baixo que as mulheres mais baixas. A vida acabou por lhe parecer imensa floresta apodrecida onde os homens são monstros. Desceu tão baixo que chegou a ter o verdadeiro sentimento da vida, o da grande floresta putrefacta onde vagueiam seres de sonho e formas de dor mutilada, mãos geladas que tateiam no escuro, formas cegas e formas hesitantes de pesadelo. Sentiu os contactos viscosos dos homens em esboço, só ventres obscenos, só infâmia, só grotesco e desespero...
Oh, que figura pálida e branca, na cabeça o sol enrodilhado e um fio de ouro a escorrer-lhe pelos ombros abaixo! Que figura para ser apanhada e levada para as cavernas, entre risos bestiais, cevando-se nela todas as brutalidades do instinto! Que ser inerte e delicado, sem resistência, para se apertar entre as garras, ouvindo-se bater-lhe o coração como o de um pássaro que se afoga — e sentindo-o morrer devagar!...
E desceu sempre, desceu mais, desceu tão fundo que acabou por ser imaterial.
O castelo ainda lá está em cima como um altivo ninho de águias. Os velhos reis morreram. Abateram os tetos, e nos corredores, abobadados, nos grandes pátios desertos onde a erva inútil cresce, clama, ainda e sempre, aquela voz frenética que se apoderou das ruínas:
— Cumpriu-se a vontade de Deus! Cumpriu-se a vontade de Deus!