Isto é grave, porque é atroz ...

A. HERCULANO
Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Prólogo
À Memória de
António José da Silva,
Escritor português assassinado nas fogueiras do Santo Ofício em Lisboa, aos 19 de Outubro de 1739

Parte Primera

CAPÍTULO I

Há um fenómeno moral, muitas vezes repetido, e todavia inexplicável: é a esquivança desamorosa de mãe a um filho excluído da ternura com que estremece os outros, filhos todos do mesmo abençoado amor e do mesmo pai que ela, em todo o tempo, amara com igual veemência. Tristíssima verdade, exemplificada como o principal dos absurdos e lamentáveis enigmas da condição humana! Mistério é este vedado às dilucidações filosóficas; e, portanto, mais defeso ainda às superficiais averiguações de um romancista, que, muito pela rama apenas e imperfeitamente, pode desenhar o exterior dos factos, abstendo-se de esmerilhar causas incógnitas ao comum dos homens.

Exemplo desta aberração — se devemos chamar aberrações às deformidades morais que não dependem da vontade humana — era uma nobilíssima fidalga, que, em 1699, residia no seu palácio da Rua Larga da Bemposta, em Lisboa.

Chamava-se esta dama D. Francisca Pereira Teles, e era esposa de Plácido de Castanheda de Moura, contador-mor dos contos do reino, e filha do octogenário Luís Pereira de Barros, comendador de S. João do Pinheiro, morgado da Bemposta, chamado também o contador-mor, por haver exercitado aquele importante cargo, que renunciara no seu genro.

Teria quarenta e dois anos, D. Francisca. Era mãe de três galhardos rapazes. O primeiro, chamado Garcia, amava ela em extremo; o segundo, que era Jorge, desestimava com entranhado desafeto; o terceiro, chamado Filipe, não se estremava do amor ao primeiro.

Que havia de estranho e desamável em Jorge para exceção assim odiosa? Qualidades justamente dignas de sentimento inverso. Na infância distinguira-se dos irmãos pela quietação e meiguice. Na juventude avantajava-se-lhes em aplicação e engenho na cultura do espírito, já mancebo, se não era isento de culpas, seus irmãos excediam-no em crimes.

Porque não amava, pois, D. Francisca, de preferência, o filho Jorge, se os outros, sobre serem ineptos, lhe estavam dando grandíssimos desgostos em cada dia?

E mais triste coisa ainda: o pai compartia da indiferença, senão desafeto, da mulher àquele filho! Às estouvices de Jorge aplicava a severa correção do vício; à libertinagem de Garcia e Filipe chamava “verduras da juventude”.

Jorge, porém, tinha um amigo na família, amigo que a Providência lhe dera no seu avô Luís Pereira de Barros, pai da sua mãe. Afeiçoara-se o velho à mansidão do neto infantil; vira-o crescer nos seus braços com branduras ameigadoras, como se a criança previsse o futuro desamor dos pais, e estivesse de contínuo a granjear a amizade do avô. Aumentava a ternura do velho à medida que o desprezo da mãe recrudescia.

O menino, refugindo aos maus tratos dos pais, acolhia-se aos joelhos do ancião, que, trémulo de cólera, se erguia a exprobrar as ruins entranhas da filha. Isto, em vez de melhorar a posição de Jorge, agravava o quase ódio de D. Francisca, porque saíam logo a conjurar contra o jovem a emulação de Garcia e Filipe, emulação fundada num tesouro, que o seu avô tinha escondido em lugar ignorado, tesouro de que, diziam eles, Jorge esperava ser herdeiro.

A existência de um cofre recheado de moedas de ouro antigas e pedras de alto valor, trazidas das índias e Brasil por pais e avós do contador-mor, não era imaginária, nem fabulada pelo velho, em razão de se lhe irem as faculdades morais desfalcando e deperecendo.

Passara assim o caso:

Luís Pereira de Barros, contador-mor dos contos do reino, assistiu com outros fidalgos do paço ao jantar de Afonso VI, no dia 23 de Novembro de 1667. Concluído o jantar, el-rei retirou-se à sua câmara, e Luís Pereira ao seu quarto.

Ao fim da tarde, entraram no paço violentamente João da Silva, tenente-general, e o marquês de Marialva, à frente de alguns oficiais. Foram em direitura aos aposentos do rei, cujas portas fecharam por fora com chaves que levavam.

Espertou o contador-mor ao insólito ruído que ia no paço, e correu aos quartos do rei. Um capitão de cavalos meteu-lhe uma espada à cara, e disse-lhe: “Recue, senão espeta-se!“

Estacou Luís Pereira, e ouviu o bradar do rei, que batia à porta do vestíbulo com a coronha de um bacamarte carregado com vinte e quatro balas. O criado leal do monarca atraiçoado e preso era tão afeto a Afonso VI, quanto valoroso. Quis remeter contra o vestíbulo, foi ferido na face, e ali expediria a alma, se o marquês de Marialva lhe não acudisse, exclamando:

— Primo Luís, não vertas o teu sangue inutilmente! Afonso está preso para nunca mais ser livre. Se te faz engulho a honra do país, vai-te embora, antes que o povo amotinado te leve no esquife ou nas alabardas.

De feito, Afonso VI começara naquele momento a sua agonia de dezasseis anos por trevas de cárceres.

Luís Pereira de Barros saiu do paço escoltado por alguns oficiais enviados pelo Marialva, e entrou nas suas casas da Bemposta, no intento de sair do reino.

A tormenta do povo começava a rugir não longe da Bemposta. O contador-mor temeu-se de ser atacado, roubado e morto na sua casa. Abriu os seus contadores, e lançou num cofre as riquezas mais graúdas. Desceu às lojas do palácio, e escondeu-se no desvão de uma velha cavalariça, sobraçando o cofre, e a filha, que teria então treze anos. A onda popular esbravejou à porta do palácio; mas um brado sobrelevou à grita, clamando que os amigos do infante deram escolta protetora ao contador-mor.

Desandou a mole da plebe contra as casas de Henrique Henriques de Miranda, privado do rei preso; e Luís Pereira, assim que o rumor cessou, por noite alta, saiu da escuridade das lojas, e passou algumas horas velando o repouso da filha, que já não tinha mãe.

Ao romper da manhã, acompanhado de um escudeiro muito seu privado, desceu ao jardim com o cofre, e tomou por senda arborizada até sumir-se no mais afogado de um bosque, onde, no centro de um tanque seco, estava uma tosca estátua de Neptuno. Arreou-a do soco onde assentava, e destapou um quadrado de pedra, em forma de caixa, onde, noutro tempo, a água represava para dali repuxar à boca da estátua. Depôs nesta caixa o cofre precioso, ajustou sobre ela a base da estátua, cobriu as junturas com terra tirada à mão de um lameiro húmido, cobriu esta camada com outra de terra seca, e retirou-se pela vereda mais furtiva.

Ao entardecer deste dia, despediu alguns servos, e com a filha e poucos criados passou ao Alentejo, e jornadeou toda a noite. Ao abrir da manhã, chegou a uma das suas quintas, e tratou em fechar a ferida da face.

Aqui se deteve quatro anos, sem curar de saber se os cargos e regalias lhe tinham sido tirados pelo infante, governador do reino; até que, um dia, o marquês de Marialva lhe mandou perguntar se vinha exercer as funções de contador-mor, no qual encargo fora provisoriamente nomeada pessoa que não convinha ao serviço, nem, convindo, seria efetiva nele, enquanto o primo Luís Pereira de Barros não se exonerasse.

Era tempo de casar Francisca. Plácido de Castanheda de Moura, alcaide-mor de Basto, comendador de S. Salvador de Sarrazes e S. Paio de Oliveira de Frades, a tinha pedido. O contador cedeu-lhe a filha, e o cargo, mediante o consenso do infante. Voltou a família para Lisboa, e para o palácio da Bemposta; mas o tesouro não foi exumado do seu esconderijo, nem Luís Pereira declarou à filha ou genro onde ele estava.

— Não tendes precisão do dinheiro nem das pedras, que lá estão — dizia ele. — de um momento para outro, espero rebeliões e tumultos, porque o pobre Afonso sexto tem amigos, e a Divina Providência não pode ver impassivelmente a perversidade com que lhe roubaram o trono, a mulher e a liberdade. Quando romperem os tumultos, romperão as joldas de salteadores, e então nos será preciso esconder o precioso. Deixá-lo estar, que o não roem as toupeiras. Quando eu vir o céu sereno, e a paz consolidada, então irei buscá-lo. E, se eu morrer de repente, já sabeis que trago neste dedo um anel, em cujo interior do aro encontrareis decifrado o enigma, sem recorrerdes ao livrinho de São Cipriano, nem às revelações das mouras encantadas ou desencantadas nos orvalhos de São João.

A cobiça de D. Francisca e do marido, e os ardentes desejos de Garcia e Filipe, grandes dissipadores, respeitavam o segredo do ancião, e não ousavam esquadrinhar nos pardieiros e subterrâneos da parte velha do palácio a lura do cobiçado tesouro.

Eis a razão dos ciúmes da mãe e irmãos, quando viam Jorge mais querido do avô, e mais recolhido com ele em secretas conversas.

Desde certo tempo, Luís Pereira, como desconfiando talvez que os perdulários sobrinhos se atrevessem, estando ele adormecido, a tirar-lhe o anel do dedo, quis, sem motivar o acto, que Jorge dormisse no quarto dele. Esta inovação mais assanhou a mãe; todavia, o prudente marido observou-lhe que se houvesse de modo que não azedasse a ira do pai, sob pena e risco de alguma hora o velho dar o segredo, o cofre e rica independência a Jorge.

Ansiosamente espiava D. Francisca modos de contraminar o afeto do velho.

Deparou-se-lhe um, que a Providência dos inocentes lhe inutilizou.

CAPÍTULO II

Estava em casa destes fidalgos uma criada de vinte anos de idade, bela, órfã de pai e mãe, que ambos tinham sido queimados, como judeus, no auto-de-fé de 1685. O compassivo Luís Pereira tirara das presas da miséria aquela menina de cinco para seis anos, e deu-lhe, no batismo, nome de Maria, para lhe tirar da memória o nome Sara; e assim, com o tempo, a lavar de toda a suspeita de hebraísmo. A triste criança recordava-se dos mimos da sua casa e carinhos dos pais, um ano depois que fora arrancada aos peitos estreitados de ambos. Depois, nunca mais os vira; e, somente aos dez anos, soubera o horrendo suplício que sofreram. Julgava-os presos, desterrados, mas não pulverizados a fogo, e confundidas suas cinzas no lodo do Campo da Lã.

Aos dez anos, Sara ainda se lembrava do rosto da sua mãe. Quando queria, a pedido do seus amos, compará-la, dizia: “Quando me olho ao espelho, penso que a vejo a ela.“

Ora, Sara ou Maria muitas vezes ouviu D. Francisca exclamar ao contemplá-la:

— Muito finda és, menina! se a tua mãe assim foi, que pena ser ela judia! Que bela criatura comeu o fogo!... Oxalá, ao menos, que ela se convertesse à última hora! Assim, pode ser que as tuas rezas lhe aliviem as penas do purgatório.

— E ela há de estar ainda penando no purgatório?! — perguntava Maria aos quinze anos, com mais juízo que inocência.

— Pois então!, se ela não conhecia o verdadeiro Deus! — emendava D. Francisca.

— Se O não conhecia, para castigo bastou queimarem-na neste mundo. No outro mundo conhece ela o verdadeiro Deus, e adora-o, como decerto havia de adorá-lo cá, se O conhecesse.

O castigo do fogo, na outra vida já não lhe aproveita lá... parece-me.

— Estás a dizer heresias, rapariga! — acudia D. Francisca com severidade pia. — Acho que ainda não entendeste bem o teu catecismo... Ferve-te o mau sangue nas veias...

Maria não replicava: ia ler o seu catecismo, e pedia ao verdadeiro Deus lhe permitisse que a sua mãe e pai vissem as lágrimas dela, e a levassem para si.

Dois filhos do fidalgo tratavam-na com liberdade de amos pouco escrupulosos em respeito à pureza e à dependência; Jorge, porém, da mesma idade dela, e o seu companheiro de infância, ao tocar nos quinze anos, mudou a facilidade do trato e confiança em cerimoniosa seriedade — mudança que Maria, muito magoada, estranhou. A compostura grave de Jorge e a estranheza contristada de Sara exprimiam o alvorecer de dois sentimentos iluminados por estrela de má sina.

Amavam-se, e tão desde o íntimo à flor da alma, que um dia, ao perpassarem um pelo outro num corredor solitário do palácio, pararam, fitaram-se, e um nos olhos do outro viram-se espelhados nas lágrimas.

— Tu choras, Sara! — disse ele.

— Não, senhor Jorge... Estou alegre... Pensei que me aborrecia... Gosto de o ouvir chamar-me Sara: pensava eu que vossa Senhoria me desestimava porque era esse o meu nome, antes de me chamar Maria.

— Para mim — volveu ele — serás sempre Sara. Mais te amo, quanto mais odiada te vejo do mundo.

— Mais me ama!... — exclamou ela.

— Sim...

— Oh, meu Deus!... — clamou ela pondo as mãos suplicantes.

— Mais te amo, sim... Não vês que também eu sou perseguido?! No peito do meu avô é que eu tenho coração de pai, mãe e irmãos. Toda a minha família me detesta! Que mal faço eu?...

— Isso pergunto eu a Deus, senhor Jorge!... — balbuciou ela.

— Não temos pai nem mãe, Sara! — disse o jovem. — Os teus eram israelitas, e amavam-te muito; mas mataram-tos: os meus são cristãos, abominam-me, e dizem que os judeus morrem como devem morrer. Que hei de eu pensar destas tristezas do mundo? O pensar e ler faz-me um grande mal ao espírito...

Nisto, reteve-se, e disse em sobressalto: — Vai, vai, Sara: ouço as passadas da minha mãe... E fugiram, cada um pela sua porta lateral do corredor. Depois deste encontro, repetiram-se uns curtos colóquios ajeitados pelo acaso ou furtivamente diligenciados, bem que as expressões trocadas fossem tão desmaliciosas e honestas que podiam ser ouvidas por toda a gente, excetuados os familiares do Santo Oficio. Maria encontrara no coração de Jorge piedade com os infelizes hebreus; gostava de ouvi-lo carpir a sorte dos que gemiam avexados sob a vigilância dos hipócritas, até que a crueza e ferocidade lhes iluminava com o círio amarelo e com as labaredas o caminho do purgatório ou do irremissível inferno.

Quatro anos de melhorada vida e parca satisfação correram entre as duas almas, que se amavam e acoutavam de todos para se falarem, exceto do velho Luís de Barros, que não tinha no seio peçonha que vertesse nos singelos galanteios do seu neto e da mocinha, salva por ele da fome, da prostituição, e Deus sabe se da fogueira.

E, entretanto, no ânimo de D. Francisca entrara a suspeita, encarecida pelo desejo que ela tinha de levá-la à prova. Foi grande parte nisto o desdém e altiveza com que a judia repulsava as liberdades brutais de Garcia e os desonestos ímpetos de Filipe, chegando a acusá-los à mãe.

— E o senhor Jorge não te incomoda? — replicou a fidalga com desabrimento.

— O senhor Jorge?... — disse Maria, corando.

— Ah!, coras?... — acudiu a matreira vitoriosa. — Então sempre é certo!...

— Certo o quê, senhora? — tartamudeou Maria.

— Não gaguejes, impostora! Eu já o desconfiava... Ora cautela, cautela, que eu sou tão boa como má, quando os ingratos me voltam do invés!

Maria, sem acordo da sua situação para rebater as suspeitas, confirmou-as com a mudez. Saiu da presença da fidalga, chorando. Terrível confissão aquela, cujo efeito, ainda o mais desastroso, segundo a lógica da humana maldade, ninguém podia prever.

Assim que o lanço se ocasionou, a judia referiu a Jorge o acontecido: o jovem tremeu, ocultou os seus pavores, e foi desafogar-se com o avó, sem contudo, menos respeitoso, lhe confessar quanto amava Sara. A grande e terrível aflição de Jorge era o medo de vê-la ainda nas garras da suprema Inquisição.

Consolou-o o avô, desvanecendo-lhe preocupações horríveis sobre o futuro procedimento da sua mãe. Dizia-lhe o velho:

— Pois não vês que a tua mãe é minha filha? Seria capaz ela da fereza que a tua imaginação concebeu? É verdade que eu me espanto dos sentimentos desavergonhados desta filha que eduquei religiosamente, sem biocos nem visagens piedosas; mas sim com o mais depurado espírito das sãs virtudes antigas. Assim a tive até casar, assim a entreguei ao teu pai, que se me figurou mancebo de bom e forte carácter, e creio que o é, salvo na fraqueza com que aplaude todas as vontades da mulher. Isto está mau; mas, meu filho, não posso eu já melhorá-lo. Comigo ninguém já conta senão para me beijarem a cadavérica mão quando me tirarem este anel! — disse o ancião entre riso e choros. — No entanto, Jorge, a respeito desta rapariga, aconselho-te que não a inquietes; primeiro porque é nossa serva, segundo porque é uma pobre, sem parentes em Portugal, sem ninguém. se a tua mãe a expulsa de casa, que fará? Perde-se; e, se tu a tomares ao teu encargo, perdida está, Entretém-te com os teus livros; mas lê pouco do Montaigne e Brantôme. Fiz mal em dar-tos.

Discutes de mais: tendes às dúvidas luteranas. Bem sei o que é. Começas a odiar a Inquisição: também eu, há muito, a odeio; todavia, resigno-me com a época, porque ninguém pode pôr peito de encontro às ideias do seu tempo. Tu ou os teus filhos vereis a revolução dos espíritos e costumes. A Alemanha cá virá, como foi à França, e as demasias da religião há de cauterizá-las o ferro do soldado, assim como o fogo do frade queima hoje em dia os rebeldes à soberania dos pontífices.

Do discurso do velho facilmente inferimos que ele tinha lido Montaigne, e adivinhado Voltaire, que naquele tempo, teria quatro anos. E, todavia, religioso e santo ancião era aquele! Se pudesse viver mais cinquenta anos, aceitaria cordialmente as reformas do conde de Oeiras; mas, como justo e humano, odiaria o déspota, o coração duro, que não soube colher frutos sem regar a árvore com muito sangue inútil.

Ficara o velho, sentado e acurvado na sua poltrona, rodando entre os escamados dedos a sua caixa de tabaco de Espanha, e pensando nos embaraços de coração em que via enleado o seu querido neto, quando D. Francisca aproximou-se dele acariciando-lhe as farripas de alvíssimo cabelo, que lhe caíam nas espáduas.

— Jantou muito pouco, meu pai! — disse ela.

— É verdade, filha: vai-se-me o apetite; a vida quer ir-se...

— Não pense nisso...

— Não pensava, não. Quem já adivinha e contempla a aurora do dia grande, não volta os olhos para a noite do dia passado...

— Já cá esteve o Jorge, depois de jantar? — perguntou ela, caindo de chofre no ponto.

— Saiu agora daqui. Deteve-se D. Francisca sem saber como começar. O pai relanceou-lhe os olhos penetrativos, e abaixou a cara, continuando a rodar a caixa de ouro entre os dedos.

— Receio — disse ela — que o Jorge nos prepare desgostos grandes.

— Como assim? — perguntou serenamente o velho. — Então que há de novo?

— Uma ação indigna de um neto de Luís Pereira de Barros.

— Olá... então é coisa de maior!... Conta-me lá isso com ânimo desapaixonado, filha.

— O pai está assim com uns ares de gracejo!...

— São ares de velho, que tem visto muito mundo, e muita fraqueza. São oitenta e quatro anos vividos em épocas muito desgraçadas e revoltas. Ora diz lá, que eu te escuto muito sério.

— Eu lhe conto, meu pai. Jorge, se já não é amante da judia, procura sê-lo — disse com azedume fictício D. Francisca, e esperou a indignação do pai, que se ficou impassível. O silêncio de ambos ia-se delongando, quando o velho disse:

— Provas.

— As provas é andarem eles conversando a ocultas, e Maria corar quando eu a interroguei.

— Se ela não corasse, provava melhor as tuas suspeitas... Não te parece?!

— Corou de medo — acudiu D. Francisca.

— Não corou de medo — contradisse o velho.

— Então de que foi? De vergonha?

— Não podia envergonhar-se de amar um teu filho. Seria o sangue do coração, que lhe subiu ao rosto a pedir-te misericórdia.

— E hei de eu tê-la?

— Porque não, se Jesus Cristo a teve com mulheres criminosas?!... Maria é uma daquelas a quem Jesus diria: “Vai em paz, que não pecaste.“

— Ora essa!... O pai tem coisas!... — replicou sorrindo contrafeita. — E diria Jesus Cristo isso mesmo à judia!...

— Isso é ignorância, filha. Jesus Cristo nasceu entre judeus, e sobre judeus derramou os tesouros da sua misericórdia, e aos judeus perdoou o deicídio quando se foi ao seio de Abraão.

— Parece-me que o pai não faz bem em dizer semelhantes coisas a Jorge!...

— Não me repreendas, filha, que eu tenho oitenta e quatro anos.

— Eu não o repreendo — volveu Francisca brandamente mas Vossa Senhoria bem sabe o que são rapazes que leem os livros dos hereges.

— Vamos ao ponto, Francisca, e deixa lá os livros dos hereges... Então que queres tu?

— Que o pai repreenda meu filho, já que ele me não respeita.

— Calúnia, teu filho respeita-te; e, se te não ama, a culpa é tua. Não revivamos a questão do teu desamor a este filho. Pejo-me de entrar nela. Basta dizer-te que não tens nem tenho porque censurar Jorge. Aconselhá-lo sim: já o aconselhei.

— E entende o pai que não devo dar mais passo algum?

— Entendo.

— E quando a desgraça for irremediável?

— E quando o céu cair sobre nossas cabeças? Os actos mais inocentes do homem podem encaminhá-lo à desgraça. Não vejas o péssimo, quando nem sequer te assustam aparências do mau.

— De maneira — retorquiu a filha irritada — , de maneira que devo continuar a ter em casa a judia!...

— Deves, em consideração à inocência dela, e à minha vontade, porque fui eu que a fui buscar a casa do pobre atafoneiro que a recolheu.

— E Jorge pode fazer o que quiser!...

— Não: há de fazer o que o for justo, e o que as circunstâncias lhe disserem que é o melhor.

D. Francisca, rubra de despeito e cólera, exclamou:

— O pai perde-me aquele rapaz! O seu apoio é que lhe dá uma sobranceria orgulhosa nesta casa!

— Vai-te, que me estás incomodando — concluiu pacificamente o ancião.

Saiu D. Francisca, e foi contar ao marido a conversa com o pai.

Plácido de Moura, obtemperando aos frenesis da esposa, disse-lhe:

— O teu pai está louco: é a decrepitude. Não faças caso dele, e executa o que te parecer acertado.

— Dizes bem — acudiu ela — ; mas o anel?

— O anel que tem? Ele não o levará para a sepultura... Nós teremos cuidado.

— E se Jorge lho apanha?...

— Deixa-te disso. O velho há de morrer insensivelmente sem julgar que morre. Não o desampares tu, assim que o vires mais enfraquecido. Eu vou tratar de obter um governo no ultramar para Jorge. O caso é desviá-lo daqui.

— Um governo! E logo um governo! — interrompeu a esposa.

— E Garcia? E Filipe? Que carreira começam?

— Não querem sair de Lisboa. As mulheres, as freiras de Odivelas, as de Chelas, as comendadeiras, enfim, as funçanatas da corte não os deixam tratar da vida. Deixá-los, que estão novos, e têm futuro independente. A nossa casa está grande, e o tesouro do teu pai, segundo o que lhe ouvi, quando ele calculou os cabedais que o teu avô trouxe da Índia, e a herança do teu tio, que morreu em Alcácer Quibir, deve orçar por cento e cinquenta mil cruzados em dinheiro e pedras.

— Pois então — condescendeu D. Francisca — não te descuides: deixá-lo ir para o ultramar, e depressa antes que ele pratique alguma indignidade. Mas o pior é se o pai nos embarga a ida de Jorge...

— Qual? Eu encarrego-me de convencê-lo. Este diálogo fora escutado involuntariamente por Sara. Estava ela numa alcova riçando e anelando a cabeleira da sua ama, quando os dois esposos entraram à sala contígua. Susteve-se, indecisa se sairia; mas, desde as primeiras palavras, ficou estupefacta e como chumbada ao pavimento, e sem respiro.

Azado a oportunidade, disse pelo alto a Jorge quanto ouvira. O jovem deu-se pressa em avisar o avô. Sorriu-se o velho da ansiedade do neto, e disse-lhe:

— Este anel tem feitiço: ele te salvará, rapaz. Enquanto a Maria, se ela for despedida, nós a salvaremos. És tu homem de bem?

— Peça-me provas, meu avô! — acudiu o jovem.

— Olha para essa infeliz menina como eu olho. Quando a tentação te dobrar, ergue-te e diz: “O meu avô quer que eu seja homem de bem!“

CAPÍTULO III

Plácido de Castanheda de Moura, volvidos alguns dias, disse ao sogro:

— Trato de arranjar posição a Jorge: é preciso tirá-lo desta vida de estudante, que não vai dar a coisa nenhuma.

— Pensas erradamente, Plácido: a vida de estudante vai dar à sabedoria, que é tudo.

— Mas não é profissão lucrativa, queria eu dizer. Lembro-me de lhe arranjar um governo dos subalternos na Índia ou no Brasil.

— Bom começo de vida é; mas seria bom que começasses pelo mais velho — observou Luís de Barros intencionalmente.

— Esse tem o morgadio... — acudiu o genro.

— Que pode desbaratar — disse o ancião — , se o deixares na liberdade, no ócio e dissipação em que vive.

— É rapaz: nós não fomos melhores, meu pai...

— O que tu foste, mal o sei; eu de mim, comecei a ser homem de bem desde os quinze anos... Lembrava-me que requeresses o governo para Filipe, que não tem morgadio.

— Filipe tem inteligência muito curta.

— Então já te parece que o estudar serve de alguma coisa... Vens dar-me parte da tua resolução, a respeito de Jorge, ou pedes o meu parecer?

— Desejava ouvi-lo...

— Deixa estar o rapaz em casa: é-me necessário, criei-o eu nestes braços, quero-lhe muito. Isto não é parecer, é súplica.

— Cumpra-se a vontade do pai; porém, Francisca vive desgostosa por certos amorinhos de Jorge com a judia...

— Sempre a judia! — atalhou sorrindo tristemente o ancião. — Dantes chamava-se Maria a desventurada criatura; de há tempos para cá, sempre que falam dela, chamam-lhe, em tom de desprezo, “a judia”!... A tal respeito, já eu disse a Francisca bastante e de mais. Ela que to refira, se ainda o ignoras. Tu e a tua mulher sois maus! — bradou de repente o ancião, erguendo-se convulsamente sobre os encostos da poltrona. — Sois maus, sois feras para este filho, que é um bom rapaz, e para aquela mocinha, que é uma desgraçada! Andai! Andai! Apertai bem a coroa de espinhos sobre as cãs de quem vos deu tudo, e reservou para si o amor do neto, que lhe quereis roubar!

— O pai é injusto! — exclamou o corrido genro. — Não consente que Jorge dê contas das suas ações a quem lhe deu o ser ?!...

— Consinto e quero; mas reservo para mim o direito de vos pedir contas a vós, e Deus mas pedirá a mim. Deixai-me na paz que os meus anos e os meus trabalhos carecem.

O velho escondeu o rosto entre as mãos, e Plácido de Castanheda foi relatar à esposa a irritação do pai.

— Está decidido! — exclamou ela. — Jorge põe-nos o pé na garganta! E daqui a pouco a judia fará o mesmo...

E soltou uma gargalhada, articulando entre os impulsos do maldoso riso:

— Havia de ter graça!... Não!... Dela eu me vingarei!... Eu sou filha de Dona Maria Teles — prosseguiu ela com disparatada cólera. — Tenho sangue da rainha que fez enforcar a gentalha em frente do paço de a par São Martinho. Sou Teles, e basta!

— Não te aflijas! — acudiu Plácido. — Não é para tanto o caso, menina... Se alguém te ofendesse, filho ou criada, bastaria a mão do teu marido, ou as correias dos teus lacaios para te vingarem!

Ao mesmo tempo, Luís Pereira mandava sentar Jorge à sua escrivaninha, e dizia-lhe:

— Escreve o que eu vou dizer. Olha que vais dar-me prova de homem de bem. Escreve.

E ditou:

Eminentíssimo e muito reverendo cardeal, arcebispo, primo e senhor meu. O jovem que vos leva esta é vosso parente, e o meu neto, Jorge de Castanheda de Barros. Dai-lhe a vossa bênção, e consenti que vos ele beije os pés. Depois fazei-me a mim mercê, como a primo, e amigo vosso desde que vos beijei, quando eu tinha quinze anos, aos peitos da vossa mãe, a senhora condessa D. Leonor de Mendonça, minha muito prezada prima e senhora; mercê, digo, me fareis de mamordes escrever, e rubriqueis ordem ou aviso para que no Convento da Madre de Deus seja recebida como secular, a expensas minhas, uma donzela familiar desta vossa casa, que houve nome batismal de Maria Luísa de Jesus, e antes fora Sara de Carvalho, filha de hebreus que morreram no fogo. Deus vos guarde anos dilatados, primo, prelado, cardeal, e senhor meu.

Casa, 2 de Novembro de 1699
Vosso servo e primo
Luís Pereira de Barros

Jorge escrevia com os olhos turvos de lágrimas. O avô, atraneto, e disse:

— Essas lágrimas não envergonham, filho; e a obediente coragem com que escreveste, sem levar mão do papel, é a tua meritória façanha de homem de bem. Ora vai. Os lacaios que tirem fora o meu coche. Irás como teu avó costumava ir ao paço dos príncipes da Igreja, quando eles não eram inquisidores...

O cardeal D. Luís de Sousa acolheu muito benigno o seu parente, cruzou-lhe muitas bênçãos, e mandou que sem demora lhe entregassem o aviso solicitado.

Posto em presença do avô o consternado Jorge, com a ordem do arcebispo, chamou Luís de Barros o seu velho escudeiro António Soliz, e ordenou-lhe que pedisse à Sra. D. Francisca o favor de vir àquela sala.

E a Jorge disse:

— Vai, e espera que eu te chame. Entrou a fidalga.

— Chamei-te, minha filha — disse o velho — , para te avisar de que Maria vai recolher-se ao Convento da Madre de Deus. Assim acabam teus dissabores e receios.

— Então vai para criada de alguma freira? — perguntou ela em tom de menoscabo.

— Não vai para criada de freira. Vai como secular.

— Quem a sustenta?!

— Eu.

— O pai?!...

— Sim filha.

— Pode fazer o que quiser... — disse com má sombra.

— Agradecido à condescendência — redarguiu Luís de Barros, sorrindo. — Tenho ainda a pedir-te que dispenses uma das tuas criadas para ir com ela até ao convento.

— Pois sim...

— E com as duas irá o Jorge.

— O meu filho?! Não sei se me parece bem um meu filho a acompanhar criadas!

— Assim como o teu pai foi ao cardenho do atafoneiro buscar Sara, a filha dos judeus queimados, do mesmo modo pode sem desaire ir teu filho acompanhar ao convento Maria, a cristã.

— Bem... Faça-se em tudo a vontade de vossa Senhoria.

— Agradecido, filha. Dá ordem para que Maria venha falar-me.

D. Francisca transmitiu à serva o recado por uma escrava.

Maria, trémula e lacrimosa, entrou à antecâmara do fidalgo. já a triste nova da clausura lhe tinha soado por intermédio de Jorge.

— Vem cá, menina — disse ele. — Salvei-te do infortúnio da orfandade há quinze anos: não pude remediar todas as dores que perseguem a filha sem pai nem mãe; fiz, porém, o que pude.

Entraste nesta casa como criada, e vais sair como senhora. No Convento da Madre de Deus tens uma cela e uma pensão abundante; e na prioresa desta casa acharás uma amiga. Vai com Deus, e prepara-te.

Jorge, novamente chamado, escreveu, conforme os dizeres do avô, uma carta à sua parenta soror Leonarda, prioresa da Madre de Deus. Ao fim da tarde, Maria foi, lavada em lágrimas, despedir-se de D. Francisca. A fidalga voltou-lhe as costas, dizendo:

— Quem havia de supor que esta raça maldita viria perturbar o sossego da minha casa!?... Nós faremos contas...

Repelida tão desabridamente, foi despedir-se de Plácido de Castanheda de Moura, que restringiu o seu menospreço às palavras: “Passe bem. “

Filipe e Garcia andavam no picadeiro amestrando cavalos, e dispensaram as despedidas da criada.

Luís de Barros não pôde evitar que Maria, ajoelhada, lhe beijasse os pés. Apertou-a ao seio, e disse-lhe:

— Sê virtuosa para nos encontrarmos no céu; que na terra, não nos veremos mais.

Jorge esperava, no pátio, Maria e a criada que lhe era companhia. Por ordem do velho, entraram no coche, carruagem sua especial dele. À portaria daquele triste mosteiro, Jorge proferiu as primeiras palavras na presença da criada particular da sua mãe. Foram estas:

— Maria, não desanime. Temos vinte anos.

— Até ao Dia do Juízo? — disse ela arquejante.

— Ânimo! — murmurou ele apertando-lhe a mão. D. Francisca, informada deste breve e aflitivo diálogo, exclamou:

— Eu vos tomo à minha conta, canalhas!... Que vergonha!... Um neto de Maria Teles!... Um filho de Francisca Pereira Teles apertar a mão da criada da sua mãe... da judia!...

CAPÍTULO IV

Redobraram os maus tratos de D. Francisca ao filho Jorge. Plácido, divertido nos seus importantes encargos, lavava as mãos da responsabilidade daquela flagelação. O jovem, vencida a paciência pelos sorrisos dos irmãos e alusões chocarreiras e pungentes da mãe, já fugia de se juntar à família nas horas de repasto. Para não exacerbar os padecimentos do avô, ocultava-lhe a perseguição; mas o velho sabia tudo da lealdade do seu escudeiro. Já Luís de Barros premeditava retirar-se para o Alentejo com o seu neto; mas a consumpção de espíritos e forças era já tamanha e tão rápida, que o ancião receava finar-se no caminho.

Quando a filha desconfiou do propósito do pai, inflamou-se de ira contra Jorge. O fatal anel tomava-lhe no pescoço as proporções de um cadeado estrangulador. A raiva lutava nela com os cálculos; mas o génio irascível subjugava todos os protestos astuciosos. Raivando em assomos de ódio, gritava D. Francisca Teles que daria de bom grado o tesouro por satisfazer a sua vingança!

Soube ela que Jorge, de dias a dias, se demorava no locutório do convento, e que o escudeiro do seu pai entregara à prioresa da Madre de Deus quantia de dinheiro considerável.

A exasperação devorava-a. Não teve mão de si que não arguisse, em rosto dele, seu pai de tresloucado pela idade. O velho pôs as mãos voltado para o seu santuário, e murmurou a frase de um santo: Amplius, amplius, Domine (“Mais, mais, Senhor!”)

Ninguém ousava contrariá-la. O marido tremia dela. Os filhos davam nenhum valor aos seus desgostos e acessos furiosos.

Um dia, D. Francisca mandou tirar a sua sege, e deu ordens secretas ao lacaio. Parou à porta de D. Veríssimo de Lencastre, inquisidor-geral, e o seu parente. Entrou, deteve-se largo espaço, e saiu com o rosto afogueado de feroz alegria. Quando entrou em casa, bateu rijo o pé no pavimento, e disse à sua aia:

— Eu descendo de Leonor Teles! Sou Teles, não sou Barros! Ao outro dia, o padre capelão do Mosteiro da Madre de Deus entregava ao escudeiro de Luís de Barros uma carta da prioresa. Leu-a o velho, e exclamou:

— Minha filha é perversa! Vai tu chamar Jorge. A aflição dera-lhe forças para levantar-se de golpe da sua poltrona de entrevado.

— Jorge! — clamou ele convulsivo — , está em perigo a liberdade e talvez a vida de Maria. Os oficiais da Inquisição foram ao convento. A prioresa escondeu a pobrezinha.

— Meu Deus! — exclamou Jorge. — Espera: Deus escuta o teu grito... Eu sinto-me com os espíritos claros e vigorosos. É preciso tirá-la do mosteiro... tirá-la de Lisboa... tirá-la da fogueira. A tua mãe quer arrastá-la até lá... Poderás tu e o Soliz transportarem-me nos braços até ao coche?... Podeis, que eu vos ajudarei. Que me levem a casa do duque do Cadaval... já, já.

Foi o ancião em braços até à carruagem. D. Francisca, espantada do sucesso, quis atalhar-lhe a passagem, com termos de filial amor. Luís de Barros relanceou-lhe os olhos, e bradou-lhe:

— Parricida! A filha gritou que acudissem ao pai que estava louco. Confluíram os criados. E o velho, vendo-se rodeado, simplesmente disse:

— Deixai-me passar que não estou louco. Os servos, manietados pelo aspeito venerando do ancião, abriram-lhe passagem. Francisca esbravejava, com os olhos cravados no dedo do anel.

Entraram na carruagem, depois de Luís de Barros, Jorge e o escudeiro. O fidalgo amparava-se nas espáduas de ambos, com a cabeça inclinada ao braço do neto.

O duque, avisado de que tinha entrado ao pátio o coche do venerando contador-mor, desceu a abrir-lhe a portinhola. O velho chamou a si o ouvido do duque, e contou-lhe a situação da reclusa da Madre de Deus.

— Lutamos com uma força invencível — disse o duque. — Não obstante lutaremos. Vai buscar-se à noite. Previna Vossa Senhoria a prioresa. Amanhã estará na minha casa; depois irá para Oeiras; e depois pensaremos. O mais acertado é tirá-la de Portugal, ou pelo menos de Lisboa.

— Sairá de Lisboa e de Portugal. — obtemperou Luís de Barros. — É também o meu parecer. Salve-ma por três dias, senhor duque.

Ao fechar-se o dia, as avenidas do Convento da Madre de Deus estavam sitiadas de espias, que a prioresa e outras religiosas espreitavam dos raros e frestas dos dormitórios. Por volta da meia-noite, os esbirros e familiares da Inquisição desampararam o posto, e daí a duas horas, na torre da igreja, ao través dos rótulos, transluzia uma lanterna, sinal convencionado com Jorge. Acercaram-se então da portaria dois homens encapuzados, que escondiam a libré da casa de Cadaval. A pouca distância parara uma sege, e dentro dela uma matrona, que devia ser alguma das aias da duquesa.

Abriu-se a portaria subtilmente; saiu Sara, convulsiva de medo; os criados ladearam-na com as mãos nas misericórdias das espadas, e conduziram-na à sege. A judia sentou-se ao lado da mulher, que lhe disse em voz animadora.

— Não tenha medo, que tem bom padrinho. A sege despediu a galope desapoderado, rodeando por Odivelas, até entrar à estrada de Oeiras. Apearam no vasto pátio de uma quinta. A aia da duquesa subiu com Sara, conduziu-a a um quarto, e disse-lhe:

— Fique sossegada até nova determinação do senhor duque. Assim que se levantar, a mulher do feitor desta quinta virá receber as ordens da Vossa Senhoria.

No entretanto, Luís Pereira de Barros pensava em transferir Sara ao Brasil, no intuito de a salvar nalguma das colónias, e mormente na do Rio de Janeiro, onde o fidalgo tinha um sobrinho governador, e Sara parentes que no começo do reinado de D. Manuel se tinham expatriado para ali, pressagiando a sobranceira tormenta.

Jorge, com o coração repassado de angústias, escutava, sem ousar contraditá-los, aqueles desígnios do avô, que redundavam em completa separação da sua querida Sara.

Passava isto na manhã do dia 4 de Agosto de 1699. Às onze horas deste dia, abriram-se as portas dos templos de Lisboa para deixarem sair e entrar procissões de imagens milagrosas que se cruzavam dumas igrejas para outras. A cidade estava consternada, por saber que a rainha D. Maria Sofia Isabel de Neuburgo, segunda mulher de Pedro II, estava a arrancar da vida. Às cinco horas e meia da tarde expirou a formosa soberana com trinta e três anos de idade, quando o Senado preparava festejos para celebrar o aniversário do seu casamento.

Feriaram-se todos os negócios e actos do Governo, exceto os processos e cogitações do Tribunal do Santo Ofício. A conversão das almas, e o purificá-las ao fogo, não devia ser coisa que a morte de uma rainha estorvasse. O Convento da Madre de Deus foi de novo visitado pelos familiares, quando o cadáver da rainha era levado ao Mosteiro de S. Vicente de Fora, e as torres ululavam as suas tremendas elegias.

As naus, já aprestadas para levarem ferro para o Brasil, ferraram âncora. A tristeza oficial não permitia que os secretários de Estado se distraíssem de chorar a enorme perda. Esta contrariedade penalizou Luís Pereira de Barros, e deu largas ao coração de Jorge.

Instava, porém, o duque sobre a urgência de remover a judia de Oeiras, visto que o inquisidor se via amartelado por reiteradas requisições do promotor do Santo Oficio.

Alvitrou o duque enviá-la para a Beira Alta. Na Covilhã se tinha estabelecido uma família hebraica, com quem os marqueses de Ferreira, avós do duque, tinham tido relações de boa amizade. Esta poderosa família, enganando a boa-fé de uns familiares e comprando a ferocidade de outros, vivia na Covilhã tranquilamente, e protetora oculta dos israelitas perseguidos.

O duque preveniu o chefe da família, que por vezes fora seu hóspede em Lisboa, e o mesmo foi ir o velho hebreu à capital, donde se partiu com Sara, disfarçada em filha sua.

Jorge contentou-se desta ida, e mais que tudo da promessa de algumas cartas, por mediação da aia da duquesa.

Ao mesmo passo, Luís de Barros pedia a Deus um pouco de vigor que o transportasse ao Alentejo com o seu neto. A convivência da filha era-lhe insuportável. Francisca fumegava de enfurecida por se ver acalcanhada pela judia, que todas as tentativas de vingança lhe malograra. Este ódio declinava sobre Jorge manifestamente. Contra o pai não apontava ela o insulto porque lá estava o anel, como escudo de diamante, a quebrar-lhe a fúria. Cresceu ao extremo a raiva, quando ela soube que o velho ordenara aprestos para se recolher à quinta do Alentejo.

Fora marcado o dia 27 de Outubro para a partida de Luís de Barros e Jorge; mas, por volta do meio-dia, tremeu a cidade de Lisboa com tamanhas convulsões, e tanto foi o terror nos espíritos do velho que as poucas forças se lhe quebrantaram.

Cobriram-se as ruas de procissões de penitência. Os dominicanos prometiam serenar a vingança divina queimando mais alguns centenares de marranos, epíteto que era a quinta-essência do sarcasmo contra os israelitas, no entender dos devotos. D. Francisca Pereira Teles abundava nas ideias dos frades, atribuindo os terremotos, que duraram vinte dias com intermitências, à ira divina contra os cristãos-novos.

Disseminou-se então grande cópia de exemplares de um livro intitulado: Sentinela contra Judeus, Posta na Torre da Igreja de Deus, etc., traduzida do espanhol por Pedro Lobo Correia, escrivão da Contadoria-Geral da Guerra e Reino.

Releu Francisca o livro com as entranhas escaldadas de alegre rancor, se podemos dizer assim.

Dum capítulo intitulado: “Os que Favorecem aos Judeus... nunca Terão Bom Fim...“, sublinhou algumas linhas, e mandou o livro ao pai. As linhas assinaladas diziam, depois da narrativa de um certo rei inglês que passou à espada milhares de judeus: “Infiram daqui os que tiverem mediano juízo, que havendo tantos nestes nossos tempos, de donde nos podem vir senão deles tantas desgraças, como experimentamos, de guerras, mortes, fomes, roubos, insultos, onzenas, falta de crédito... “

D. Francisca Pereira escreveu em seguimento na mesma linha: “e terremotos. “

Na página seguinte sublinhou as palavras... “quão danoso é para os cristãos-velhos que esta vil canalha ache amparo em pessoas grandes e qualificadas, a quem de ordinário se acolhem vendo-se oprimidos... “

Luís Pereira de Barros leu atentivamente as palavras marcadas. Mandou que lhe dessem da sua estante o livro dos Evangelhos, e traçou uma cruz à margem dos versos 36 e 37 do capítulo VI do Evangelho de S. Lucas, e mandou a Bíblia à filha. Os versos diziam:

Sede, pois, misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso.

Não julgueis e não sereis julgados, não condeneis e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoados.

CAPÍTULO V

Os irmãos de Jorge, acirrados pela mãe, ocasionavam, a cada passo, insidiosas provocações que os acobertassem do ódio do avô, caso espancassem Jorge, a valer, como a vontade lhes pedia.

O irmão esquivava-se, e desarmava-os com a prudência muito recomendada pelo avô. Garcia e Filipe, todavia, não perdiam lanço de o chacotearem à conta da sua gravidade hipócrita, e presunção de sábio. Jorge redarguia com desprezador silêncio.

Um dia, porém, Garcia, como andasse jogando a barra com outros fidalgos no quintal, disse, galhofando, a Jorge, que passava:

— Ó mano, pega lá desta alavanca, a ver onde chega o teu pulso.

Jorge parou, e respondeu sorrindo:

— Se eu tivesse um bom pulso antes quisera exercitá-lo na espada.

Filipe acudiu com sarcástico remoque: — O teu pulso dava-se melhor com as manilhas das mulheres...

Retrucou Jorge, sorrindo ainda:

— Não sendo elas tão valentes como a Brites de Aljubarrota... Seria necessário que fossem das muitas que há tão linguareiras como tu.

— Boa palavra! — exclamou Garcia.

— Olha, mano, a língua de Filipe corta menos que a espada...

— Basta que regulem... — voltou Jorge.

— E tu? — interveio Filipe. — Que armas jogas?

— Tenho duas no meu cabido de armas: uma é a prudência, outra é o desprezo; e, se alguma hora precisar de armas brancas ou negras, para me tirar a limpo de alguma honrada façanha, pedirei de empréstimo as vossas, manos. — Eu só empresto as minhas a quem puder com elas — disse Garcia.

O inepto Filipe acrescentou: — Eu também.

— Qualquer asno albardado poderá com elas — disse Jorge, fazendo gesto de retirar-se.

— Olha cá — disse Garcia — , que notícias nos dás da judia?

— Nenhumas — respondeu o jovem serenamente, bem que lhe entrasse o coração em nojos, e o sangue em quenturas.

— Vê-la-emos cedo de sambenito e carocha? — disse, cascalhando brutalmente, Filipe.

— Desejas esse espetáculo? — perguntou Jorge. — Que mal te fez a desgraçada mulher?

— O bem fê-lo ela a ti... — redarguiu o irmão com intenção desonesta. — Guapa rapariga é!... Se o Santo Oficio ta pilha, temos assadura... nem o avô ta salva.

— Cala-te que te estás envilecendo, meu irmão! — disse Jorge sofreando os ímpetos.

— Vilão és tu! — bradou Garcia — , que nos estás sujando com esses amores próprios de criado de escada a baixo! Essas paixões costumam medrar nas cavalariças...

— Sois uns tolos maus... — concluiu Jorge, dando-lhes as costas.

— Olé! — vozeou. Garcia — , não te vás, perro de regaço; vem cá repetir isso, covarde!

Jorge retrocedeu, e disse:

— Deste-me nas costas um nome que me não cabe: diz-mo no rosto, Garcia.

Os jovens, que tinham assistido silenciosos à altercação, aproximaram-se de Garcia, e pediram-lhe que não fosse injusto com Jorge. O insultador, porém, rompendo os diques do ódio represado, repetiu a injúria, crescendo sobre o irmão. Jorge esperou-o impassível. Garcia arrojou ao chão a alçaprema que tinha sobraçada, e lançou-se-lhe arca por arca. Os fidalgos acudiram; mas já a tempo que o peito do agressor arquejava debaixo de um joelho de Jorge.

Filipe covardemente lançara mão da alavanca: os amigos e parentes arrancaram-lha, conclamando que não praticasse um vilíssimo feito.

Este lance foi visto e ouvido de D. Francisca Pereira Teles, desde a primeira palavra até que um dos filhos queridos caiu torcido pelo filho odiado. Levantou ela grande alarido, e foi queixar-se ao pai.

Luís de Barros mandou-a esperar, e ordenou que viesse Jorge à sua presença.

Entrado o jovem disse-lhe:

— Conta-me o que há passado. Jorge, sem deslizar um ápice da verdade, referiu o sucesso, posto que a mãe, às vezes, o interrompesse, clamando:

— Mentes! Finda a narração, Luís de Barros mandou chamar Garcia, Filipe, e os fidalgos testemunhas do conflito. Voltado a ambos os netos, o ancião disse:

— Um de vós conte o que sucedeu. Nenhum respondeu, encarando-se ambos reciprocamente. Luís de Barros, dirigindo-se aos amigos e parentes da sua casa, relatou o caso como o tinha ouvido a Jorge, e perguntou:

— Amigos, é verdade o que Jorge me referiu? Lembrai-vos de quem sois para não mentir a um velho que viu nascer vossos pais e mães.

Os interrogados, comovidos pelo respeito e pela consciência, responderam:

— É verdade. E um acrescentou:

— Eu pedi ao primo Garcia que não fosse injusto para seu irmão.

— Bem! — disse o velho — , falaste verdade, Jorge! Deus te abençoe. Podeis ir todos à vossa vida. A minha filha, sê boa mãe. Nada mais te digo. Pudera chamar-te fera; mas as feras amam os filhos. Garcia e Filipe, maus futuros vos agouro... E vós, jovens de bom carácter, sede sempre o que fostes agora, quando pesardes o ouro da vossa palavra. Ide todos em paz; e tu, Jorge, fica.

As conscienciosas testemunhas, por amor do seu depoimento, receberam, fora dos aposentos do velho, sinais de ódio nos trejeitos com que D. Francisca os encarou.

Os dois corridos mancebos voltaram-lhes as costas, quando eles se dispunham a dar-lhes satisfação por não poderem mentir aos cabelos brancos de Luís de Barros.

A descendente da rainha sanguinária chamou os filhos à sua antecâmara, disse-lhes com torvo rosto;

— Sois uns poltrões, se vos não desforçardes deste insulto! É o que me faltava ver!... Jorge a calcar-vos aos pés!... Isto não pode continuar assim ... Dizei ao vosso pai que Jorge há de sair desta casa, ou vós a deixais!

— Nada disso... — atalhou Garcia. — Há de deixá-la ele, ou eu lhe corto as goelas!

— Também eu — acudiu Filipe.

— Se o avô não estivesse ali — disse Garcia — , eu lhe juro, mãe, que ele não veria o sol de amanhã...

— O maldito anel!... — murmurou D. Francisca. — Aquele infernal anel!... Vós nunca pensastes no modo de quebrar este encantamento?...

— Eu já — disse Filipe — , mas não lhe vejo furo. Como se lhe há de tirar?

— Não sei, não sei! — disse com raivoso desalento a mãe. E acrescentou: — O pior é se eles vão para o Alentejo depois deste caso... E, se o vosso avô lá morre, adeus, tesouro!

— Se o avô desse o anel a Jorge — objetou Garcia — , o pé não o punha ele cá para desenterrar o dinheiro e as joias. nós supõe que o tesouro está nas lojas, ou nos entaipamentos da parte velha do palácio. Nós cavaríamos até encontrar: não tenha medo a mãe que o anel aproveite ao Jorge.

— Pensas bem! — disse alegremente D. Francisca. — Atiram-se a baixo as paredes velhas, e cavam-se os terrados das lojas. Eu lembro-me que o vosso avô, quando saiu com o cofre nos braços, era de madrugada, e demorou-se coisa de uma hora.

O cofre está enterrado dentro de casa: ele não o ia esconder na terra da quinta, com medo que alguma vez os lavradores o achassem.

— Isso é assim — concordaram os filhos.

— A mãe não tenha pesar de perder o anel — disse Garcia. — Por amor disso, não sofra o avô nem o Jorge. Se forem para a quinta, deixá-los ir.

Ao mesmo tempo, Luís Pereira de Barros dizia a Jorge: — Não pensemos na jornada, filho, que eu não posso. Olha tu como os pés me estão inchando!... já me pesam para a cova... Isto acaba já... Vou para os oitenta e cinco; e, se Deus me desse outra família, figura-se-me que chegaria aos noventa ou mais...

— Eu sou causa de muitos desgostos do meu avô — interrompeu Jorge. — Se eu tivesse saído dentre os meus, creio que o meu avô teria mais sossegada velhice... Se ainda fosse tempo, eu iria para longe...

— E poderias deixar-me nesta solidão a ver-me assim morrer de dores de corpo e alma? Poderias, Jorge?

O jovem ajoelhou diante do ancião, e aqueceu-lhe com os lábios as mãos enregeladas. Nos vincos daquela veneranda face luziam as lágrimas, em que pareciam vir os últimos raios da luz dos olhos que tão copiosas tinham chorado, desde o dia em que o seu querido Afonso VI perdera a liberdade, até àquela hora em que parecia oferecer-se-lhe o neto como continuador da sua existência amargurada.

E, como em prática de si consigo mesmo, murmurava ele:

— De que te servirá a riqueza, malfadado rapaz? Rico era eu, e quantas invejas tive dos meus servos e dos meus escravos!... Riquíssimo e rei era o filho de Dom João quarto, e da prisão de Sintra mandava pedir a esse bárbaro, que aí está no trono, que lhe mandasse o enxota-cães do palácio para companhia!... Mais feliz sou eu que vejo à minha beira umas lágrimas de amoroso coração, uns olhos consternados que se fitam nos meus, e não vêm, como os da minha filha, todos os dias, averiguar se este anel ainda aqui está... De nada te valerá o tesouro que ele encerra, filho, se a tua estrela é má!... Olha Jorge, assim que eu fechar olhos, o segredo que este anel te disser confia-o do nosso fiel António Soliz, que finge não o saber... Ele te ajudará, e tu protege-o depois... Não terás escavações que fazer...

— Meu avô! — interrompeu Jorge — , por caridade, não me fale de modo que me obrigue a considerá-lo morto!... Enche-me de amargura, que é mais do que pode comportar a minha despedaçada alma!... Faça por viver, meu amigo, meu amparador! Afugente essa ideia terrível, que o quebranta! Lembre-se de mim... Lembre-se daquela infeliz menina que, pela sua morte, vem a perder o amparo que hoje tem...

— Ampará-la-ás tu, Jorge...... — atalhou Luís de Barros.

— Eu!...

— Sim, tu, o teu ouro, o teu ouro não manchado... ouviste?... Não desonrado... Olha que não é salvação de mulher, seja ela qual for, o dar-lhe amparo a troco da pureza... compreendes-me, filho?

— Sim, meu avô... Eu não penso...

— Não pensas, não, Jorge... Tu és um anjo: se deixares de o ser, serás muitíssimo mais desgraçado.

CAPÍTULO VI

A fuga de Sara não descoroçoou o ânimo vingativo de D. Francisca Teles, nem esfriou as inculcas de D. Veríssimo de Lencastre, instigado pela ilustre dama, cujo desembaraço por gabinetes de deputados e conselheiros do Santo Ofício arguia a desenvoltura de costumes nos primeiros anos de casada.

Não obstante, a judia estava segura em companhia dos Sãs da Covilhã, ricos fazendeiros e laboriosos artífices, posto que ao conhecimento do bispo da Guarda chegasse a nova de existir uma cara desconhecida entre os familiares de Simão de Sã.

Porém, como quer que o bispo fosse criatura do duque de Cadaval, e os hebreus muito da amizade deste fidalgo grande privado do rei, a denúncia não surtiu efeito.

A Inquisição teria de envergonhar-se da sua impotência, se não descobrisse o paradeiro de Sara. Os agentes mais ladinos puseram peito a lavar esta nódoa do Santo Oficio, e vingaram o intento pelo mais fácil dos expedientes, bem que derradeiro na execução.

Um dominicano, confessor no Convento da Madre de Deus, ganhou facilmente a consciência das suas confessadas, empenhando-as no descobrimento do destino de Sara. Estas religiosas eram das mais reformadas e venerandas, usavam cilícios, e avergoavam as santas costas com disciplinas às sextas-feiras. A prioresa, ainda assim, guardara delas e de todas o segredo do destino da cristã-nova, porque assim o prometera ao seu parente e benfeitor Luís Pereira de Barros.

Possuídas do Lúcifer de Domingos de Gusmão — Lúcifer que, infernalmente engenhoso, andou aí três séculos enroupado nas túnicas apostólicas para escarnecer e desacreditar a mansidão triunfante do filho de Deus — , as três freiras predestinadas assediaram a confiança da prioresa com tais ardis, segredados pelo espírito das trevas — às vezes lucidíssimo — que a embaída soror Leonarda chegou a declarar que a serva do seu primo Luís Pereira estava da mão do duque de Cadaval. Não satisfaziam estas informações o Santo Ofício. Prosseguiram as possessas nas suas inculcas, e descobriram que a judia passara do convento para Oeiras. Daqui avante, começava a ineficácia do demónio no espírito das esposas do seu rival. Fez-se-lhe ver que era preciso envolver a cauda, esconder as pontas na cabeleira de algum familiar do Santo Ofício, e ingerir-se em Oeiras.

O feitor do duque, sujeito de entranhas ímpias, que por vezes fora encarregado de despejar um arcabuz no peito do conde de Castelo-Melhor, inimigo político do Cadaval, como estivesse a entrouxar para a eternidade, ofereceu a infâmia da perfídia como desconto dos seus pecados, e lançou-a no regaço da túnica de um frade de S. Domingos, delatando que a judia fora levada de Oeiras pelo hebreu Simão de Sã para a Covilhã.

Os agentes da Inquisição na Guarda receberam ordens; o bispo foi consultado no expediente da execução, e preveniu o hebreu de modo que a procedência do aviso ficasse ignorada.

Simão de Sã avisou o duque, assegurando-o do bom recado em que estava Sara, muito a salvo da perseguição. O duque inteirou disto o seu amigo Luís de Barros, aconselhando-o, sem impedimento da segurança do hebreu da Covilhã, a pensar no modo de transladar a sua afilhada ao Brasil. E juntava: “Se a filha de Vossa Senhoria não desistir desta pervicaz perseguição, mais hoje mais amanhã, a avezinha cai nas garras do milhafre.“

Reparou Jorge no riso ferino da sua mãe, e numas casquinhas que ela garganteava, quando podia ser ouvida do filho. Com esta mudança na torva catadura de D. Francisca Teles coincidiu o aviso do duque. O ancião decifrou a alegria satânica da filha, e cobrou-lhe rancor do íntimo.

Sobre-excitado pelo ardor do sangue, Luís Pereira sentiu-se um pouquinho avigorado, não já para jomadear, mas bastante para transferir-se com Jorge para casa do seu primo Diogo de Barros da Silva, bisneto como ele do grande historiógrafo João de Barros.

D. Francisca viu sair as arcas e contadores do pai. Correu alvoroçada à câmara dele, e perguntou:

— Que mudança é esta, meu pai?

O ancião olhou-a muito no rosto, e respondeu:

— Perguntas se o anel também se muda, Francisca?

— Que me faz o anel?!... O que eu lhe peço, senhor, é que me diga a causa desta saída, que vai dar que falar na corte e na cidade!...

— Tenho medo de ti e da Inquisição... — murmurou o velho com alegre sombra. — Não vás tu acusar-me de judaizante, Francisca... O fanatismo e a vingança aboliram as leis da natureza. Não há pai por filho nem filho por pai. Agora deixa-me dirigir estas coisas... Jorge, manda preparar o meu coche.

Francisca trincou a língua até esvurmar sangue empestado. Para resfolegar do peito afogado de ira, lembrou-se do alvitre de Garcia no propósito de cavar e demolir até descobrir o tesouro. Saiu de ímpeto e afogueada da presença do velho, o qual, encostando a face ao peito, disse:

— Quanto eu quis a esta filha!... Como eu me separo dela às portas do tribunal do Altíssimo, onde vou dar contas do mimo com que foi criada nos meus braços!... Filha sem mãe... Não chegou a ouvir a virtuosa que lhe deu o leite... A minha santa mulher, que dor seria a tua no céu, se de lá pudesses ver esta filha de quem tu, quase morta, me dizias: “Deixo-te o coração no seio desta criancinha!“...

Enxugou as lágrimas, e pediu a Jorge e ao escudeiro que o vestissem. Depois, olhou em derredor de si, sobre as alfaias restantes dos seus aposentos, e disse:

— Naquele quarto nasci... Ao fim de oitenta e quatro anos daqui me vou... e ninguém amaldiçoarei em respeito à imagem do meu pai, que ali deixo pendente, para que nesta casa fique, ao menos, o retrato de um varão justo. Desce-me daquele prego o retrato da tua avó, Jorge: esse irá connosco... Desconfio que os teus irmãos, com as parceiras da sua libertinagem, cheguem até este recinto onde ela morreu.

Em seguimento, Luís de Barros, olhando muito de perto o retrato da sua esposa, apertou o painel ao seio, esteve-se alguns minutos a desabafar em soluços, e quase esvaído de alento acenou que o levassem dali. No trajeto ao coche ninguém lhe saiu ao encontro. E o velho ia dizendo a sós consigo:

— E, todavia, Deus sabe que eu não amaldiçoei esta família... nem vingança lhe peço... Misericórdia, misericórdia para eles e para mim...

Luís de Barros, na luxuosa aposentadoria que o primo lhe alfaiara, achou-se rodeado de parentes e amigos que o génio desabrido de Francisca Teles afugentara do palácio da Bemposta. Radiava o contentamento da paz em volta dele. Cada pessoa competia com as outras em adivinhar-lhe os desejos. E, não obstante, o ancião tinha saudades do seu quarto, e da soledade a que se afizera com o neto. Os importunos afetos dos parentes hospedeiros, e frequentes visitas doutros molestavam-no. Pesava-lhe a esvaída cabeça; era-lhe pouco o ar para o peito em que havia represa de muitas lágrimas, e receios por aquela pobre Sara que muito o agonizavam.

Passados dias, o duque deu-lhe aviso de ter sido assaltada a casa de Simão de Sã pelos esbirros do Santo Oficio. O assalto baldara-se. A casa do hebreu tinha subterrâneos com entradas inacessíveis à solércia dos quadrilheiros da Inquisição, bem que sagazmente afuroados em avenidas de calabouços.

Recresciam-lhe, pois, as angústias ao excruciado ancião, agravadas pelo silêncio consternador de Jorge, que não ousava lastimar Sara para não dilacerar a alma do avô. Tratos vãos! Não cabiam mais paixões naquele trespassado peito.

O inquisidor, já impacientado com as teimosas solicitações de D. Francisca, e informado pelo duque de Cadaval da índole vingativa da brava filha de Luís de Barros, recebeu-a de má sombra, e disse-lhe que a judia já não estava na Covilhã, segundo informações fidedignas. Os colegas dominicanos de D. Veríssimo, mais desconfiados e menos dobradiços a respeitos e rogos do duque, prometeram a D. Francisca não levantar mão da empresa piedosa. Com esta promessa de fogueira, cedo ou tarde, se foi alimentando o cancro roedor das entranhas da fidalga.

CAPÍTULO VII

Nos últimos dias do ano de 1699, Luís Pereira de Barros disse a Jorge:

— Não chego ao novo século...

— Olhe que são hoje vinte e três de Dezembro, meu avô — atalhou Jorge.

— Bem sei, filho, bem sei... Acabo com o meu espírito em toda a luz, que n Senhor lhe deu. Não tive ainda hora de me esquecer; e, contudo, o esquecimento, neste meu triste acabamento de corpo, seria um favor do céu. Falemos com tempo, Jorge.

— Vai falar-me de morrer... — interrompeu o neto. — Não quero ouvi-lo...

— Hás de ouvir-me, que não tens querer. E tirou do dedo o anel, dizendo:

— Lê essas palavras que aí estão escritas no reverso do arco. Jorge hesitava em pegar do anel. Luís de Barros instou:

— Lê, Jorge...

O jovem, alimpando as lágrimas, leu:

NA CAIXA DE NEPTUNO.

— Percebes? — perguntou o velho. — Quer dizer que o cofre está no depósito daquele Neptuno do chafariz do bosque. Sabes?

— Sim, meu avô.

— Dá-me uma carteira que está na quinta gavetinha daquele contador.

O neto foi buscar a carteira, e o velho continuou:

— Lê o que diz a última folha de um caderninho que aí está. Jorge leu:

NOTA

Contém o cofre vinte e quatro contos de reis em variadas moedas de ouro.

Item: duas dúzias de brilhantes que foram do meu avô Pedro de Barros e Almeida.

Item: as joias encastoadas em pentes de ouro, e quinze anéis que foram da minha avó Dona Leonor de Barreiros.

Item: os copos da espada com diversa pedraria, que o meu avô materno Dom Jorge de Barreiros trouxe do governo da Baía.

Item: o retrato da minha mulher, sobre marfim, broslado de cercadura de diamantes, que lhe dera sua mãe Dona Inácia Teles de Meneses.

— É isso mesmo — disse Luís Pereira — , lembro-me muito bem. Tira essa folha de papel do caderno, e guarda-a, para que dês no futuro o apreço de coração que deves dar a alguns desses objetos de família.

— É cedo para eu me fazer depositário desta nota — disse Jorge.

— Não é cedo; é a hora ao justo. Agora, guarda esse anel, não já por amor das letras, porque de memória as tens; mas porque foi o primeiro e único anel que tive na minha vida. Deu-mo em mil seiscentos e trinta e seis Dom João de Bragança, que, passados quatro anos, era rei de Portugal. Tinha eu vinte e um anos e andávamos a caçar na tapada de Vila Viçosa. Atirei a um veado com tal agilidade e perícia, que o duque, arrebatado de gosto, sacou do dedo este anel, e mo deu, dizendo-me: “Se eu fosse rei, Luís, fazia-te monteiro-mor do reino.“ — “Antes contador-mor dos contos do reino, senhor duque e o meu príncipe”, lhe disse eu, beijando-lhe a mão. E, quatro anos depois, era ele rei, e eu contador-mor. Aí tens o anel e a sua história, meu filho. Agora, escuta. Depois da minha morte, não te dês pressa em ir buscar o cofre. As entradas do palácio da Bemposta hão de ser espiadas noite e dia. Os alviões e enxadas, se não trabalham já na escavação das lojas e derrubamento das paredes, assim que eu fechar olhos, não há de haver braço inerte naquela casa. Os teus passos hão de ser vigiados de sol a sol. se os teus irmãos souberem que tens no dedo o anel, serão capazes de te mandar matar à hora do dia. Esconde-te, se necessário for. Na segunda gaveta daquele contador de pau-santo acharás dinheiro que farte para viver seis anos fora de Portugal. Será prudência que te alongues da vingança dos nossos. Farás isto?

— Farei o que o meu avô ordenar.

— Mais: o dinheiro, que está na terceira gavetinha, dá-lo-ás a António Soliz, meu honrado escudeiro, que é filho natural daquele Simão Pires Soliz, que, em mil seiscentos e trinta, foi sentenciado como sacrílego, queimado vivo, e inocente padeceu. Eu tinha então quinze anos. em frente da minha casa morava a mulher que houvera de Simão Pires um filhinho, e acabava de o dar à luz quando ao pai da criança lhe estavam cortando as mãos em vida. A mulher morreu.

A criança ficou nos braços da comadre. Soube-se isto na nossa casa. Pedi à minha santa mãe que ma deixasse ir buscar. Alegrou-se o coração da virtuosa. Fui com uma escrava buscar o menino, que é este velho que vês ao pé de mim há tantos anos. Queria deixar-to como herança; mas prevejo que o teu viver será inquieto; e ele tem sessenta e nove anos: carece de repouso. Dá-lhe, pois, o dinheiro para que o meu António goze, desafogados de cuidados, os últimos anos.

Terminou o testamento verbal de Luís Pereira de Barros. Jorge recadou o anel, e a nota cortada do caderno.

Neste dia, D. Francisca Pereira Teles, sujeitando a ira a uma tardia astúcia, ou, porventura, esporeada de remorsos, procurou o pai. Assim que ao ancião lha anunciou o neto, disse ele, sorrindo a Jorge:

— Aí vem, pois, minha filha visitar o anel. Empresta-mo, para que ela não escandalize esta família com alguns assomos de desesperação. Para mim, para ti e para todos é bom que ela o veja. Digam-lhe que eu a recebo. Quero perdoar-lhe antes de me ver com a face do supremo juiz.

De feito, D. Francisca, ao beijar a mão do pai, cravou no anel os olhos. O ancião estremeceu e arquejou ao lembrar-se que era aquela a filha enternecidíssima, o bálsamo das suas chagas trinta anos antes. Nublaram-se-lhe os olhos de água, reparando nela como quem para sempre se despedia.

— Porque não vem para sua casa, meu pai? — disse D. Francisca.

— Já agora — respondeu ele tardiamente — aqui me virão buscar pouco mais morto do que saí da minha casa.

— Pois tem piorado, meu querido pai?

— Não: tenho melhorado. Estou cada vez mais perto do termo da viagem. A canseira é maior; mas a vista da pátria alegra o viandante fatigado.

— E porque não quer morrer no seio da sua família? — tomou a filha.

— Porque a não tenho pelos laços do coração: os do sangue que montam? A minha família toda está figurada em Jorge...

D. Francisca fez um gesto repugnante.

O pai continuou: — Queres ver teu filho?

— Como Vossa Senhoria quiser...

— Não, filha: como for tua vontade.

— E desejará ele ver-me?

— Entendo que sim... António — disse Luís de Barros ao escudeiro — , diz ao menino que venha ver sua mãe.

— Deixe-o estar... deixe-o estar — atalhou D. Francisca.

— António — disse o velho — , não digas nada. E baixou a cara pensativa, enquanto a filha exclamava: — Pois eu não sei que ele me odeia?! Não sei que por causa do tesouro do pai faz guerra aos irmãos e a todos? Não sei que ele é capaz de todas as abjeções e hipocrisias para ficar com o segredo do dinheiro? _ Foi a isto que vieste? — perguntou Luís de Barros, depois de larga pausa.

— Não, senhor: eu vim vê-lo, e pedir-lhe que tome para a sua família. Toda nós está espantada da sua saída!

— Sei que toda nós está espantada, de mais o sei... — disse o ancião. — Já agora não há para que lhe aumentemos o espanto com a minha tomada para a casa onde nasci. Não vou.. Agradeço a tua visita, e vai com a graça de Deus e com a minha bênção.

— Permite-me, ao menos, que eu continue a visitá-lo?

— Sim... — murmurou o pai.

— E quer ver seus netos? — tomou ela.

— Não. Perdoo-lhes, para que me deixem... E tu se tens lá, no secreto da tua vingança, alguma nova aflição que me dês, não venhas aqui.

— Pois assim me lança de si?! — exclamou D. Francisca refinando a malícia com a impostura.

— Eu queria morrer com Jorge ao meu lado — disse o velho — e tu não podes estar onde ele está.

— Que me importa? Deixá-lo estar...

— Não. ódios ao pé de um agonizante são maus sentimentos para ajudar a bem morrer. Francisca, não és boa mãe, como te hei de eu aceitar como boa filha?!

— Sou mãe injuriada, insultada, e escarnecida! Sou filha desprezada e esmagada por um pai iludido pelas astúcias de um perverso!... — bradou ela voz em grita.

— Basta! — clamou o velho — , esta casa não é a tua! Não me envergonhes, nem te cubras de vilipêndio aos olhos dos nossos parentes. Sai daqui! Vai pregar aos frades de São Domingos a virtude purificante do fogo! Vai cavar na masmorra da pobre Sara! Vai ver quantas espadanas de sangue sujam os guadamecins do inquisidor-geral! Sai-te, coração de hiena!

Na sala próxima estavam já os donos da casa, atraídos pelos roucos brados do ancião.

D. Francisca passou por entre eles flamejante de raiva. Nem . de leve acenou com a cabeça. Saltou à sege, e partiu com a garganta recingida da serpente do ódio, que lhe afogava os soluços.

CAPÍTULO VIII

A família entrou de roldão na antecâmara de Luís de Barros, protestando não mais deixar subir D. Francisca Teles à presença do pai. O ancião não respondia às perguntas, nem assentia às reflexões. Parecia surdo, ou falecido de entendimento.

O abalo extenuara-lhe muito das restantes forças. Inclinara ele a cabeça para o ombro de Jorge, que lhe não despregava os lábios da cara. O escudeiro colava a face à respiração do seu amo, desconfiando da brevidade da morte. Jorge murmurou:

— Parece-me que está adormecido... Não façamos rumor. Não tenhas medo, António... O meu avô não pode estar morto...

E o ancião acenou com a cabeça negativamente. As pessoas da casa retiraram-se pé ante pé, cuidadosas em fazer-lhe ministrar os sacramentos. Assim que elas saíram, Luís Pereira restituiu o anel ao neto, e disse com vozes cortadas de pausas ansiosas:

— Não te aflijas, filho, que ainda não é a hora... António — continuou, chamando o escudeiro — , é tempo de ir à Congregação chamar o meu padre Manuel Bernardes... que venha ouvir-me de confissão, e dizer-me as suas últimas revelações da outra vida... Parece que dá saúde ao corpo e à alma ouvir aquele altíssimo espírito do meu oratoriano...

Adormeceu o ancião reclinado na espádua do neto um breve sono entrecortado por passageiras dores, que ele acusava com gemidos e estremecimentos.

Acorreu prestes o douto e apostólico Manuel Bernardes, o qual, com o rosto radioso de alegria, se assentou à beira do seu confessado de vinte e cinco anos, perguntando-lhe:

— Já vos alvorece o dia almejado, meu velho amigo? Temos à vista o farol do céu? Ora, pois, atiremos o ligeiro esquife à garganta das vagas encapeladas, deixá-las remugir, e vamo-nos de nado à praia, que lá estão os anjos com roupas enxutas para nos entrajarem das galas do empíreo.

Jorge, obedecendo a um aceno do sublimado místico, saiu da câmara, e foi chorar nos braços de António, que estava em joelhos e mãos postas na sala vizinha.

Quando estas coisas corriam, Garcia, Filipe e Plácido de Castanheda de Moura, com alguns criados de mais conta, andavam escavando nas lojas e aluindo paredes meio esburacadas. D. Francisca dirigia a exploração com uma atividade digna de melhores resultados. O marido apalpava os terrenos batendo com a alçaprema; e onde quer que a pancada batesse em oco, ou a imaginação lho fizesse parecer, aí caíam as enxadas e alviões com suada freima.

Ao escurecer, abriram mão da obra, e gizaram as escavações do dia seguinte.

— O cofre há de aparecer — dizia D. Francisca — , ainda que se arrase o palácio!

— Não será prudência isso!... — observava o marido timidamente.

— Qual prudência nem meia prudência! — vozeava a consorte, batendo o pé rijo. — Há de aparecer o cofre, porque ele está em casa; e, se esperas pelo anel, então, meu amigo, histórias! Que dizes tu, Garcia?

— Eu digo que sim: o tesouro está lá por baixo, e nós havemos de achá-lo, sem arrasarmos a casa. A mãe já disse muitas vezes que o avô desceu as escadas para o pátio de dentro com o caixote.

— Foi assim — confirmou a mãe.

— Então não há que duvidar — disse Garcia — , se não estiver numa loja está na outra. Havemos de cavar...

— Até ao inferno! — disse Filipe.

— Credo! — atalhou D. Francisca. — Não fales em inferno, menino, que se me arrepiam os cabelos.

— Isto é um modo de falar! — emendou o filho. — Havemos de cavar até onde toparmos o dinheiro.

— Asneira no caso! — interveio Plácido de Castanheda. — O teu avô não teve tempo de fazer grande cova, já porque foi sozinho, já porque se demorou cerca de uma hora, como diz tua mãe. E então é escusado cavar muito ao fundo. O mais que se deve procurar é até à fundura de três palmos; e, se não aparece, pôr o sentido e o trabalho noutro lugar.

— Deixa lá os meninos com o negócio, que eles são mais espertos do que tu — contraveio D. Francisca.

— Pois façam lá o que quiserem — concluiu Plácido para não assanhar a mulher, que já tinha o sobrolho avincado.

No dia seguinte, começaram os desaterros nas cocheiras antigas. Um dos cavadores sentiu estalar debaixo da enxada coisa sonora como tampa, e exclamou: “Cá está! “

Concorreram os interessados por diferentes portas do palácio. D. Francisca Pereira, descendente da rainha Leonor Teles, surgiu à porta da cocheira de saia branca e pantufas de liga. Plácido de Castanheda de Moura saiu de outra porta encapuzado num reguingote, a espirrar muito endefluxado.

Os fidalgos novos arremangavam as camisas para com as próprias mãos desbastarem a camada de terra, e ressurgirem o cofre do seu túmulo de quarenta e três anos, Acocoraram-se todos em redor da cova. Filipe e Garcia esgaçavam as unhas mimosas agadanhando na terra. Lobrigaram uma clareira de superfície sólida do quer que era. A cor era preta.

— Preto era o caixote — disse alvoroçada D. Francisca. — Bem me lembro: era preto com cintas de cobre.

Continuaram a descobrir sem tomarem fôlego. A fidalga, de impaciente, quis também sujar a sua mão de marfim. O contador-mor, em atenção aos reiterados espirros, abstinha-se de humedecer as mãos. Grande júbilo! Encontraram uma argola. Garcia perguntou:

— Minha mãe, o cofre tinha argola?

— Havia de ter por força... — disse ela — Achaste-a?

— Cá está.

— Então venha uma corda, e puxemos — disse Filipe.

— Isso é asneira! — admoestou o pai.

— Porque é asneira?! — interpelou D. Francisca.

— Ora supomos — explicou Plácido — que o caixote está podre do contacto húmido da terra: se está podre, desfaz-se com o empuxão e entorna-se o conteúdo.

— És parvoinho! — retrucou a esposa. — Venha a corda!

— Arranjem lá... — condescendeu o contador-mor, abrindo a boca para facilitar o espirro.

Enfiaram a corda pela argola, e puxaram os dois fidalgos e dois lacaios. Deu de si a tampa: repuxaram, e a tampa ressaltou de um sacão.

D. Francisca fez pé a trás com a mão no nariz. Filipe e Garção saltaram para fora da cocheira. Plácido parecia espirrar o cérebro. Os criados exclamavam:

— Com dez diabos! Fedor assim só no inferno! — Examinado o local pelo servo mais corajoso de nariz viu-se que a tampa era de lousa, e o que ela tapava era o suspiro do escoadouro das fezes, que naquele ponto se havia entupido.

Se este acaso fosse obra providencial, muita gente havia de crer que a Providência castiga como Aristófanes e como Juvenal. Aquele género de zombaria, se não foi odorífero, caiu perfeitamente de molde na ocasião.

D. Francisca foi respirar sais antipútridos. Os filhos, de modo que a mãe os não ouvisse, riam com as mãos nas ilhargas. Os criados, para rirem impunemente, puseram-se de barriga ao chão, abafando as cascalhadas. Plácido de Castanheda de Moura franzia as fossas nasais para provocar o espirro e desinfecionar a cabeça.

Quando se encontraram à mesa do almoço, e encararam uns nos outros, então foi o desabafarem numa gargalhada estrídula e compacta.

CAPÍTULO IX

Estavam ainda à mesa, quando um lacaio de Diogo de Barros da Silva chegou com a notícia de que tinha passado da vida às oito horas da manhã o senhor Luís Pereira de Barros.

— O coche na rua! — exclamou Francisca Pereira. E correu para o toucador a vestir-se. Os filhos, um momento perplexos, perguntavam ao pai:

— Vamos lá? Plácido não os ouviu. Reconcentrara-se com doloroso rosto, e disse:

— Pobre velho!... Santo homem... Devia expirar nos braços da filha, que ele tanto amou...

— E o anel? — perguntou Filipe.

— Não fales agora em anel, filho! — disse o pai. — Reza por alma do teu avô, que foi um português dos que já não há...

— Ora!... — resmoneou Filipe, e saiu com Garcia pressurosamente a perguntarem à mãe, de fora da recâmara:

— Nós que fazemos, mãe?

— Vesti-vos de luto para me acompanhardes. Entretanto, o genro de Luís de Barros encerrou-se no seu quarto para chorar, e pedir à alma do seu sogro que lhe perdoasse a fraqueza com que se ele deixara maniatar pela condição despótica da sua mulher.

Urna hora depois, D. Francisca e os filhos apearam do coche à porta de Diogo de Barros.

As senhoras da casa perguntaram secamente à sua parenta se queria que o saimento se fizesse dali ou do palácio da Bemposta.

D. Francisca não respondeu à pergunta, e disse que queria ver o pai.

— Eu vou conduzi-la, prima Francisca Teles — disse Diogo.

— Jorge está lá? — perguntou ela.

— Não, minha senhora. Jorge está com dois médicos à cabeceira, porque perdeu o alento às seis horas, quando o avô lhe disse adeus, e não o recobrou ainda. Ao pé do cadáver estão os meus filhos, e o escudeiro António Soliz.

— Vamos, primo Diogo — disse D. Francisca. Entraram ao quarto iluminado ainda pelos círios, que ardiam ao lado do Crucificado. Dir-se-ia que daquele recinto saíra, tangida por mão invisível, uma clava de ferro, que bateu no peito daquela mulher. Saltou ela um passo a trás, e amareleceu como se o cadáver se levantasse para amaldiçoá-la. Avançou amparada no braço de Diogo, e retrocedeu ainda, murmurando:

— Não posso...

— Pois não entremos, prima... Eu compreendo o seu horror...

— O meu horror? — perguntou ela assombrada.

— Sim!... Vossa Senhoria encheu de fel aquele honrado coração que ali está morto.

— Não me diga essas coisas nesta ocasião! — exclamou ela.

— É quando Deus manda que lhas diga, minha senhora.

— Expulsa-me, não é assim? — disse ela, desprendendo-se-lhe do braço.

— Não, minha prima, não a expulso, porque é filha de Luís de Barros; porém, quando aquele cadáver tiver saído, as nossas relações, minha senhora, fecham-se no jazigo dele.

D. Francisca relanceou os olhos aos dois filhos, que fitavam sinistramente Diogo. Retrocederam à sala. A filha de Luís de Barros sentou-se ofegante e disse:

— Posso saber que destino teve um anel que o meu pai tinha no dedo?

— Pode, minha senhora. Desse anel, que o duque de Bragança tinha dado ao seu pai, ficou herdeiro seu filho Jorge.

— Herdeiro!... Veremos isso! — exclamou ela.

— Pois veremos, minha senhora — tomou Diogo — , lembro-lhe, todavia, que é muito imprópria a ocasião para discutir-se a herança do anel.

— Mas há de discutir-se! — interveio Garcia. — E há de entregá-lo, que o tesouro é da mãe, e de todos por morte dela — disse Filipe.

— Respeitem o cadáver do seu avô, senhores! — exclamou Diogo de Barros erguendo-se hirto e formidável de majestade. — Respeitem o cadáver do santo homem que apunhalaram com desgostos!

D. Francisca levantou-se, e disse:

— Vamos, meus filhos! Primo Diogo, queira dizer a Jorge — continuou ela cacarejando um riso repulsivo — que vá buscar o tesouro quando quiser.

— Lá o esperamos... — acrescentou Garcia.

— E o cadáver? — perguntou o velho fidalgo a D. Francisca. — Dá-me Vossa Senhoria a honra de lhe dar sepultura?

— Sim, como queira, e eu pagarei as despesas — respondeu ela já da porta.

— É uma mulher que fala... — disse um filho de Diogo de Barros.

— E um homem! — replicou Garcia.

— Dois! — disse Filipe. — Eu já sei como o mais possante dos dois se dobra debaixo de um joelho... — redarguiu o filho de Diogo.

— Basta! — exclamou o velho, impondo silêncio ao filho. — Quem dirá o infame espetáculo que vem dar uma filha do primeiro sangue de Portugal ao pé do seu pai morto!

D. Francisca já tinha descido com os filhos.

O contador-mor, pela primeira vez na sua vida conjugal, deliberou sem consultar a esposa. Assim que soube o sucedido na casa dos parentes do seu sogro, saiu, fechado na sege, com o intento de conduzir o cadáver para a Bemposta.

— Isto é um opróbrio! — disse ele à mulher, que não ousou contrariá-lo.

Diogo de Barros recebeu-o com fria cerimónia, e acedeu à trasladação do defunto, vendo a compunção com que Plácido de Castanheda de Moura beijara a mão do seu sogro.

Depois, como ele perguntasse pelo seu filho Jorge, encaminhou-o ao quarto em que o jovem chorava e secava as lágrimas no rubor febril das faces. Disse Plácido algumas palavras afetuosas ao filho, e acrescentou:

— Não estejas a incomodar esta generosa família: vem para a tua casa, assim que puderes.

Jorge respondeu:

— Não irei, meu pai: beijo-lhe as mãos por essa caridade; mas a vontade do meu avô pode tanto comigo como se ele vivesse. Eu não caibo na casa dos meus pais; mas tenho o restante do mundo como casa. A terra à grande, e não há aí infeliz que não tenha uma parte do céu que o cubra.

Poucas mais frases se trocaram. Plácido saiu a providenciar os aprestos para o saimento; e, ao cair da tarde, o esquife de Luís de Barros foi assentado na essa da capela da Bemposta.

CAPÍTULO X

Ao terceiro dia de sepultado Luís de Barros, continuaram as escavações e desmoronamentos nas lojas, tulhas e adegas da Bemposta. Os baixos daquele palácio eram já ruínas de casa incendiada. Os pátios foram deslajeados; as avenidas do jardim descalçadas; as paredes dos aposentos do finado ancião esgaravatadas e descaliçadas em todos os pontos suspeitos. Plácido de Castanheda benzia-se clandestinamente, e dizia entre si:

— Qualquer hora os tetos abatem sobre nós! Ficamos sem casa e sem tesouro!

D. Francisca Pereira ordenou que, durante a noite, se espiassem as entradas do palácio, temerosa de que o filho Jorge entrasse a desenterrar o cofre. Teve manhas de fazer vir à sua presença o velho escudeiro do seu pai, e prometeu-lhe a doação dumas casas em Lisboa, se ele desse algum indício do local em que o pai enterrara o dinheiro.

— Nunca mo disse, senhora — respondeu António Soliz.

— Nem tu desconfiaste? — volveu ela.

— Nem quis desconfiar, senhora. Foi coisa em que nunca pensei.

— Quando meu pai deu a Jorge o anel, estavas presente?

— Não, senhora.

— E a ti não te deixou nada?

— Deixou de mais para viver sossegado o restante da minha vida; mas se o que ele me deixou fizer falta a Vossa Senhoria, aqui o virei trazer, e irei servir, que ainda posso comigo.

— Quem te fala nisso, António!... acudiu ela. — O que eu queria era fazer-te rico, meu velho amigo, quanto mais tirar-te o que tens!... Queres tu ser rico?

— De que me servia a mim ser rico, senhora? Com pouco se vive e com muito se morre.

— Se fosses rico, podias fazer bem aos teus parentes.

— Não os tenho, ou não os conheço, bem sabe Vossa Senhoria os meus princípios; quando a fidalga era menina, fartas vezes lhe contei o funesto fim do meu pai, e a morte despedaçadora da minha mãe.

— Bem sei; mas... olha que sempre é bom ser rico... E em pouco estava teres tu do pé para a mão uma das minhas melhores casas na Rua das Esteiras, e a melhor horta de Campolide.

António desconfiou de uma proposta aviltante. Fez-se cor de cal, formalizou-se, levantou a cabeça, e disse:

— Eu não sei que vossa Senhoria quer dizer-me. Veja lá, senhora, que fala com o António Soliz que a fidalga conhece há mais de quarenta anos! Olhe que eu tenho a minha honra de pobre, senhora Dona Francisca, e deve conhecer-me...

— Conheço... — atalhou a fidalga abespinhada — , conheço-te como criado do meu pai.

— Tive esse honroso emprego: Deus mo tirou.

— Está bom... Podes sair... Queira Deus que o anel te não saia caro a ti...

— Eu não fujo, minha senhora — volveu serenamente Soliz — , às ordens de vossa Senhoria estou aqui, e onde a fidalga souber que eu esteja.

— Vai-te! Estou farta de palavreado! — terminou a iracunda senhora.

António dobrou o corpo a meio na mais reverente cortesia, e saiu.

Jorge ouviu a narração que o escudeiro fazia do sucedido, Ambos, de pronto, adivinharam que o intento de D. Francisca devia ser propor ao escudeiro o furto do anel, ou a delação das letras gravadas no arco.

O parecer de Diogo, conformado com a vontade do defunto, era que Jorge de Barros saísse de Lisboa para além-mar, ou ficasse em terra afastada da capital até se ocasionar melhor monção de assenhorear-se do pomo da discórdia, que era o tesouro, aquela boceta de peçonha, já envenenadora de algumas vidas.

Jorge aceitou o alvitre que era propriamente o seu. Impulsava-o para a província da Beira o coração. As angústias da saudade do avô eram-lhe ainda afiadas pelo medo da prisão de Sara. Quinze dias eram já volvidos, desde que ele recebera a última carta da sua amiga, por intermédio da aia da duquesa. António foi ao palácio do Cadaval, falou com o duque, e soube que Simão de Sã, para iludir os espiões do Santo Ofício, aconselhara a sua hóspede a não corresponder-se temporariamente com alguém. O duque fez saber ao neto de Luís de Barros que as recomendações do tribunal tinham afrouxado, depois que ele esclareceu o inquisidor-geral sobre a índole vingativa e injusta da perseguidora; sem embargo das tréguas, era, todavia, necessário — recomendava o duque — desconfiar sempre da crise sazonática do sanguinário leão de S. Domingos.

A 10 de Janeiro de 1700, Jorge de Barros e o seu escudeiro António Soliz saíram de Lisboa, caminho da cidade da Guarda, com valiosas cartas para o bispo e primeiros fidalgos daquela cidade. Ao primeiro encontro com os nobres, que aporfiavam em hospedá-lo, Jorge benquistou-se na estima de todos, e criou à volta de si afeições sinceras, que o indemnizavam da ingratidão e malquerença dos seus, sem contudo lhe mitigarem a saudade do avô.

Simão de Sã, consciente do puro afeto de Jorge à filha dos hebreus queimados, avisou a sua hóspede da morte de Luís de Barros, e da chegada do neto à Guarda. Permitiu-lhe que escrevesse uma carta de pêsames, e ele mesmo foi o portador a Jorge — No meado de Fevereiro, depois de se trocarem algumas cartas os dois amigos de infância, Jorge saiu da Guarda, e foi hospedar-se em casa do abastado israelita da Covilhã.

Alvoreceu uma estação de felicidade serena para Jorge de Barros. Era a primeira. A família do hebreu eram meninas e jovens de muita polícia, virtudes e saber. Simão de Sã passava por fiel observante dos preceitos do cristianismo; e os seus filhos apenas nascidos, tinham sido lustrados na pia batismal. Com a condição de ser tão hipócrita como os perseguidores dos judeus, Simão gozava créditos de cristão-velho, sossego e ordem no seu comércio. Algumas ameaças de inquietação costumava ele remi-las a dinheiro de contado sobre o telónio em que os ultrajadores de Cristo negociavam a paz dos hebreus poderosos.

O viver íntimo desta família judaica era patriarcal. Jorge estranhou a reciprocidade de amor dos irmãos, a ternura de Rebeca pelos seus filhos, o respeito dos filhos, a devoção com que eles amavam os pais.

Sara estava mais formosa do que tinha sido. Aquele ambiente de paz coava-lhe ar de saúde aos pulmões e luz de dignidade ao espírito. A tristeza do coração magoava-a sem aspereza, porque lhe sorriam esperanças, e a promessa de Jorge era tão sagrada para ela como para Simão de Sã os seiscentos e três preceitos da lei explicados por Abraão de Ferrara, médico português e o seu ascendente.

Narrava Jorge com suave mágoa os seus desgostos a Sara, desde que ela saíra do Convento da Madre de Deus. Ela escutava-o com o ar melancólico de Rute, e um lançar de olhos respeitoso, como se naquele mancebo, tão fidalgo, tão senhor e rei da sua alma, ela visse o Booz das santas escrituras. Amavam-se assim a reverem-se espelhados nos olhos um do outro, e com referência ao futuro de ambos nem palavra aventuravam.

Soube Jorge que a afilhada do seu avô se voltara de coração e consciência às práticas da religião judaica, e as usava secretamente para não causar desagradável estranheza ao seu amigo. Observou ele, no primeiro mês de hospedagem em casa de Simão de Sã, desde quinze de Fevereiro a quinze de Março, se praticaram quatro festividades e quatro solenes jejuns.

Perguntou ele a Sara: — Que festividades foram estas?... Não me respondes, minha amiga?! Tão sagrado é o mistério que até de mim o escondes!

— Não... eu digo-lhe, se quer, senhor Jorge... Este é o nosso mês de Adar, que começou em meado de Fevereiro dos galileus. No oitavo dia celebramos com o jejum a morte de Moisés. No dia nono, jejuamos porque é o aniversário da divisão das escolas de Shammai e de Hillel. No décimo terceiro dia, é o grande jejum de Ester; e no décimo quarto a grande festa Purim, ou do resgate do povo. Agora segue o mês do Nisa. Amanhã jejuamos em sentimento da morte de Nadal e Abin, filhos de Aarão. No décimo quarto é a festa da Páscoa. No quinto, dezasseis e vinte e um, havemos de jejuar por causa do primeiro, segundo e sétimo dia dos ázimos; e no vigésimo sexto comemora-se a morte de Josué, filho de Nun. Se quer — disse Sara — ensino-lhe todo o nosso calendário.

— Não — disse Jorge — , o que eu muito desejava era ler os vossos livros. O senhor Simão consentirá que eu os veja? Parece-me que já lobriguei num quarto que nunca mais vi, nem sei onde é, uma grande livraria.

Sorriu-se Sara, e disse:

— Esse quarto que viu, pode o senhor Jorge procurá-lo na casa toda que o não encontra, salvo se o senhor Simão lhe disser que comprima um botão de bronze do tamanho do seu anel. Mas, se quer, eu farei que lhe abram a porta.

— Desejo muito, porém, não vá ser isso inquietação ao nosso velho...

Neste mesmo dia, Simão de Sã conduziu Jorge de Barros à sua livraria. Como reposteiro à porta da biblioteca, via-se um painel, que figurava o Sermão da Montanha, quadro fraudulento com que o hebreu edificava os hóspedes cristãos. O quadro enrolou-se, quando o dedo de Simão carregou na cabeça dourada do prego em que o painel impendia. Descobriu-se um espaço de parede coberta de arrás como o restante da saleta. O hebreu acurvou-se: carregou noutra mola, que fez subir enrolada uma espécie de cortina.

— Aqui tem os meus livros, senhor Jorge. Muitos não lerá, que são hebraicos; mas deles há muitos em latim, castelhano e português. Aqui tem O Livro da Fé Demonstrada pela Razão, de Scem Tou de Leão. Aqui tem O Livro dos justos, de Samuel Chasid, impresso em mil quinhentos e oitenta e um. Este é o Pão das Lágrimas, de Samuel Ozeda de Saphet. Aqui tem o Talmude compendiado por Salomão Luria, e a Lâmpada de Ouro, do mesmo escritor. Aqui tem a justiça dos Séculos e mais dezasseis volumes do judeu português Isaac Abravanel, descendente de David, nascido em Lisboa em mil quatrocentos e trinta e sete, e falecido em Veneza por mil quinhentos e oito, quando ali fora conciliar os portugueses com os venezianos. Aqui está o Facho do Preceito e mais seis volumes do israelita português Joseph Ben Don. David Ben Don Joseph Abem Jachiia, falecido na Itália em mil quinhentos e quarenta e nove. Estoutro é o “O Livro da Luz”, do hebreu português Jos Ciiahu. Agora lhe ofereço um livro do meu ascendente Abraão de Ferrara que exercitou a medicina em Lisboa. Lindíssimo é essoutro livro de Abraão Sabua, também português: chama-se o Ramilhete de Mirra. Aqui está o celebrado comentário sobre o Pentateuco, do médico do Porto, chamado Menachem Porto, pai do grande cabalístico Abraão Ben Sechiel Cohert Porto, cujas Aldeias de Jair lhe ofereço, como leitura encantadora. Finalmente, senhor Jorge de Barros, aí estão mil volumes de escritores judaicos.

Começou Jorge a sua leitura pelo Pão das Lágrimas. Sara e Judite, filha de Simão, sentaram-se uma de cada lado da cadeira do jovem, e ouviam-no. Era um quadro mimoso para pintura!

CAPÍTULO XI

Cessaram as escavações na Bemposta. D. Francisca Pereira consultou os jurisconsultos para autorizar um requerimento pedindo a prisão de Jorge, como ladrão do anel. Os homens da lei denegaram-lhe apoio a semelhante escândalo da sã moral das famílias, e da faculdade que as leis concedem a um avô de dar ao neto um anel não vinculado, nem testado a outrem por instrumento público.

Ao mesmo tempo, soube D. Francisca Pereira que o filho tinha saído de Lisboa com destino a Castela, engano que os filhos de Diogo de Barros fizeram de indústria propalar.

Cuidaram os obreiros das escavações em entulhar as covas e murar as paredes aluídas, porém, nos lanços do palácio antigo, acontecia que umas paredes se desmantelavam enquanto os alvenéis refaziam outras. A fidalga espreitava ainda as paredes derrocadas; mas o entusiasmo da esperança esvaíra-se mais depressa que os aromas nada orientais do cofre saudado com tamanhos júbilos.

Dizia D. Francisca Pereira:

— Se esta casa não fosse vínculo, e o cofre aqui não estivesse, vendia-se, que está muito velha e fede que tresanda desde que se cavou nas lojas.

Dias depois que ela isto dissera, a procurou o provedor das obras do paço para lhe anunciar que o Sr. D. Pedro II lhe queria comprar o palácio, e as casas, hortas, jardins e bosques contíguos, no intento de construir ali um palácio real para sua irmã a Sra. D. Catarina, viúva de Carlos II, rei de Inglaterra.

Digamos breves palavras desta rainha.

O leitor sabe que o libertino e empobrecido filho de Carlos I aceitou de Portugal dois milhões de cruzados e a ilha de Bombaim; e, como suplemento àquela, para o tempo, enorme quantia, também aceitou a irmã de Afonso VI como esposa.

D. Catarina era senhora de egrégias virtudes e primorosa entre as mais excelentes princesas do seu tempo; porém a formosura com ela tinha sido sovinamente dadivosa.

Um poema de abalizado autor, entre os muitos que então celebraram aquele faustoso casamento, pregoa maravilhas da formosura da princesa. Eis aqui um fragmento da musa dadivosa do notável poeta de Barcelos. Está já embarcada a rainha na passagem para Inglaterra:

Via-se a nau feliz empavesada

Flâmulas, e bandeiras tremulando,

A quem a nau de Colcos celebrada

Estava entre as estrelas invejando;

E a carroça da Deusa namorada,

Que de Chipre as boninas vai pisando,

Vendo na nau mais alta formosura

Teve em pouco esta vez sua ventura,

Esta oitava pode não prestar; mas fica sempre o mérito de dar ideia de uma esquadra, porque tem três naus.

A seguinte é mais conceituosa, e orça pela outra na puxada da metafórica beleza da rainha:

Os cavalos do Sol, que cada dia

Pascendo estrelas, bem beber salgado,

António Vilas-Boas e Sampaio: “Saudades do Tejo e de Lisboa na ausência da Senhora Catarina rainha da Grã-Bretanha. “

Se Faetonte deles se confia

Segunda vez se vira despenhado:

O seu gosto fora só, sua alegria

Levara Catarina, e o seu cuidado,

Era tomar a estrada do Ocidente,

Para trocar coa nau, que o não consente.

Os poetas são a indemnização das senhoras feias, mormente se elas são princesas. Não assim os historiadores. Goldsmith reduziu a proporções medianíssimas a formosura de D. Catarina para explicar o desamor e devassidão de Carlos 11. Historiador melhormente conceituado ainda, David Hume exprime-se deste teor:

Testemunhas de crédito dizem que Carlos II deliberou esposar uma princesa de Portugal, sem avisar os ministros, nem ceder a nenhumas contradições. O chanceler, Ormond, e Soulhampton impugnaram-lhe o alvitre com numerosas objeções, e mormente insistiram no boato geralmente derramado que a princesa era incapaz de conceber; sem embargo, todos os argumentos foram rebatidos. Proposto em conselho o negócio, conckmaram todas as vozes aprovando o príncipe, e o parlamento condescendeu também. Assim se efetuou, sob cor de universal consenso, aquele desgraçado casamento com Catarina, princesa de virtudes imaculadas; bem que não vingasse nunca fazer-se amar do rei por graças pessoais. Não obstante, a atoarda da sua esterilidade parece que era falsa, pois duas vezes foi declarada em estado de gravidez.

À falta do amor do marido, a irmã de Afonso VI acrisolou-se em amor a Deus. Escrevia cartas muito católicas ao papa Alexandre VIII e aos cardeais, pedindo nomeação de bispos para Portugal, e prosperidades para os católicos de Inglaterra. Guerreou diplomaticamente os hereges, conquanto o marido favorecesse a Reforma. Também escrevia cartas ao provincial dos arrábidos de Portugal, pedindo-lhe oito frades, incluindo “um pregador de satisfação, e os mais proporcionados para entoarem o nosso canto de que se há de usar no coro”.

E para lá foram os frades ajudá-la a passar o arrastado tempo. Pobre mulher! Que entretimento aquele! Oito frades da Arrábida! Que piedoso martírio, e que alma tão feriada a Deus, e conquistadora da bem-aventurança! Ainda assim, com tão piedoso viver, foi acusada no Parlamento de querer propinar peçonha ao marido! O rei propriamente saiu por honra e defesa dela. Alguns deputados opinavam que se degolasse Catarina com o cutelo de Carlos I e de Maria Stuart; porém o desterrado amigo de Afonso VI, o marquês de Castelo-Melhor, tanto rogou e defendeu a irmã do seu rei perante os inimigos conjurados dela, que vingou não a prenderem sequer. Em paga destes bons e capitalíssimos serviços, o premiou a rainha com muito dinheiro e joias, com que ele fundou o morgadio chamado de Santa Catarina, em comemoração da infeliz e dadivosa senhora. Os fradinhos também estiveram a pique de serem dependurados. Um dia, os parlamentários cercaram-lhe o convento, e foram dentro procurar armas. Encontraram umas disciplinas. O Castelo-Melhor, tirando-as fora do prego, disse aos fidalgos invasores: “Estas são, senhores, as armas com que estes pobres homens vos intentam conquistar; e, se quem os acusa a eles usara destes instrumentos, vos pouparia esta visita; e ao povo a perturbação em que está.” Apesar disto, diz um historiador arrábido que os seus irmãos tiveram muitas vezes na garganta o fio do cutelo.

Morreu Carlos II, já convertido à fé católica, em 1685. D. Catarina, passados oito anos, escreveu ao seu irmão Pedro II significando-lhe o desejo de voltar a Portugal, depois de uma ausência de vinte e três anos incompletos. O rei de Portugal tratou logo da transferência da irmã. Em 20 de Janeiro de 1693, entrou a rainha da Grã-Bretanha em Lisboa, e recolheu-se ao paço de Alcântara. Daqui mudou para o palácio do conde de Redondo a Santa Marta; e, não contente do local, passou para o do conde de Aveiras, em Belém. Por último, resolveu edificar palácio no sítio da Bemposta.

Estas divagações enfadosas eram necessárias para de mais longe explicar a quem isto ler a missão do provedor das obras do paço a D. Francisca Pereira Teles e ao seu marido Plácido de Castanheda de Moura.

CAPÍTULO XII

Se acontecesse D. Francisca Pereira gostar da sua casa da Bemposta, ser-lhe-ia inútil responder ao rei que a não vendia. Felizmente para ela, a casa estava abalada, e por isso as reais ordens alegraram-na. Tratou logo em transferir-se para o seu palácio da Pampulha.

A escritura da venda vai ser textualmente translada do tomo nove do Gabinete Histórico, de frei Cláudio da Conceição. Reza assim:

Aos quatro dias do mês de Julho de 1701, na cidade de Lisboa, Rua dos Mouros a S. Pedro de Alcântara, nas casas em que vivia o desembargador Bartolomeu de Sousa Mexia, juiz dos Contos do Reino e Casa, achando-se aí presente como procurador de ebrei, e da outra Sebastião Leite de Faria, escrivão da mesa dos despachos dos Contos, em nome, e como procurador de Plácido de Castanheda de Moura, contador-mor dos mesmos Contos, por virtude de uma procuração, que apresentou, e assim o doutor Manuel Gomes de Palma como procurador de D. Francisca Pereira Teles, mulher do dito Plácido de Castanheda de Moura, foi dito perante o tabelão, que eles eram senhores e possuidores de umas casas, e outras pequenas com as suas hortas, sitas nesta cidade à Rua Larga da Bemposta, que parte dele é morgado de que ele dito Plácido de Castanheda de Moura é administrador por cabeça da sua mulher, e a outra parte livre e desembaraçada, partem todas pelas suas devidas e verdadeiras confrontações com que por direito devam partir; nas quais se está fazendo um palácio para a rainha da Grã-Bretanha, e em razão do dito senhor ordenar que se vendessem segundo a avaliação que delas se fez, que são pelo que toca ao dito morgado, por preço de dezasseis contos quatrocentos e sessenta e seis mil seiscentos e sessenta e seis réis, de que o dito senhor daria juro real em sub-rogação dele, e livre por doze contos novecentos e setenta e sete mil quinhentos e quarenta e sete réis, resolveram o dito Plácido e a sua mulher em vender, e sub-rogar as ditas casas pelo preço referido. O dito senhor dará um juro real para que fique tocando ao dito morgado, em satisfação da parte do dito morgado, a seguir a natureza dele, ficando uma coisa pela outra sub-rogada, de sorte que as ditas casas do morgado fiquem livres para a dita rainha, para quem el-rei.

Pedro mandou-as comprar, para que ela faça delas o que lhe parecer, e a dita quantia que se há de dar do juro real fique sendo do dito morgado de que é administrador o dito Plácido por cabeça da sua mulher: e parte das casas que são livres as vendem por doze contos novecentos e setenta e sete mil quinhentos e quarenta e sete réis de que logo ali recebeu o dinheiro de contado, com a condição seguinte:

Foi dito pela dita D. Francisca Pereira Teles que o seu pai o contador-mor Luís Pereira de Barros lhe dissera, que na ocasião dos motins recolhera nas ditas casas em parte oculta grande quantidade de dinheiro, cujo lugar constava das letras de um anel, que ele trazia no dedo, ordenava que na hora da morte se lhe tirasse; e porque o dito anel desapareceu, e o dito dinheiro se não achou, no caso que nalgum tempo apareça e se descobrir, lhes ficará pertencendo a eles vendedores in solidum ou aos seus herdeiros e sucessores!

Assim o outorgaram, pediram e assinaram... etc.

Seguem outras condições estipuladas acerca de pagamento do juro dos padrões, nada importantes à urdidura da história.

Quando à Covilhã chegou, em carta de Diogo de Barros, a notícia da venda do palácio da Bemposta e cópia da escritura, Jorge deu como perdido o tesouro, quer se ensenhoreasse dele sua família, quer o sonegassem os alvenéis e mais operários do reviramento pelo qual tanto as casas, jardins, como hortas e bosquetes deviam geralmente passar desde os alicerces e raízes. Não sem causa entendeu ele que o tosco Neptuno seria apeado, e logo a caixa do repuxo ficaria a descoberto. Este fundado susto afligiu-o grandemente, porque naquele cofre, além da riqueza destinada a futuros contentamentos, estavam objetos sacratíssimos para seu avô e para ele.

Bem que Simão de Sã o contrariasse, Jorge planeou ir aforrado a Lisboa, entrar à quinta enquanto as demolições se faziam na casa, e subtrair o cofre. Parecia-lhe isto fácil e inquestionável. As razões alegadas convenciam; e, sobre todas, com uma argumentava ele de muita força:

— Se meu avô soubesse que eu nenhuma diligência pusera em salvar de mãos estranhas, ou ainda da posse da minha mãe, aquele tesouro, amaldiçoar-me-ia!

Deu-se, portanto, pressa em executar o intento, que lhe parecia desempecido de todo embaraço.

É de saber que Filipe, Garcia, e outros familiares de D. Francisca, desde que os derribamentos começaram, vigiavam juntos ou à vez os pedreiros e cavadores. Era já notória em Lisboa a condição da escritura: muita gente, levada da curiosidade, concorria às obras da Bemposta, na esperança de assistir é exumação do tesouro, que os mais imaginosos asseveravam ser enormíssimos cabedais que Afonso VI, antes de ser preso, confiara ao seu amigo Luís Pereira de Barros.

Alguns obreiros da reedificação conchavaram-se em sonegar dos vigilantes espreitadores os lugares em que algum indício topassem do caixão enterrado. Estremunhados pela espora da cobiça, erguiam-se à meia-noite os que ficavam de guarda às ferramentas, e cavavam e revolviam entulhos, até à madrugada, nos sítios que deixavam de véspera intencionalmente mal rebuscados. Por maneira que as avenidas do palácio quase arruinado eram tão vigiadas de dia como de noite.

D. Francisca Pereira, avisada dos trabalhos noturnos, mandou para as obras pernoitar criados de confiança, os quais, conluiados com os pedreiros, prosseguiam nas escavações, pactuados em repartirem irmãmente o tesouro.

Das pesquisas interiores passaram a descalçar e cavar no chão dos caramanchões, e no lajeado das fontes. Chegaram a desguarnecer as paredes dos azulejos, e a derrubar estátuas do jardim para descoser as pedras das peanhas. Da noite ao dia era prodigioso o progresso das ruínas, no decurso de três semanas.

Os incansáveis exploradores aproximaram-se uma noite do tanque do Neptuno; saltaram dentro alguns; levantaram a tampa do aqueduto por onde se desobstruía noutro tempo o encanamento. Palparam. Entrou o mais afoito à mina, e voltou praguejando, e dando ao diabo a alma e os braços de quem enterrara o dinheiro e os trazia tresnoitados. O deus do mar, que ali estava com a boca aberta, parecia rir deles. Um dos pedreiros reparou na cabeça de Neptuno, e disse que lha quebrava, se não fosse a imagem de S, Pedro. Perguntou outro porque tinha ele o gadanho na mão, sendo o costume usar S. Pedro de chaves. O interrogado satisfaz a crítica do companheiro, esclarecendo que o pau com três ganchos era ferramenta de andar à pesca, no tempo em que o santo vivia de pescar; pela qual razão o meteram os antigos naquele tanque.

Com estas e outras interpretações não lidas nos florilégios, nem na Legenda Áurea, de Voragine, afastaram-se dali os pedreiros, e foram desfazer uma casa de fresco já meio desmantelada no fundo do bosque.

Numa destas noites de Agosto, por volta de onze horas, avizinharam-se das obras de Bemposta dois sujeitos rebuçados de maneira que deram nos olhos de alguns pedreiros deitados em palestra no terraço onde tinha sido o pátio do palácio: a muita calma e o muito encapotar-se dos vultos eram coisas que se não compadeciam sem suspeita dos alvenéis.

Era Jorge de Barros e o escudeiro António Soliz. Jorge parou em frente daquelas ruínas, e disse:

— António, vê tu a casa do meu avô!...

E o velho, debulhado em lágrimas, apenas respondeu com soluços.

— Ainda há nove meses que saímos daquela porta com o meu avô nos braços!... — continuou Jorge. — Que voltas, António!... Que mudanças!...

— Não se esteja afligindo, senhor Jorge — disse o escudeiro, — Pensemos no a que viemos... Eu vejo no pátio uns homens que nos estão olhando...

— Que nos faz a nós isso? Passemos adiante. Vamos rodear a quinta: pode ser que alguma parte do muro já esteja arrasada. A minha opinião é que o tanque do Neptuno já lá vai...

Deram volta ao muro da quinta, e não acharam lanço acessível. Desandaram, praticando no modo de entrarem, mediante uma escada, na seguinte noite. Pararam novamente diante da fachada do palácio. O escudeiro quis evitar que o amo se aproximasse de um pedreiro que saíra à rua e se assentara no friso do cunhal da casa tangendo numa bandurra, e cantarolando trovas, alusivas aos dois embuçados que ele imaginou amadores das próximas vizinhas. Dizia a letra:

O luar da meia-noite,

Tu és o meu inimigo

Estou à porta de quem amo,

E não posso entrar contigo.

O pedreiro, se não era o inventor da trova, não tinha obrigação de ser mais correto que o menestrel. Acercou-se Jorge do epigramático trovador, e disse-lhe:

— Amigo, boas noites.

— Deus o guarde, senhor! — respondeu cortesmente o pedreiro, como visse lampejar, na orla do reguingote do embuçado, a ponteira amarela de uma bainha.

— Estais folgando com a vossa bandurra? — disse Jorge.

— É verdade, senhor: nós com a calma nem dormir pode.

— Sois, pelos modos, alvenel da casa da senhora rainha da Grã-Bretanha...

— Sim, senhor.

— Vão adiantadas as obras?

— Isto vai de galope: não cansam braços nem dinheiro.

— E o tal tesouro apareceu? — voltou Jorge.

— Qual tesouro nem qual carapuça!

Têm aí cavado nesse chão que é um por demais! A quinta está toda minada, e até à data de hoje o que apareceu é pedregulho. Eu acho que o tal velhote, que morreu, enterrou tanto dinheiro na quinta como o que eu tenho, que não é nenhum!

— E minaram também a quinta? — perguntou Jorge com interesse.

— Sim, senhor, tudo até lá baixo.

— E também chegaram à mata?

— Ora!, como o senhor sol! Havia lá uma casinha de fresco de porta aguçada à antiga; puseram-na de feitio que parece uma cisterna.

— Então também desfizeram o tanque...

— O tanque que tem o São Pedro com a gadanha? Nada esse lá está. Acho que foi por amor do santo que o não escangalharam, mas já lá andaram homens na mina aqui há quatro noites atrás, e saíram de lá sem uma de três réis.

Os filhos do senhor contador-mor, de quem era este palácio, também lá foram, assim que souberam que os pedreiros lá tinham ido. Os fidalgos desconfiam de toda a gente, e não querem sair de cá. De dia vêm eles, e de noite trazem criados a rondar a casa e a quinta. Afinal, amanhã ou depois vem tudo isto a baixo; e, assim que os alicerces começarem, o dinheiro, se cá está, cá fica.

O escudeiro, temeroso de que alguma impensada pergunta do seu amo desse ao pedreiro suspeitas da localidade do cofre, levou-o dali tirando-o brandamente pelo braço.

Àquela hora recebia D. Francisca Pereira Teles denúncia de ter saído da Covilhã seu filho Jorge.

A precatada fidalga, mediante o valimento do seu marido com os recebedores em todas as cabeças de comarcas, conseguira estabelecer na Guarda e Covilhã uma atalaia aos passos do filho. Surpreendê-lo no lanço em que ele pessoalmente diligenciava apossar-se do cofre era a última esperança e máximo empenho da infatigável mulher. Neste propósito, desistiu de espicaçar o Conselho Geral da Santa Inquisição, formado de frades de S. Domingos. Avisadamente pensou ela que afugentar a judia, caso ela estivesse na Covilhã, seria afugentar o possuidor do segredo. Perder-se o cofre para ela, embora se perdesse também para Jorge, não lhe era suficiente consolação. D. Francisca antes queria o dinheiro que ver Sara na fogueira, ou pelo menos optava pela mais incerta das coisas, visto que os frades eram menos engenhosos em desencantar tesouros do que em transferir ao inferno a alma extraída de um corpo queimado.

Recebida a nova e confirmada no dia seguinte por um próprio, que seguira o itinerário de Jorge, com distância de cinco léguas, D. Francisca chamou a conselho os filhos, que, logo ao primeiro aviso, saíram com os criados a rondar a Rua da Bemposta, uma hora depois que Jorge retirara a hospedar-se em casa de Diogo de Barros. Para a noite seguinte, deliberaram Garcia e Filipe emboscar-se com os criados nas vizinhanças da casa entre as árvores da quinta, e esperarem a provável entrada dele pelos muros.

O plano traçado era vigiar a direção de Jorge; e, logo que ele denunciasse com o rumor de deslocação de pedra o local do cofre, afugentarem-no a tiros de pólvora seca. As maternais entranhas de D. Francisca Pereira tiraram a partido que, somente em último recurso, fizessem sangue.

Ao anoitecer, os irmãos de Jorge recolheram-se com quatro criados à quinta, e confiaram a ronda exterior do palácio ao mais valente e sagaz de todos, posto que sexagenário, o qual era o cocheiro do defunto Luís Pereira de Barros. Este homem, posto que de condição bastante má para atraiçoar a confiança da ama, tinha uma fibra incorrupta no coração: era o reconhecimento ao velho escudeiro António Soliz, que muitas vezes o socorrera em apertos de dinheiro, quando, no meado do mês, tinha esvaziado por tavernas e bordéis o ordenado e a quantia a maior que o fidalgo lhe dava para as despesas da cavalariça. De mais disto, se Luís de Barros por outros motivos queria despedi-lo, o escudeiro requeria-lhe o perdão do criado, e conciliava a indulgência do amo. Ora, o escudeiro condoía-se deste homem, por analogia de desgraça com a sua sorte no berço. O povo tumultuoso matara-lhe o pai, arcabuzeiro inofensivo, que cumpria suas obrigações de soldado à porta do paço, e nem sequer apontara o ferro ao peito dos invasores. Luís de Barros condoera-se da viúva e do filho recém-nascido, alimentou-os, e levou para seu serviço o rapaz mal dotado de instintos, mas amparado pela misericórdia do fidalgo e bondade do escudeiro.

Era, pois, este o encarregado de vigiar que Jorge se não introduzisse por alguma das portas do já quase derruído palácio. Ao fim da tarde, saiu ele, e foi a casa de Diogo de Barros. Procurou António Soliz; e, como lho negassem, insistiu dizendo:

— Ora vamos, não me queiram enganar, que é escusado... Digam-lhe lá que está aqui o Bonifácio cocheiro.

Dado o aviso, António apareceu, e não hesitou em chamar Jorge, assim que Bonifácio lhe contou o modo como a fidalga soubera da chegada deles a Lisboa.

Ouviu Jorge os pormenores da emboscada, pagou generosamente a denúncia, e despediu o cocheiro do seu avô. Nessa mesma noite, dizia ao seu tio Diogo de Barros:

— Sou uma baixa alma, meu tio.

— Porquê, Jorge?!...

— Porque deixei um tesouro de alegrias inestimáveis, e vim procurar outro cuja conquista me poderia custar a vida; e, se acontecesse sair-me eu ileso desta façanha, o ouro e pedras que o cofre encerra não bastariam a comprar um contentamento. Fique-se embora o dinheiro que tem condenação fatal! Eu vou-me a toda a pressa procurar o tesouro que deixei; e esse sei eu e juro que hei de encontrá-lo... é o coração de Sara.

E, nesta mesma noite, saiu de Lisboa.

CAPÍTULO XIII

D. Francisca duvidou das informações dos seus espias da Guarda, e Covilhã, ao fim de oito dias de inútil espera na Bemposta.

Enquanto os fidalgos, espancando o sono para espertarem os criados, passavam más noites escondidos por entre ramagens e rimas de entulho, o velho Bonifácio remoçava as cãs numa taverna de Andaluz, ou se adormecia regaladamente sobre a enxerga mais convizinha da pipa do Colares. Bem de estômago, melhor de algibeira, e ótimo de consciência, Bonifácio entendia que já na terra saboreava o céu das boas ações.

Enfim, recolheram-se as roldas e sobrerroldas, porque D. Francisca teve aviso da volta de Jorge à Covilhã. Então tratou ela que o filho desenterrara o cofre logo na primeira noite da entrada em Lisboa. Mandou que se interrogassem os pedreiros sobre se algum desconhecido penetrara a quinta naquela noite. Contou um pedreiro que estivera falando com dois homens embuçados, e referiu algumas perguntas que um deles lhe fizera. Isto bastou a considerar-se lograda irremediavelmente D. Francisca. Abrasaram-na chamas de rancor ao filho e à memória do pai. Insultou o marido que meigamente a consolava. Solicitou de novo, para a captura do filho, ordens absurdas que Diogo de Barros contraminava. Passou-lhe pelo espírito revolvido em infernos de impotente vingança denunciar o filho à Inquisição como renegado e circunciso por amor de Sara.

Na preparação deste projeto, cuja protérvia não ultrapassa os limites lógicos da vingança na alma desmoralizada, salteou-a castigo da visível Providência.

Filipe corria amores no mosteiro de Odivelas com uma religiosa de família muito ilustre de Lisboa, senhora desempoeirada e voluntariosa que trazia o convento em descrédito e as superioras constemadíssimas. Os gemidos da virtude escandalizada já tinham chegado ao paço. Pedro II, depois do falecimento da sua segunda mulher, caíra em si, se não é mais exato dizer que o demónio do remorso lhe caíra às cavaleiras. Como quer que fosse, o rei fez-se beato, amicíssimo de frades ascetas, zeloso guarda das leais esposas do Senhor, e desafeiçoado às infiéis. Os queixumes da prelada de Odivelas comoveram-no e irritaram-no contra a freira e contra o filho do contador-mor. Chamou à sua presença os pais de ambos os delinquentes: o da freira quis desculpar-se com a pertinácia de Filipe de Moura Teles; e Plácido de Castanheda fingiu que podia muito com o filho, e o desprenderia para sempre dos criminosos afetos.

Esteve alguns dias a religiosa fechada como em prisão nos seus luxuosos aposentos; e Filipe, repreendido pelo pai, transigiu por algum tempo com a vontade do rei, e rogos carinhosos da mãe.

Porventura, o amarem-se muito, e a condição inflexível de ambos, fez que reincidissem, volvido um mês, nas mesmas imprudências de colóquios noturnos, já não insuspeitos de escalada. Foram outra vez à ourela do trono as lágrimas da comunidade levadas por frei Manuel de S. Plácido, da Ordem Terceira, muito querido do rei Pedro II mandou prender no Limoeiro Filipe de Barros, e remover a religiosa incorrigível para um convento da Beira.

O valimento do contador-mor, e instâncias de D. Francisca Pereira com parentes donas de honor, conseguiram a liberdade de Filipe, sob condição de não mais inquietar a freira.

Estas coisas tinham passado nas três semanas anteriores à ida de Jorge a Lisboa, e no entanto o conde de S. Vicente, pai da religiosa inflexível, conseguiu levá-la da Beira para o mosteiro de Chelas.

Eram amores mal sorteados aqueles! Filipe, sem resguardo dos irmãos dela, homens de honra e já fatigados de aquinhoarem do descrédito da irmã, aparecia em Chelas, espotreando o folheiro cavalo, cortejando a dama que lhe fazia os costumados sinais, e deixava cair bilhetes esperançosos de mais felizes encontros.

Avisada a família da freira, saíram para Chelas os dois irmãos, que serviam grandes postos no exército. Um deles afastou-se da estrada para não serem dois os agressores; o outro saiu de frente a Filipe de Barros, e levou da espada, assim que Filipe se deu ares de acometê-lo. A pugna foi rápida e funestíssima para o filho de D. Francisca Pereira. O estoque saltou-lhe da mão, ao tempo que a espada do contendor lhe ensopava em sangue os rufados da gorjeira.

Era ao cair da tarde, quando D. Francisca pensava em denunciar Jorge à Inquisição, e recebia a nova de estar seu filho Filipe morto na azinhaga de Chelas.

Era de lama petrificada a alma daquela mulher! Em vez de dobrar o pescoço debaixo da — mão da Providência, rompeu em blasfémias que as masmorras da Inquisição nunca tinham ouvido dos israelitas postos a tormento.

Plácido de Castanheda de Moura foi queixar-se ao rei. Pedro II, ouvidas as exclamações do contador-mor, disse-lhe secamente:

— Ide queixar-vos perante os juízes, que não sou eu ministro das leis. Se tivésseis uma filha, e um libertino vo-la andasse desonrando, e os vossos filhos matassem o libertino, e o pai dele aqui viesse queixar-se como vós, mandá-lo-ia, como vos mando, requerer vossa justiça onde cumpre. Matar só Deus: castigar matadores só a lei. Pedro primeiro, o justiceiro, não sei se vos faria tanta honra como eu. O vosso filho, segundo estou informado, não prestava para nada. Além de que — acrescentou o rei — quem viu morrer vosso filho?! Como sabeis que o mataram os filhos do conde de São Vicente?

— Eles foram, senhor, que já o tinham ameaçado — respondeu timidamente Plácido.

— Ameaças não provam: e de mais, vosso filho mal fez em desprezar o aviso, e vós mal fizestes em desatender as minhas reflexões.

O sobrolho de Pedro II impunha silêncio. O contador-mor genufletiu com a perna direita, arqueou-se como se agradecesse uma mercê, e saiu, à s recuadas, consoante o cerimonial, da presença do rei mal-assombrado.

O irmão de Afonso VI não perdoara aos descendentes de Luís de Barros, o qual, desde a prisão daquele singular desgraçado, nunca mais pisara tapetes do paço, nem mais quisera encarar no incestuoso verdugo do seu rei.

Os homicidas chegaram impunemente à presença de Pedro II. Os corregedores, e quantas gamachas decoravam o templo da justiça, não tinham que ver com os filhos de Bernardo de Távora, general de batalha, conde de S. Vicente.

Naqueles tempos de tanta saudade, para os pregoeiros das virtudes dos nossos antepassados, casos de homicídio, denegridos por mais atrozes circunstâncias do que a morte do filho do contador-mor, se executavam com análoga e mais escandalosa impunidade. Aqui vem de molde referir um sucesso, que não prende com este romance, e todavia dá a medida da força das leis em antagonismo com a força bruta dos pulsos fidalgos.

Seis anos depois do período em que vai correndo esta narrativa, já quando os esplendores de D. João V iluminavam mais os espíritos, passou o caso seguinte, referido pelo Cavalheiro de Oliveira:

“Um corregedor guardava uma porta da igreja da casa professa dos jesuítas, quando ali se celebrava grande festividade. Somente o rei havia de entrar por aquela porta.

Chegaram aqui o marquês das Minas e o conde da Atalaia; mas o corregedor com razão lhes vedou o passo. Insistiram eles, dizendo ao ministro que as ordens recebidas não podiam entender-se com pessoa da sua esfera. Redarguiu o corregedor que as ordens ninguém excetuavam, e portanto, sem que o rei entrasse, não podia ele permitir que entrasse quem quer que fosse. Aqueles senhores podiam entrar por outras portas francas a toda a gente. Não obstante, obstinadamente exigiram do corregedor uma distinção que ele não podia dar-lhes sem transgredir os deveres... Os dois fidalgos, depois de o terem insultado, passaram às últimas. O conde da Atalaia deu com o chapéu na cara do corregedor, e o marquês das Minas traspassou-o com a espada, e matou-o. Em seguida cavalgaram, e saíram do reino. O marquês das Minas foi perdoado e voltou ao reino.“

Crê o leitor que, não obstante o perdão, o marquês das Minas passaria o restante da vida sequestrado das graças do monarca e da convivência das pessoas de bem? Não faça juízos temerários, leitor: o marquês das Minas recebeu o indulto, e ao mesmo tempo o bastão de general.

Já vimos a justiça dos homens: agora vejamos a da Providência. Servia no exército português um castelhano chamado D. Juan de la Cueva, que não dava “excelência” ao seu general, marquês das Minas, sem que este lhe desse “senhoria”. Ora, o marquês, assassino do corregedor — diz o Cavalheiro de Oliveira — , era soberbo e arrogante. Um dia, ao entardecer, saía ele da portaria da congregação de S. Filipe Néri, a tempo que desgraçadamente Juan de Ia Cueva ia entrando. Cortejou ele o marquês que lhe não deu a pretendida “senhoria”, e por isso De Ia Cueva lhe não deu “excelência”. O general, grandemente irritado, levantou o bastão e proferiu palavras ameaçadoras. De Ia Cueva, sem lhe dizer palavra, traspassou-o com a espada. O marquês não tugiu nem mugiu: quando caiu por terra, já ia morto. O padre, que o acompanhara até à portaria, e era confessor dele, apenas teve tempo de lhe apertar a mão. D. Juan de Ia Cueva pôde escapar-se, e refugiou-se em Espanha.

Na jurisprudência divina a justiça mais seguida é a pena de Talião.

CAPÍTULO XIV

D. Francisca Pereira caiu afinal extenuada. O esbravejar da raiva prostrou-a. O rancor ao filho Jorge declinou mais assanhado sobre os filhos do conde de S. Vicente. As pragas, que ela jurou sobre aquela família, tão próspera nos reinados de Pedro II e João V, pensaria ela que se empregaram, cinquenta e três anos depois, na família Távora, se pudesse antever os cadafalsos, e o esquartejamento e as labaredas, na Praça da Junqueira!

Mas a neta de Leonor Teles não se contentaria com prever a morte afrontosíssima dos descendentes do homicida. Mãe, a um tempo extremosa com aquele filho, e ferina de coração, pedia a brados vingança pronta e estrondosa. Era-lhe incomparável agonia não ter filho que ousasse afrontar-se com os Távora, porque o efeminado Garcia atendia seriamente a conservar-se, e mandar à posteridade sua raça na pessoa do seus descendentes.

Esqueceu-se, pois, da teia que andava urdindo contra Jorge; ou, a não esquecer-se, reservou a postema para supuração mais oportuna.

E, entretanto, o hóspede de Simão de Sã planeava ganhar sua vida, fundamentar alguma base de negócio ou indústria com o dinheiro que o seu avô lhe tinha mandado tirar das gavetas do contador. O israelita desviava-o de misteres incompatíveis com o seu nascimento, ofertando-lhe dos seus haveres o necessário para sossegadamente esperar monção de tomar conta assim do tesouro, como do património advindo por morte de pai ou mãe. Esta generosidade não o demoveu; todavia, Jorge de Barros, combatido pelo espírito de raça, ao qual as ideias do tempo o avassalavam, projetou ir fora de Portugal, e, salvo da crítica, mercadejar ou estabelecer oficinas, entregando a mordomia do seu tráfico a António Soliz.

Simão de Sã tinha em Amesterdão parentes, uns fabricantes de estofos, e outros tipógrafos abastados, bisnetos de judeus que, em tempo de D. Manuel, João III, e do cardeal-rei, para lá tinham fugido ao latrocínio, à violação das suas filhas, e ao fogo. A intercessão de séculos e da longitude não bastará a romper os laços de sangue entre os holandeses, que falavam da pátria do seus avós com a herdada saudade do seus pais, e os Sãs da Covilhã, que davam conta aos outros do infortúnio desesperançado dos israelitas portugueses. Jorge tencionava, portanto, ir morar em Holanda, levando recomendações para os hebreus poderosos de Amesterdão.

Sara escutava com opressivo silêncio estas deliberações, e não ousava perguntar a Jorge qual seria depois o seu destino dela. E o rapaz, ao contemplá-la assim triste e calada com a sua imensa dor, entreabria-lhe num sorriso uns vagos lampejos de luz de bem-aventurados, que ela não sabia explicar-se nem perguntar.

Um dia, duas semanas antes da projetada viagem, Jorge recolheu-se com Simão de Sã e Sara à livraria, em que o mais das horas lhe fugiam entretidas e desassombradas de penosas cogitações.

A judia não desfitava os olhos dele, enquanto os lábios se não abriram com estas palavras:

— Meu bom amigo, eu afiz-me a olhar em Sara como nas suas filhas. Como filha a encontrei querida e estimada nesta casa. Aqui a respeitei como a tinha respeitado sob o teto protetor da casa do meu avô, onde ambos nos criámos. Dito isto, senhor Simão de Sã, eu não pergunto a Sara se me ela quer dar a sua vida como sei que me há dado o coração; a Vossa Senhoria pergunto se lhe praz o nosso casamento.

Sara ergueu-se sobressaltada com as mãos erguidas, desatando dos lábios um ai, já quando as lágrimas lhe tremiam nas pálpebras. Simão foi de encontro ao peito de Jorge, e abraçou-o com veemência de arrebatada alegria. Depois, desprendido dos braços de Jorge, tomou Sara pela mão, levou-a às mãos do mancebo, e disse-lhes muito comovido:

— Sois dignos um do outro; e eu, pelo muito que vos quero, e pelo muito que a Deus tenho pedido boa sorte para vós, digno sou também deste contentamento.

Jorge continuou, largando as mãos de Sara: — A ti me ligo, pobre menina, porque te quero muito, e vi que a nobre alma do meu avô te considerava como se te tivesse destinado para a minha mulher. Porém, se menos te amasse, Sara, ainda assim te diria: sê minha esposa, pelo que tens padecido; aceita-me esta remuneração dos involuntários perigos em que arrisquei tua vida. A minha mãe queria-te morta, doce criatura que Deus defendeu da ira de uma mulher, cujas entranhas, assim que eu nasci, ficaram para mim cheias de peçonha. Deus me defendeu a mim com o anteparo do meu avô, porque a Providência de cristãos e israelitas viu que ambos nós éramos injustamente perseguidos. A perseguição dá-nos tréguas; mas voltará mais assanhada talvez; confiemos na proteção do Alto. Agora, enquanto a tempestade se está formando, fujamos para algum remanso. Vais comigo para Holanda; serás o amparo e estímulo das minhas forças, quando a desgraça as quebrantar. Nasceste no trabalho, serviste ingratos, endureceste o teu seio na peleja contra a dureza do teu destino. Não estranharás a pobreza, quando ela chegar. Estás contente, Sara?

— Senhor Jorge! Abençoada seja a sua resolução! Abençoada e perdoada seja sua mãe, que me preparou esta alegria! — exclamou Sara com transporte, beijando-lhe as mãos.

E Jorge atalhou-a:

— A nossa união será feita com o ritual católico. O meu espírito não está preocupado de religião nenhuma; todavia, a mesma razão de uma quase indiferença faz que eu não passe da religião com que me criaram para outra, cujos dogmas me não convencem. O casamento, como sacramento, já pode muito sobre a consciência: é um hábito que assumiu as proporções de consagração e identificação de duas vidas numa. Desejo, portanto, que nos ligue o sacerdote católico: qualquer outra cerimónia seria supérflua, se o senhor Simão de Sã pensa que o cerimonial mosaico é indispensável ao casamento.

— Não, senhor Jorge — disse Simão — , o Deus de israelitas e cristãos me livre de contrariá-lo. Respeitemos reciprocamente a nossa fé. A minha filha Judite vai também ligar-se ao meu sobrinho Eflakim. Há de ir ao templo dos cristãos, porque nessa conta são tidos; depois, hão de ligar-se conforme o cerimonial da bênção judaica; mas meu sobrinho e a minha filha seguem rigorosamente a lei mosaica. Se o senhor Jorge consente, eu farei que as duas alianças se celebrem no mesmo dia, e será depois testemunha da bênção nupcial da minha Judite, segundo o ritual hebreu.

Jorge aceitou alegremente o convite. Entregou a Simão a certidão do batismo de Sara; e, voltando-se à jubilosa menina, disse:

— Lembras-te do meu avô quando na pia batismal te pôs a mão na cara?

— E o senhor Jorge segurava nas mãos a coroa de Maria, mãe de Cristo... — recordou ela.

— Quem então diria!... — balbuciou o jovem.

— Éramos tão pequeninos então!... — volveu a judia. — O senhor Jorge sentava-se ao pé de mim, quando me via chorar com saudades da minha mãe, e dizia-me: “Anda brincar comigo, que eu peço ao meu avô.” Outras vezes, ia dizer àquele santo velho, que está na glória dos justos, que eu estava a perguntar se a minha mãe tinha morrido no auto-de-fé. O senhor Luís de Barros mandava-me chamar para ao pé de si, e distraía-me com meiguices, que eu agradecia com lágrimas...

— Não recordes — atalhou Jorge — que eu ainda não tenho coração que sem torturas escute falar do meu avô. O futuro, Sara, o futuro! Sejamos dignos da bênção daquele santo homem.

CAPÍTULO XV

Celebraram-se as núpcias de Jorge de Barros e Maria de Carvalho. Causou estranheza o sucesso aos fidalgos da Covilhã, porque o acto foi público. O enlace de mancebo da primeira nobreza com uma cristã-nova era caso singular, desde que D. Manuel desprestigiara a riqueza dos hebreus, roubando-lha com a vida. Não acontecia assim na época em que os israelitas se nobilitavam em Portugal, à semelhança de um Moisés Navarro que instituiu em Santarém um dos maiores vínculos do século XIV com permissão de D. Pedro I.

Assim que a notícia soou fora do templo, meteu-se logo a caminho um portador para a Guarda, e daqui para Lisboa cartas avisando D. Francisca Pereira Teles do despejo, senão apostasia, do filho.

À hora, porém, em que a fidalga devia receber a nova, já Sara e o seu marido teriam no mar alto a defesa das ondas, levantadas entre o seu amor e o paço dos Estaus.

Como se disse no capítulo anterior, Simão de Sã destinou que, no mesmo dia, se casassem sua filha Judite com Eflakim. Como simulados cristãos, os noivos receberam as bênçãos do padre católico, e foram depois secretamente revalidar sua união segundo o ritual judaico.

Jorge era já como da família, bem que não praticasse o mosaísmo. Foi-lhe permitida a assistência ao acto, que ele ardentemente desejava presenciar.

— Para satisfazer-lhe completamente a sua curiosidade — disse Simão de Sã — convém referir-lhe as cerimónias que já precederam esta final cerimónia do casamento. Há seis meses que o meu sobrinho Eflakim entrou nesta casa, e, em presença de testemunhas, disse a minha filha: “Sê minha mulher.” Ao mesmo tempo deu-lhe um anel, cerimónia que aboliu a outra mais antiga de uma moeda de indeterminado valor. Depois, meu sobrinho dotou minha filha, porque entre nós as mulheres não podem levar aos maridos dotes consignados em escrituras. Assim que os noivos reciprocamente consentiram, o rabino proferiu uma breve oração em louvor de Deus que permitiu o casamento e proibiu o incesto. Os mancebos e donzelas, que assistiram a este acto, lançaram ao chão as bilhas que trouxeram, quebrando-as, como presságios de abundância e prosperidade. Os esposos beberam depois algumas gotas de vinho de uma taça comum, e quebraram-na também. Quer isto significar a comunidade e fragilidade dos bens da fortuna. Eis aqui o que, há seis meses, se passou. Agora, verá o restante. Como não temos sinagoga, as cerimónias fazemo-las em casa.

Conduzido, depois desta breve narração das precedentes cerimónias, a uma sala luxuosamente decorada com antigos adornos, que deviam ter sido de templos anteriores à perseguição, viu Jorge de Barros entrar a noiva cintilante de pedraria, debaixo de um docel, arvorado por quatro mancebos. Todas as pessoas, que estavam na sala, à entrada de Judite, disseram: “Bendita seja quem chega.“. Em seguida, acenderam círios, rodearam a noiva, e cantaram uma suave e afinadíssima melodia. Depois, a esposa fez três giros em redor do esposo, em virtude de Jeremias ter dito: “A mulher rodeará o homem.” Assim que ela parou, Ebakim deu duas voltas em redor de Judite.

Os circunstantes, logo depois, espargiram alguns grãos de trigo sobre os esposos, exclamando: “Crescei e multiplicai-vos”, enquanto Simão de Sã semeava num vaso de terra algumas daquelas sementes, para depois, desabrochados os grãos, os levar aos esposos como símbolo de pronta propagação.

Colocou-se a esposa à mão direita do marido, porque o salmista dissera: “A tua mulher está à tua direita.” Voltou-se ela para o lado do meio-dia, e cobriu-se com um manto chamado talete, do qual também se cobriu o esposo, porque Rute disse a Booz: “Estende o teu manto sobre a tua serva.” O rabino tomou um copo de vinho, e ofereceu-o a Ehakim, bendizendo o Senhor porque criou o “homem e a mulher, e defendeu o incesto e ordenou o matrimónio”. Elfakim bebeu daquele vinho, deu um anel sem pedra a Judite, e disse-lhe: “Eis que és minha esposa, conforme o rito de Moisés e de Israel. “Repetiu-se a oferta do vinho à esposa por um gomil estreitíssimo, visto que era donzela. Se fosse viúva, a boca do gomil devia ser mais ampla. Enquanto os assistentes entoaram seis bênçãos, os esposos beberam, e lançaram fora o vaso, em sinal de alegria e abundância.

Seguidamente, passaram à mesa onde estava posto um primoroso jantar. O primeiro prato servido a Judite foi uma galinha e um ovo. Assim que a noiva provou da galinha, trincharam-na e repartiram-na pelos convivas. Neste ponto, Simão de Sã pegou do ovo, sorriu-se, e riram todos, exceto Jorge.

— Sabe o que este riso quer dizer, senhor Jorge? — perguntou Simão.

— Não sei.

— É que a praxe manda que se atire o ovo ao nariz do cristão que assistir à cerimónia.

— Em tal caso — disse Jorge — não quebrantem o ritual. Aqui lhe ofereço o nariz.

— Está dispensado — disse Judas Ben Tabbay, o rabino que viera de Bragança celebrar o casamento.

Durante o jantar, cantaram-se sete bênçãos. Ao anoitecer, dois hebreus de idade, denominados “paraninfos”, conduziram os esposos ao seu aposento.

Assim findaram aquelas cerimónias. Havemos de alcunhá-las de ridículas, quando expurgarmos a nossa religião doutras que sobre-excedem aquelas em ridiculez.

Segunda Parte

CAPÍTULO I

Desde 1701, ano em que Jorge de Castanheda de Barros casou, até 1712, resumiremos os factos contingentes à nossa narrativa, poucos e de mediano interesse.

D. Francisca Pereira, sabedora do casamento do filho, saltou enfurecida como se lhe espremessem fel e vinagre na chaga da outra maior punhalada.

— Um filho assassinado, e outro judeu! — exclamava ela. — E eu sem marido, nem parentes que me vinguem!

Estes brados iam espedaçar o marido, que caíra enfermo e aborrecido da vida, assim que reconheceu impossível vingar-se dos Távora, e granjear a benevolência do rei. Excruciavam-no, ainda por cima das suas dores, os despropósitos iracundos da esposa que, a cada hora, lhe chamava homem de lama, e pai sem entranhas nem honra.

Plácido de Castanheda de Moura em meado do ano de 1703 já não vivia. Aquele homem enervado pelo servilismo aos caprichos da mulher, não teve, em fins de vida, vigor de alma com que reagir aos empuxões da adversidade que o atiraram à sepultura. Acabou sem lágrimas de ninguém, a não serem as de Jorge, que recebeu a triste nova em Amesterdão.

D. Francisca ficou bastante rica para não lastimar a perda do rendoso ofício do seu marido. Garcia de Moura Teles, engolfado nas delícias sórdidas de uma vida desbragada, não tinha tempo de carpir a morte do pai, que ele nunca respeitara nem amara.

Recebeu a viúva novas informações da Guarda. Noticiavam — lhe a expatriação de Jorge com a mulher. Com esta notícia, convenceu-se D. Francisca Pereira de que Jorge levara o tesouro da Bemposta, e saíra para o estrangeiro a gozar-se de uma rica independência.

Em 1704, Garcia casou, contra vontade da sua mãe com uma mulher de condição humilde e reputação mareada. Garcia ensenhoreou-se na administração dos vínculos paternos, e separou-se da mãe, injuriando-a. Pouco depois, como o palacete em que ela morava pertencia aos vínculos do pai, obrigou-a judicialmente a despejar. D. Francisca, esmagada, mas ainda vivaz como os fragmentos da serpente, começou a vingar-se dos filhos, desbaratando a sua meação e vínculos, em toda a casta de desperdícios, sem que a idade a embaraçasse de ganhar fama de acabar desonesta como começara sua vida de esposa. Aos cinquenta e dois anos, D. Francisca Pereira passou a segundas núpcias com um sujeito de meia-idade, filho sacrílego do bispo de Leiria, D. Fr. José de Lencastre. Este bispo era irmão do cardeal D. Veríssimo de Lencastre, e o seu sucessor nas honras de inquisidor-geral.

Cristóvão de Lencastre, marido de D. Francisca, mediante o valimento do seu pai, conseguiu o elevar-se a lugares importantes. Presume-se que a viúva de Plácido de Moura encontrou neste segundo o vingador do primeiro marido.

O filho do bispo galaneava em pompa de librés, carroças e arreiamento de cavalos; todavia, ao par com ele ninguém vira a mulher. Diziam que a má filha, má esposa e pior mãe expiava, na soledade da sua câmara, desprezada dos seus próprios criados e escravos.

Entretanto, Jorge de Barros, Sara, e o escudeiro António Soliz gozavam contentamento, sossego e prosperidades em Amesterdão. O velho, mordomo dos cabedais do seu amo, aventurara também os próprios no comércio da navegação, que os judeus portugueses e espanhóis tinham ensinado em grande parte aos holandeses. Abalançaram-se a maiores empresas, todas afortunadas. Jorge, deixando a mercancia à responsabilidade e perspicácia de Soliz, repartia seu tempo entre as alegrias domésticas e a convivência com os hebreus doutos da Península, que tranquilamente escreviam, filosofavam e doutrinavam em Amesterdão. Fez-lhe grande estranheza a distância a que viviam dos outros judeus os israelitas desterrados de Portugal e Espanha. Hebreu português que recebesse como esposa uma judia alemã, era logo expulso da sinagoga, excluído de todos os encargos eclesiásticos e civis, e nem sepultura lhe concediam entre os portugueses.

Indagando a causa desta divergência entre membros de uma mesma nação, perseguidos pelo mesmo ódio, soube Jorge que os hebreus portugueses e espanhóis se tinham em conta de representantes da tribo de Judá, a mais nobre das tribos, enviada à Espanha, no tempo do cativeiro de Babilónia.

Como quer que fosse, os judeus portugueses eram os melhormente conceituados e respeitados em Holanda. No correr de dois séculos da sua residência naquela paragem, apenas se citava raro exemplo de judeu português punido por alguma malfeitoria.

Em Amesterdão frequentava Jorge de Barros as famílias dos Nunes, Ximenes, Teixeiras, Prados, Pereiras, e outras donde, volvidos anos, saíram o barão de Belmonte, ministro de Espanha em Holanda, D. Álvaro Nunes da Costa, ministro de Portugal, Machado, que mereceu a privança de el-rei Guilherme, o barão de Aguilar, tesoureiro da rainha de Hungria, e muitos outros hebreus, donde procedem famílias hoje ilustres em títulos e riqueza.

Sara encontrou parentes na Haia, descendentes dos irmãos do seus bisavós, e destes soube que existiam outros no Rio de Janeiro, apelidados Silvas, um dos quais, João Mendes da Silva, advogava naquela cidade com grandes créditos. Abriram as duas famílias correspondência amiudada. Sara admirava as cartas discretas e instrutivas da sua parenta Lourença Coutinho, mulher do advogado Silva.

As famílias de Silvas e Coutinhos, no meado do século XVI, tinham emigrado para a Holanda; e, no reinado de D. João IV, reavido do novo mundo o território usurpado pelos holandeses, passaram ao Rio de Janeiro, fiados no privilégio de inviolabilidade com que os governos portugueses angariavam população para aquelas colónias americanas.

Lourença Coutinho convidava instantemente Sara a transferir-se ao Brasil; porém, Jorge, contente da mediania do seus recursos, e do trato dos hebreus com quem afetuosamente se dava, desconvencia sua mulher do desejo de passar ao Novo Mundo.

Algumas vezes, a imaginação de Jorge de Barros desferia um voo alto, para longe, e baixava sobre aquele Neptuno da quinta da Bemposta. Lia o catálogo que o avô lhe dera dos valores encerrados no cofre, e, apesar do desprendimento de ambições, inquietavam-no desejos de possuir uma riqueza, que podia ser fortuna para muitos netos de portugueses que pobremente divagavam pela Europa. “Quem sabe”, dizia ele entre si, “em que mãos caiu o tesouro! É impossível que a rainha Dona Catarina conservasse aquele tanque e a estátua grosseira do Neptuno. “A estas incertezas respondeu Simão de Sã com uma carta datada em Janeiro de 1706.

Dizia-lhe que a rainha da Grã-Bretanha morrera de cólica no palácio da Bemposta em 31 de Dezembro do ano findo, e que ele, por estar nessa ocasião em Lisboa, intencionalmente fora ao palácio com o pretexto de assistir aos responsórios cantados na magnificente capela que D. Catarina edificara no palácio. juntava Simão de Sã que, depois do saimento do cadáver para Belém, se ficara conversando com um criado ordinário da defunta acerca das obras que a virtuosa senhora mandara fazer naquele palácio tão pouco tempo gozado. E, como a pergunta viesse a molde, inquiriu ele do atencioso criado, como quem conhecera a quinta em antigos tempos, se um tanque em que havia uma estátua tinha sido reconstruído. O criado respondeu que não, porque a senhora rainha gostava muito de ir sentar-se à beira do tanque por ser sítio de muitas sombras e frescura.

— Mas então — disse Simão de Sã — a estátua, que estava em seco, torna a deitar água pela boca.

— Não, senhor. A sua Majestade, quando o arquiteto das obras quis repuxar a água, disse que não bulisse no que estava, porque era feia coisa a boca do Neptuno a servir de bica; e, além disso, a queda da água no tanque a distraía das suas orações e lhe molestava a cabeça.

Não obstante, Simão de Sã receava que D. Pedro II, herdeiro da irmã, continuasse as obras, e apeasse o Neptuno.

Como quer que fosse, o cofre existia ainda. Jorge de Barros entreviu a possibilidade de havê-lo ainda, e mais facilmente, quando o palácio da Bemposta estivesse desabitado.

No fim do ano de 1706, Jorge de Barros deliberou viajar com a sua mulher, adoentada gravemente pelos ares da Holanda. Aconselharam-lhe regiões quentes, e nomeadamente o Brasil. Foi já saúde para Sara a alegria de ir ver a sua parente Lourença Coutinho, a qual, na última carta, lhe dava a fausta nova de ter salvado a vida ameaçada do seu terceiro filhinho.

António Soliz ficou em Amesterdão, curando do negócio do seu amo.

Em Março de 1707, já Sara e o seu marido estavam hospedados no Rio de Janeiro em casa de João Mendes da Silva, pessoa de teres e consideração, muito lido em leis, aparentando fervor de católico, nas devotas poesias em que exercitava a musa enfastiada dos autos; e em consciência mais filósofo, mais espinosista que judeu. As delícias de Lourença eram os seus três filhos André, Baltasar, e o mais novo dos três, António, que tinha dois anos. Das poesias do marido ria ela como sincera judia que era.

Sara, sedenta da felicidade de mãe, afagava o gracioso Antoninho, confessando o pesar de não ser dela, e a inveja que a sua amiga lhe fazia com três lindos meninos.

— Se eu tivesse uma filha — dizia Sara a sua prima — , desde já nos comprometíamos a fazê-la esposa do teu António.

— Ainda estás muito em tempo de entrar comigo em contrato — dizia Lourença. — Tens vinte e seis anos, Sara. As mulheres querem-se mais novas que os maridos. Se, dentro de dez anos, fores mãe de uma menina, a tua filha será minha, quando tiver quinze anos, e o meu António será teu. Estamos comprometidas por juramento?

— Sim, prima — assentiu alegremente Sara. — Pode ser; não pode, Jorge? — perguntou ela com adorável lhaneza ao marido.

Jorge sorriu-se, e o doutor João Mendes festejou a pergunta com uma boa gargalhada, que tingiu de púrpura o rosto de Sara.

CAPÍTULO II

Recobrara-se de vigor a esposa de Jorge de Barros. A vida no Brasil era-lhe mais divertida e variada. O marido planeava em transferir para o Rio de Janeiro o seu negócio, e o velho Soliz, que era o afortunado diretor de todas as empresas. Neste propósito, escrevia aos seus amigos de Amesterdão, quando recebeu consternadora notícia da morte do seu António.

O escudeiro legava ao neto de Luís de Barros, padrinho e benfeitor dele, todos os seus bens de fortuna, economias de cinquenta anos, e o capital que o seu defunto amo lhe mandara entregar, acrescentado com os lucros do comércio. Os livros de razão deixara ele, com o depósito dos haveres, em poder de um hebreu digno da confiança, a quem dera dois abraços para os seus amos, quando voltassem à Holanda.

Deu-se pressa Jorge em embarcar para a Europa, prometendo aos contristados Silvas voltar para o Brasil, tão depressa liquidasse a sua casa comercial.

No começo de 1709, Jorge de Barros dava sepultura honrosa ao seu escudeiro em Amesterdão, e tornava conta do negócio, no intento de o trespassar, e voltar cedo ao Brasil. Não alcancei, todavia, quais embaraços lhe estorvaram a execução do intento. Porventura, rogos de amigos, transtornos mercantis, ou talvez esperanças de vir a Portugal diligenciar senhorear-se do tesouro o embaraçariam. O certo é que em 1711 Jorge demorava ainda na Holanda, e neste ano deu Sara à luz o primeiro e almejado filho, que foi uma menina, à qual puseram nome Leonor, na pia batismal. Escreveu Sara alvoroçadamente a sua prima Lourença Coutinho noticiando-lhe o nascimento da esposa de António. Foi grande contentamento em casa dos Silvas; e de uma parte e de outra se ratificaram os juramentos com pueril solenidade.

Neste decurso de quatro anos, por vezes recebeu Jorge de Barros notícias da sua família de Portugal, por mediação do hebreu da Covilhã. Garcia de Moura Teles, ao passo que a juventude das famílias ilustres do reino cercava Badajoz, ou morria cortada das armas francesas em Xerez de los Cavaleros, ou assaltava valorosamente Ciudad Rodrigo e muitas praças pugnacíssimas, até assentar no trono Carlos HI, contra as pretensões de Filipe de França: enquanto os brios lusitanos assim lampejavam os seus derradeiros clarões em época já tão apagada de crenças e efeminada por delícias, Garcia de Moura vivia em Lisboa vida de libertino, apodrentado de vícios, e apontado como exemplo de jovens desonrados e perdidos por míngua de pai, de mãe e de mestres. A mulher com quem casara, fugindo aos maus tratos dele, requeria divórcio, e levantamento do dote com que fora nupcialmente dotada pelo inepto marido. Garcia, desprezando os processos judiciários, contubernara-se com uma cigana mulher de fascinações mágicas, celebrada em Lisboa pela sua beleza e artes diabólicas, por efeito das quais alguns mancebos e velhos se tinham empobrecido.

D. Francisca Pereira, já também separada do filho do inquisidor-geral, bebia gota a gota o fel que envasilhara para a velhice, afastada de parentes, opróbrio e irrisão da sociedade e dos salões, onde ela outrora entrava com o aprumo de uma soberba vergôntea de tronco real.

Jorge de Barros lastimava a rápida e desastrosa queda de tão próximos descendentes do respeitado contador-mor e amigo de D. João IV e Afonso VI. Enojava-o seu irmão e a sua mãe; todavia, assomos de piedade o impulsavam a salvar de uma ignominiosa e desamparada velhice a criatura que lhe dera o ser. Dominou-se, porém, entendendo que as caridosas tentativas seriam inúteis, senão parvas. De mais disso, sua mãe e irmão eram ainda ricos: ele é que trabalhava para viver, mercadejando, e emparelhando-se com gente de baixa extração para ganhar o pão e decência da sua família.

Vacilava Jorge entre fazer-se de vela para o Rio de Janeiro, ou dar primeiro um novo assalto ao tesouro da Bemposta. Este desejo acometia-o sempre que ele atentamente olhava sobre o anel do seu avô. Sara divertia-lhe o ânimo destas apreensões, rogando-lhe que não expusesse sua liberdade e vida, agora que Deus lhe dera uma filhinha, um tesouro do céu ao pé do qual o tesouro da Bemposta era um caixão de vil pó.

Pôde muito com ele esta santíssima poesia de mãe. Resolvido tinha finalmente passar ao Novo Mundo com os seus bens já liquidados, quando um amigo do Rio de Janeiro, no princípio de 1713, lhe escreveu noticiando-lhe a prisão de Lourença Coutinho e do seu marido, suspeitos de judaísmo, e como tais remetidos a Lisboa ao Santo Oficio. Dentro desta carta vinham duas linhas de Lourença para Sara. Diziam assim:

Apenas posso dizer-te que vou presa para Lisboa com o meu marido e os meus três filhos. Deus me ampare e dê paciência para as torturas.

Tua prima Lourença

Rompeu Sara em altos clamores, quando isto leu. Jorge, alguns minutos aturdido e perplexo, saiu do seu aflitivo recolhimento exclamando:

— Vamos para Portugal, que esta família não tem lá ninguém que lhe valha. Agora, é um dever que nos sacrifiquemos, Sara. Vamos, que eu conto com amigos e parentes.

Na primeira embarcação que aproava ao Porto, vieram Jorge, e Sara com a filhinha de oito meses nos braços. Do Porto jornadearam para a Covilhã, onde os recebeu surpreendido Simão de Sã. Dali escreveu o hospedeiro israelita para Lisboa, pedindo que lhe noticiassem a chegada do navio em que vinham presas cinco famílias do Rio de Janeiro.

Quando o navio chegou à barra de Lisboa, já, em casa de Diogo de Barros, estava Jorge. Sara prudentemente ficara na Covilhã, por ver que os seus créditos no tribunal da fé não deviam ser melhores que os de Lourença Coutinho.

João V iniciava o seu estúpido reinado borrifando de sangue a máscara de hipócrita. Como estivesse doente de uns flatos em 1760, foi o filho de Pedro II arejar-se na convalescença até Azeitão. Pernoitou em Coina, e foi ao outro dia visitar diversos frades, em companhia dos manos Francisco, António e Manuel, e do bispo capelão-mor D. Nuno da Cunha de Ataíde, homem de coração mau, figadal inimigo de hebreus e hereges, merecimentos que lhe ganharam em 1712 o barrete de cardeal e as insígnias de inquisidor-mor, concedidas pelo santíssimo papa Clemente XI.

João V saiu do castelo de Palmela, onde foi de visita, por tal maneira movido à conversão dos judeus — graças às súplicas do capelão-mor, e às de D. José Pereira de Lacerda, prior de Sant'Iago, cuja cabeça da ordem era o designado castelo — que logo ali prometeu ao Diabo e a S. Domingos disputar a um as almas que lhe lá caíam, e ao outro a glória de as içar à bem-aventurança por meio dos guindastes e roldanas das torturas chamadas “da corda”.

Apontado neste fervoroso voto, começou postergando vilissimarnente os tratados solenes que asseguravam aos hebreus das colónias brasileiras a inviolabilidade do asilo. A piedade puxava pelo ânimo do rei, que mais tarde fazia Mafra, ao mesmo tempo que violava o mosteiro de Odivelas, onde tinha, ali mesmo, paredes meias com o templo do Senhor, uma freira com filhos, bastante devassa para se não inquietar com a justiça de Deus e com o escândalo da comunidade.Note: D. João V, nos seus primeiros anos de amores com a religiosa bernarda, entrava no convento debaixo do pálio. Diz a tradição que, uma vez, saindo o rei de se entreter com a freira, ao despedir-se da prelada, lhe dissera: “Que ides fazer agora?” — “Vou”, respondeu a prelada, “com a comunidade pedir em coro a Deus a saúde da vossa Majestade. “Estas palavras abalaram João V. Em consequência do qual abalo, mandou ele construir uma casa com passadiço para o convento, a fim de evitar o escândalo de entrar pela portaria. Assim foi que do poder secular partiram ordens para serem presos além do Atlântico, e remetidos aos calabouços do Rossio, os portugueses suspeitos de judaísmo.

Quem denunciou a família dos Silvas, e que motivo dera Lourença Coutinho para ser especialmente acusada de hebraísmo? Não o dizem os muitos biógrafos franceses, italianos, brasileiros e portugueses, que têm comemorado os infortúnios daquela família. Nem Barbosa, na Biblioteca Lusitana, nem Sismondi, na Littérature du midi de Europe, nem Ferdinand Dinis, nem João Manuel Pereira da Silva, no Plutarco Brasileiro, nem Varnhagem, nem José Maria da Costa e Silva, nem Vegezzi Ruscalla, na biografia d'li Giudeo Portughese, Uma palavra enche esta lacuna: INFÂMIA, que não há nome ainda inventado com que dar em sombra uns longes da protérvia da Inquisição, daquele braço ensanguentado que feria no rosto a honra de Portugal com o cetro dos reis.

Achou Jorge de Barros, auxiliado pelos parentes, engenhoso expediente de fazer chegar às mãos de João Mendes da Silva algumas palavras escritas, animando-o a confiar no valimento dos amigos. Lourença Coutinho reconheceu a letra, e disse:

— Temos aqueles bons anjos por nós. Desembarcados, foram conduzidos entre quadrilheiros e chusma de plebe ao palácio dos Estaus. Lourença levava pela mão seu filho António, que tinha então seis anos. André e Baltasar iam pela mão do pai, e choravam, muito aconchegados dele, circunvagando os olhos horrorizados.

Lourença, às portas da santa casa, foi separada dos filhos e do esposo por dois familiares de boas palavras, que a conduziram através de salões. João Mendes ficou no vasto pátio, rodeado dos filhos, o mais novo dos quais chamava pela mãe lavado em lágrimas. O alanceado pai olhava como idiota sobre as crianças que se lhe cingiam com as pernas. Daí a pouco, João Mendes e os filhos receberam ordem de sair, que estavam livres para o fazerem.

— E minha mulher? — perguntou o advogado.

— Está presa para ser interrogada.

— Interrogada em quê? — disse o aflito marido.

— Ela o saberá — voltou mal-encarado o familiar do Santo Oficio. — Vá com Deus, que não tem que fazer aqui.

Saiu João Mendes por entre a multidão, que os soldados afastavam a murros e pontapés. Desviou-se das mãos do gentio, e manteve-se no coberto do Convento de S. Domingos, encarando na casa de lúgubre aspeto em que lhe ficava a mãe do seus filhos. E chorava acariciando os meninos, quando um desconhecido se acercou dele, e lhe disse:

— É o senhor João Mendes da Silva?

— Sou esse desgraçado.

— Jorge de Barros espera-o. Siga-me, e entre na casa onde eu entrar. Não receie, que eu sou primo do marido de Sara; e anime-se que a sua mulher tem protetores.

CAPÍTULO III

— Estou sem esposa! — exclamou João Mendes atirando-se aos braços de Jorge, que lhe não podia responder embargado pelos soluços. — Os meus filhos estão sem mãe? — perguntou ainda em aflitivo ansiamento o advogado.

— Não, senhor — respondeu o velho Diogo de Barros. — Há de ter brevemente esposa, e estes meninos sua mãe. Não chorem, filhinhos, que a mãe não corre perigo.

— Não? — clamou João Mendes, querendo ajoelhar aos pés de Diogo de Barros. O velho susteve-o nos braços, e disse-lhe:

— Sossegue: meu sobrinho lhe dirá que Diogo de Barros pode alguma coisa com o inquisidor-geral Nuno da Cunha. Vou sair. Escreva a sua esposa, que as suas cartas hão de ser-lhe entregues, através de todos os embaraços.

Saiu a falar com o inquisidor o digno sobrinho de Luís Pereira de Barros. No entanto, Jorge aquietou o terror do seu amigo e a inquieta consternação dos meninos com as esperanças de que o seu ânimo estava convencido. João Mendes quis escrever a Lourença, mas o que tinha na alma para ela eram lágrimas inexprimíveis, angústias que lhe enturvavam a razão, gritos e não palavras, frenesis que o faziam saltar da cadeira, e correr para os filhos em gemidos e gestos de mortal desesperação. Suplicava-lhe Jorge de mãos postas que fizesse um esforço para enfrear a sua agonia, lembrando-se da coragem com que os seus avós tinham sofrido maiores dores, os tormentos inexprimíveis da separação eterna do seus filhos, o espetáculo da violação das suas mulheres, o desvario horrendo de matarem às próprias mãos as suas criancinhas.

Aplacava-se a intervalos a ansiedade de João Mendes; mas o desesperar-se e carpir-se redobrava nas intermitências, e então era o pedir ele a Deus lhe levasse os filhos para lhe não falecer coragem de matar-se, quando sua mulher fosse condenada à morte.

Jorge, como visse que João Mendes não atinava com escrever duas linhas, escreveu ele a Lourença Coutinho, incutindo-lhe valor para esperar a sua próxima liberdade. Referiu-lhe a situação do marido e dos filhos. Pedia-lhe que chorasse como desafogo, e se lembrasse sempre deles para sentir necessidade de vida e alento.

Ao entardecer, chegou Diogo de Barros com bom rosto. O inquisidor prometera-lhe tirar com a máxima brevidade o depoimento das testemunhas no Brasil; e, se as culpas não fossem mais graves do que a denúncia as fazia, assegurava a Diogo de Barros que no prazo de cinco meses ou menos se faria auto-de-fé, e então Lourença Coutinho sairia livre.

Enquanto a João Mendes da Silva, juntou o inquisidor, podia estar descansado, e tratar da sua vida, que nenhuma carga lhe faziam as denúncias.

— Cinco meses! — exclamou João Mendes. — E há de estar minha infeliz mulher cinco meses encarcerada!... E não hei de vê-la, nem ela há de ver seus filhos!... ó senhor Barros!... Eu morrerei antes de se acabar esse grande prazo de tempo!...

— Morrerá, se for um fraco... — atalhou o velho.

— E ela... — redarguiu o Silva — , ela... quem lhe deu força para viver cinco meses em masmorras?

— Há de dar-lha o Altíssimo, e há de dar-lha seu marido... Qual angústia deveria ser a sua, senhor Silva, se a sua mulher igualasse em posição algumas pessoas que entraram hoje com ela, para saírem no mesmo auto-de-fé condenadas ao fogo!? A senhora Lourença Coutinho, segundo coligi das meias palavras do cardeal-inquisidor, é a única de quem meras suspeitas prometem breve termo de prisão. Até pode acontecer que, antes do prazo dos cinco meses, consigamos libertá-la, ou pelo menos melhorar-lhe o cárcere, transferindo-a para algum recolhimento, como tem acontecido com presas levemente culpadas.

Diogo de Barros, voltando-se para o sobrinho, continuou: — Olha que o inquisidor perguntou-me se tu abjuraras a religião católica em Holanda. Respondi que não, e ele sorriu-se. É preciso supor que os sorrisos de um inquisidor são como o abrimento da boca dos crocodilos. Cautela, Jorge! A tua mãe não há idade nem desgraça que lhe amolgue a índole rancorosa. A tua mulher é filha de hebreus, que muita gente viu morrer no Terreiro da Lã. Olhai por vós, que eu receio não vos poder valer, se uma vez cairdes nas mãos dos dominicanos. A tua presença em Lisboa é inútil para a liberdade da senhora Lourença Coutinho. Com pesar te digo que vás para a Covilhã, e te não detenhas lá mais tempo do que eu te prescrever. Assim que te eu disser que fujas, foge, porque eu hei de saber pontualmente quando se passarem ordens para a vossa captura.

— E sabê-lo-á, meu tio? — perguntou Jorge. — O segredo do infame tribunal ser-lhe-á revelado?

— Não chames infame ao Tribunal da Suprema Inquisição — acudiu Diogo de Barros, sorrindo — porque eu... sou familiar do Santo Ofício.

— O tio!? — exclamou Jorge.

— Sim, eu: entendi que assim era necessário para salvar-te. Pedi que me aceitassem, logo que soube do teu casamento com Sara. Na qualidade de empregado da Inquisição ofereço ao senhor doutor João Mendes da Silva o meu préstimo, se lhe sirvo como portador das suas cartas para sua mulher. Ora, ambos estão vendo que o ser familiar do Santo Ofício tem prerrogativas não despiciendas; e, depois de tudo, e por cima de tudo, asseveram os filhos de São Domingos que os familiares da santa empresa gozam na bem-aventurança um lugar distinto, sentados logo abaixo do trono de Torquemada, de Pedro Arbués, e doutros apóstolos da redenção de Israel. E agora — continuou Diogo de Barros batendo no ombro de João Mendes — peço-lhe encarecidamente que venha com os seus filhos sentar-se à mesa deste vigilante da Inquisição. Precisamos comer para assistirmos a esta deplorável tragédia que vai correndo há não sei quanto mil anos debaixo dos olhos da Providência.

CAPÍTULO IV

A prisão de Lourença Coutinho, nos cárceres do Rossio, foi das menos tenebrosas. Não obstante, a esposa de um marido amado e de três filhos estremecidos, desde a primeira hora em que foi arrancada aos braços deles, ficou num torpor de espírito, numa insensibilidade estuporosa, que parecia alheá-la de refletir na sua miséria.

Não sei descrever aquela primeira noite. Lourença olhou para as trevas da noite como para a luz da sua primeira aurora nos cárceres da Inquisição: aqueles olhos, sempre abertos, pareciam ter cegado, ao mesmo tempo que a memória do passado se escurentara também.

Às oito horas levantaram-na de um tamborete, e conduziram-na a outro quarto. O chaveiro que a foi guiando, disse-lhe ao entrar na outra prisão:

— Este quarto é bem melhor; isto nem é cárcere; tem grades sobre o Rossio; é como quem está na sua casa.

— E meu marido? e os meus filhinhos?

— Esses não vieram — respondeu o guarda.

— Vieram — insistiu ela.

— Não, senhora: foram-se embora lá para onde quiseram.

— E eu fico? — exclamou ela.

— Por ora, fica; mas, cá pelas minhas contas, Vossa Senhoria não está cá muito tempo. já hoje chegaram ordens do senhor inquisidor-mor para se lhe dar um dos quartos reservados.

— E eu posso ver meus filhos e o meu homem? — disse Lourença.

— Olhe, se eles ali passarem no terreiro, pode vê-los à vontade. Isto aqui é só não sair à rua; que o mais não há em Lisboa janelas de tanta vista.

— E então que é dos meus filhos? Onde ficaram eles? Aqui rompeu ela em desabafado gemer e chorar, correndo às reixas, e chamando os filhos e o marido, com os olhos esgazeados sobre quantas pessoas iam passando.

O guarda ordenou-lhe que se aquietasse, quando não, corria perigo de descer às masmorras.

Lourença encolheu-se a tremer com as mãos postas, e bebeu as lágrimas com os soluços que a estrangulavam.

Às dez horas foi conduzida pelo guarda a um recinto vasto, pouco iluminado, e de profundo teto. Viu um velho de agradável sombra, que a mandou sentar, e a esteve contemplando alguns segundos, como quem desconfiava da insânia da infeliz mulher. Falou-lhe no marido e nos filhos; deu-lhe uma volumosa carta; asseverou-lhe que a sua desgraça não iria além da privação da liberdade por alguns meses, e pediu-lhe que fosse escrever sobre uma banca das que estavam na sala duas palavras de mulher corajosa para seu prostrado marido.

Lourença ouvira tudo taciturna; recebera a carta sem abri-la; o familiar do Santo Oficio esperava que ela se erguesse a escrever as palavras pedidas, e Lourença permanecia imóvel.

— Então? Escreve, senhora? — disse Diogo de Barros. — Olhe que eu sou tio de Jorge: confie em mim.

— E os meus filhinhos? — perguntou ela impetuosamente achegando-se do velho.

— Os seus filhos e marido são meus hóspedes. Eu hei de conseguir trazer-lhe à sua vista os meninos; mas tenha ânimo. Por amor deles, sustente coragem de mãe. Verá que este infortúnio acaba depressa. Quer ler a carta do seu marido?

— Ah! — exclamou ela — , é do meu marido esta carta... é?

— Sim, é; e outra de Jorge, escrita quando o atribulado doutor não podia senão chorar.

Lourença leu em convulsivo tremor, enquanto as lágrimas a deixaram.

— Não posso! Não vejo nada, meu Deus! — bradou ela.

— Pois lerá no seu quarto, quando puder; mas se agora conseguisse escrever algumas expressões consoladoras ao seu marido... Pode? Quer alevantá-lo do seu mortal abatimento? Quer que os seus filhos não tenham de chorar a perda do pai?

— Sim!... — clamou ela. — Diga-me o que hei de escrever Vossa Senhoria.

— O que lhe parecer melhor para que ele se persuada que a senhora tem forças para resistir a esta adversidade.

— Oh, meu Deus! — disse ela. — É a primeira vez que minto ao meu marido... Vá!... que viva ele para que os meus filhos não acabem na indigência ...

E escreveu um quarto de papel grande, com vertiginosa celeridade.

— Veja... — disse ela a Diogo de Barros. — E ele acreditará?

O familiar do Santo Oficio leu, e disse: — Não acreditará que a senhora está tranquila, como lhe diz; mas crerá que sente o favor divino da resignação. Agora, senhora, ver-me-á de três em três dias; e das grades do quarto que tem verá todos os dias, às onze horas, seu esposo e filhos à portaria do Mosteiro de S. Domingos. Se com estes intervalos de felicidade, ainda não concedida a hebreus, a senhora Lourença fraquejar e sucumbir, dir-lhe-ei que é por demasia frágil, principalmente quando recebe de mim a certeza da sua liberdade, sem beber do cálix amargo — continuou ele abaixando a voz — que nesta casa são obrigados a beber os mais inocentes.

Achou Lourença em si a alma de mãe e esposa, relendo a carta do marido, na ausência de Diogo de Barros. Prostrou-se largo tempo com a face no chão, orando não sei se ao Deus de Jacob, se ao de S. Domingos de Gusmão, se à Providência Divina que vale mais que os outros. Orou, e sentiu-se confortada.

Às onze horas, dadas na torre dos dominicanos, correu à janela, e viu o esposo e os filhos. Os meninos, agrupados diante do pai, olhavam contra as grades donde lhes transluzia um pano branco. João Mendes, cauteloso da observação dos transeuntes, relanceava para lá os olhos, e passava por eles o lenço que lhe embebia as lágrimas.

Os dias foram assim passando arrastados. A pobre mulher sentia-se amparada de Deus. Era o hábito da desgraça, este dom misericordioso da natureza humana que se deixa identificar com a dor, a ponto de dulcificar a peçonha com os choros. É, todavia, provável que está Deus nisto. Esta conformidade serena, e quase saborosa, não na sentem os celerados.

João Mendes da Silva, obrigado a obtemperar à sua saudade, e distrair o espírito em planos pertinentes à subsistência de mulher e filhos, deliberou abrir escritório de advogado em Lisboa. Pensava ele que lhe não devolveriam mais os seus haveres no Brasil, talvez já confiscados, como era de lei, assim que o tribunal da fé entendia com a consciência dos possuidores. A Inquisição, por facilitar o caminho do céu aos judeus, aliviava-os do peso dos bens terrestres, e convertia estes bens em regalias dos fiéis. Estes fiéis percebiam o espólio gradualmente, segundo sua categoria, desde o monarca até o derradeiro esbirro do Santo Oficio.

Algumas pessoas de valia, aparentadas com os Barros, inculcaram a perícia do advogado vindo do Brasil. Assim que João Mendes abancou, e, abafando o coração na onda das lágrimas, se prestou a ouvir o arrazoado dos clientes, a concorrência foi tal que o seu nome emparelhou com o dos primeiros jurisconsultos.

Jorge de Barros, saudoso da sua família, deixou Lisboa, e a liberdade de Lourença encarregada ao generoso tio. Alguma vez, o tesouro da Bemposta lhe beliscou o desejo de uma tentativa; mas ele tinha jurado a sua mulher, empenhando a vida da filhinha, que se não exporia às suspeitas, nem arriscaria a sua segurança.

Neste tempo, Jorge de Barros considerava-se mais que remediado em bens de fortuna. Metade dos seus teres quisera ele dar ao marido de Lourença Coutinho; porém, o advogado, se não tinha bom sangue, estreme de partículas judaicas, era dotado daquela estimável compleição de homens que a si próprios se obrigam a se remirem e proverem com o trabalho. Nisto, os judeus eram santos. O trabalho era o seu martírio deles.

CAPÍTULO V

Confiado na vigilância de Diogo de Barros, Jorge estanciou alguns meses na Covilhã, esperando a liberdade de Lourença Coutinho, com o propósito de se encontrarem as duas famílias em porto de mar, donde saíssem para o Brasil.

Ao fim de três meses, chegou do Rio de Janeiro o instaurado processo. O defensor de Lourença, para destruir dois depoimentos que arguiam a presa de judaizar na observância da lei velha em certas festividades e jejuns, alegava, juntando aos autos, algumas poesias devotíssimas que João Mendes da Silva escrevera e mandara imprimir em Portugal, nomeadamente duas, uma ao padre Santo António de Pádua, e outra ao príncipe de Gandia S. Francisco de Borja, louvando-lhe a heroica humildade com que se ele albergara no Porto entre os pobres do Hospital de Santa Clara.

As esperanças dos protetores de Lourença, não obstante os bons serviços do promotor do Santo Oficio, ficaram bastante aquém do que se lhes antolhara. A presa estava de antemão absolvida, sem confissão, sem interrogatório, sem tortura; mas era forçoso que saísse reconciliada para não haver quebra nas praxes inquisitoriais; e, como reconciliada, somente em auto-de-fé podia sair. Felizmente para ela, naquele ano celebrou-se ainda o santo espetáculo em Julho, e não, como era costume, em Outubro, na primeira dominga do Advento. Aos nove de Julho, pois, saiu Lourença da Igreja de S. Domingos, onde entrou sem hábito, e foi, recebida a penitência da imposição do inquisidor, entregue ao familiar Diogo de Barros.

Na Covilhã foi a nova recebida com tamanhas exultações, que, ao parecer dos vizinhos de Simão de Sã, o Messias esperado tinha aparecido finalmente.

Lourença entrara no palácio dos Estaus ainda formosa; cento e sessenta dias daquele ambiente empestado das abafadas cavernas, em que apodreciam centenares de presos, bastaram a alvejar-lhe os cabelos e a enrugar-lhe a pele. Os filhos fitavam-na como se a não conhecessem. O marido beijava-lhe o rosto, e inundava-lho de choros como se com os beijos quisesse ressumar as cores doutro tempo, e com as lágrimas refrigerar-lhe a aridez da cútis. Sara pediu encarecidamente a sua prima que fosse recobrar a saúde extenuada nos ares sadios da Covilhã, e, se o marido não pudesse ir, levasse consigo os três meninos.

João Mendes aplaudiu a ida da esposa, porque temia perdê-la, bem fundado nos receios do médico hebreu Diogo Nunes Ribeiro.

Permaneceram Lourença e os três meninos na Covilhã por espaço de dois meses. António, o mais novo dos pequenos, andava, sempre que o deixavam, com Leonor nos braços.

Entrançava flores com que a engrinaldava; afofava-lhe coxins de folhagem à sombra das árvores; inventava brinquedos e trejeitos com que fizesse rir a criança.

Dizia Sara a sua prima: — Não te parece coisa estranha o amor do teu António à pequenina?!

— Maravilha-me isto! — confirmava Lourença. — Eu já pensei se Deus estará criando o coração destas crianças para se quererem, desde que nós tão alegremente nos conjurámos a casá-los!...

— Será assim... — obtemperou Sara.

— Mas, prima!... — tomou Lourença com tristeza — , que mágoa tenho se tu sais de Portugal e eu cá fico!...

— Pois não tomas para o Rio de Janeiro?!

— Parece-me que não... O meu marido sabe que tem inimigos lá, que hão de continuar a persegui-lo. As testemunhas, que juraram contra mim, adivinhou ele quem foram. João Mendes era o primeiro letrado, e o mais procurado. A inveja é um inimigo inexorável. Se voltarmos para o Rio, diz ele, e talvez tenha razão, que em breve tornaremos presos para Portugal. para além do mais, meu marido, por influência do teu Jorge, ganhou muitos amigos em Lisboa, e custa-lhe a vencer o muito trabalho que tem. Dinheiro por dinheiro, diz ele que lucra mais em Portugal; com a vantagem de lhe serem mais saudáveis os ares de Lisboa. Outra razão dá ele: é a educação dos filhos. Os mais velhos quer formá-los em medicina; e ao nosso António tenciona formá-lo em leis para lhe suceder no escritório. Eu não sei com que motivos hei de contrariar estas razões de João Mendes. Como sabes, meu marido é mais velho que eu dezasseis anos: tem já cinquenta e sete, e precisa de repouso: as viagens incomodam-no muito; e uma nova desgraça, como esta da minha prisão, cortar-lhe-ia o fio da vida. Já vês, minha querida prima, que os nossos pequeninos noivos vão ser separados, e Deus sabe se tornarão a ver-se. Porque não ficas tu em Portugal?

— E a Inquisição? — disse Sara. — Pois a maldita viria aqui perseguir-te? Os parentes do teu marido, aquele honrado Diogo de Barros não conseguirá que te deixem viver tranquila?

— Diz Jorge que não. O inquisidor-geral supõe que o meu marido se fez hebreu. A mãe dele é o meu terror enquanto viver. E eu sei que, se cair nas garras dos verdugos, não tomo a ver a luz senão a das chamas. Se aqui estamos sossegadas, é porque Dona Francisca Pereira não sabe que estamos aqui!... ó prima!... Se hoje me arrancavam ao meu marido e à minha filhinha!... — exclamou Sara apertando estremecidamente a criança contra o seio. — Se me tiravam a minha filha, como eu fui arrancada ao regaço da minha mãe... da minha pobre mãe!

— Não, não, Deus nos livre! — atalhou Lourença. — Sai, sai de Portugal, que tu não sabes o que é uma hora dentro daquelas paredes negras!... Quem sabe se a minha vinda à Covilhã será causa a perturbarem o teu sossego!...

— Não, prima, não é. Ninguém sabe aqui a tua vida, nem o teu nome fora desta casa. Jorge recebe aviso, logo que a nossa liberdade for ameaçada. Eu preciso destes ares, e o meu pobre Jorge, por amor de mim privado da pátria, também goza mais saúde aqui. Vê tu, filha!... Este Jorge, nascido para tanto, com espíritos tão levantados, sujeitou-se à vida de mercadejar em queijos e especiarias. Se o contador-mor Luís de Barros julgaria que educava para este destino o seu querido neto!._ E agora diz ele que precisa de trabalhar muito para educar e dotar esta menina. De casa não espera ele património nenhum; porque a mãe, antes de morrer, vende e dá tudo para nenhum filho se aproveitar de nada. Olha tu que desgraçada e castigada mulher aquela! Não estima ninguém, e não tem nesta vida pessoa que a estime, alma que lhe dê uma sede de água na febre da agonia! No que parou aquela senhora que eu conheci tão respeitada na corte, e visitada das mais ilustres fidalgas!... Disse-me Jorge que até as escravas a estavam menosprezando! E mais é ainda rica! Se um dia empobrecer, será necessário que o meu marido a vá tirar da lama das ruas!... Ora aí tens, minha querida Lourença! Aí vamos nós para aqueles frios nevoeiros e ardentes febres da Holanda. Queira o Senhor que o meu marido não adoeça... A sua misericórdia me leve deste mundo, se eu ainda hei de ver a minha Leonor sem pai...

— Que sustos! — interrompeu Lourença.

— O teu marido é forte, e rapaz. Se adoecer em Amesterdão vai para Londres ou para Roma, ou para qualquer cidade de Itália, onde está muita gente da nossa nação, que vos há de acolher e rodear de contentamentos. Não te dê preocupação o futuro de Leonor. João Mendes vai mandar liquidar a nossa casa do Rio de Janeiro, e empregar em Lisboa o capital. O meu António há de formar-se; e, quando tiver vinte e dois anos, será doutor, e bastante remediado para manter as regalias da nossa Leonor abundantemente...

O diálogo foi interrompido por Jorge de Barros, que entrou lendo uma carta.

— De quem é? — perguntou Sara.

— É do tio Diogo — respondeu com um sorriso de amargura o marido.

— A Inquisição fareja-te, minha Sara!...

CAPÍTULO VI

O caso extraordinário do casamento de um fidalgo, descendente de avós e pais cristãos-velhos, com a filha dos judeus queimados no auto-de-fé de 1685, deixou viva e duradouramente impressionados e escandalizados os ânimos dos frades dominicanos e mais oficiais do Tribunal. Poderia conjeturar-se que a consorte de Jorge de Barros se convertesse de coração à fé católica para esposar o cristão; porém, esta pia hipótese encontrava o procedimento dos casados, ausentes logo da pátria, e residentes entre judeus, num país de heresia livre, onde as portas das sinagogas se abriam francamente ao culto satânico da raça deicida. Se a judia, ligada sacramentalmente a Jorge de Barros, era cristã, porque fugia? Se o marido era cristão, como lhe consentia a consciência baralhar-se com hereges, e hebraizantes descarados na Holanda, terra de maldição em que o Demónio armara suas tendas contra Cristo e contra o Sumo Pontífice?! Estas interrogações admirandas faziam-nas os peitos equâmines, lógicos e consternados dos filhos do glorioso patriarca S. Domingos.

Que a judia se despenhasse no Inferno, muito doía isto aos padres, porque era uma alma por quem correra sangue das chagas do Redentor; mas que a perversa arrastasse na sua queda a alma do marido, este desastre era lança penetrantíssima que trespassava corações menos sensíveis que os daqueles povoadores das altas regiões da bem-aventurança!

O remédio que lhes ocorria mais heroico e expeditivo, depois de largas cogitações, era queimar a judia, e purificar a alma contaminada do marido ao fogo em que estalassem os ossos da mulher.

Treze anos tinham derivado; e tão largo termo não bastou a delir da memória dos frades aquele salutar pensamento. Prova é que, ao cabo de tantos dias, quando os familiares da cidade da Guarda avisaram D. Nuno da Cunha, o inquisidor-geral, em papéis escritos do punho de D. Veríssimo de Lencastre, e do bispo que lhe sucedeu no ofício, encontrou notas recomendativas acerca de Sara de Carvalho, e Jorge, marido dela, filho de Plácido de Castanheda de Moura.

O cardeal recebeu o aviso da existência de Sara na Covilhã, e mandou oficiar ao Conselho Geral. Ao mesmo tempo, porém, o secretário do cardeal avisava o familiar Diogo de Barros com estas palavras: “Eu demoro quinze dias a participação aos frades, para dar tempo aos culpados a fugirem do seu vagar.”

Esta fora a má nova que Jorge de Barros lera a sua mulher. Num dos próximos dias, Lourença Coutinho voltou para Lisboa, cobrindo de lágrimas as mãos do seu protetor, e as faces de Sara e da filhinha. António também chorou muito abraçado em Leonor, quando a criança lhe deitava os braços em alto choro, ao afastarem-se.

Volveu Jorge de Barros a fazer sua residência em Amesterdão. Lançou mão, outra vez, da indústria comercial, e com mais atividade, em razão de ter uma filha. Se dantes passava algumas noites entretidas nos saraus literários da portuguesa D. Isabel Correia, depois escasseava-lhe o tempo às amenidades do espírito. As suas noites e horas do dia feriadas eram repartidas entre o coração e o repouso. No coração concentrara ele os prazeres da inteligência. A filha era-lhe tudo o que já Sara não podia ser, após doze anos de convivência. A hebreia fora-lhe a paixão, única; mas uma paixão, por ser exclusiva, não faz que a felicidade da alma seja permanente. Se alguma hora, todavia, Jorge de Barros, que não saíra excetuado de comum lodo, era surpreendido por vagos desejos de distrair-se em afetos novos, a filhinha reclamava para si a exuberância do coração do seu pai, e vingava senhoreá-la.

As notícias de Lisboa iam miudamente nas cartas de Lourença Coutinho para Amesterdão. Os diálogos epistolares das duas israelitas versavam no máximo sobre as suas alegrias maternais. Lourença escrevia a Sara que o seu filho António era muito esperto, e causava espanto ao mestre de primeiras letras mais afamado em Lisboa, o padre Lourenço Pinto. No profetar deste idóneo sujeito, o pequeno António, se a morte o não apanhasse, havia de ser coisa de prodígio, principalmente em poesia; porque, entre oito e nove anos de idade, fazia versos que Lourença avaliava muito superiores aos do pai. Se houvermos de crer nestes encarecimentos da extremosa mãe, António já andava nas asas da fama, e algumas famílias ilustres folgavam de o terem pelas suas casas com os filhos de quem ele era condiscípulo. Uma destas pessoas era José de Oliveira e Sousa, contador-mor dos Contos do Reino, que sucedera no elevado cargo ao defunto Plácido de Castanheda de Moura. Aquele fidalgo tinha um filho, de nome Francisco Xavier, mais novo três anos que António, e igualmente admirável por a precocidade do seu engenho. Era coisa para muito rir ver as duas crianças a contenderem sobre elegâncias de poesia portuguesa, repetindo trechos de Miranda e Ferreira, de Bernardes e Camões. António, contra o parecer do alegre auditório, sustentava com razões pueris que Gil Vicente era superior a Camões. A comédia era, no pensar do menino, a melhor forma da poesia, a mais agradável e recreativa. E os ouvintes instigavam-no a discorrer sobre estes e outros assuntos. Referia Lourença Coutinho difusamente estas áfricas do filho, e ao mesmo tempo as grandes virtudes da esposa de José de Oliveira — à parte os delírios da sua fé católica — , conhecimento e amizade que devia ao seu Antoninho. D. Isabel da Silva Neves era o nome da mãe do pequeno Francisco Xavier, legitimamente vaidosa do seu menino como a outra mãe; e, por aliança de simpatias e maternidade, muito íntima da esposa do advogado João Mendes.

Não obstante, Lourença Coutinho motejava das crendices piedosas da sua amiga, contando a Sara que D. Isabel tinha no santuário duas imagens, uma da Conceição, e outra da nossa Senhora da Graça, as quais ela amarrava uma à outra com um fio de pérolas, quando pretendia delas algum favor. Referia mais que a sua amiga tinha um Santo António, que ela frequentemente incomodava, assim que a mais insignificante coisa se lhe perdia. Ora, se acontecia o Santo não dar pronta notícia do objeto perdido, a devota desterrava o padre Santo António da companhia dos outros santos, e exilava-o para um canto escuro da alcova por espaço de vinte e quatro horas; findas as quais, se o objeto não tinha ainda aparecido, o rebelde santo era amarrado pelo pescoço com uma guita, e pendurado à borda do poço, até lhe dar água pela barba. Se a coisa perdida vinha a descobrir-se, então saía o santo da cisterna, e era processionalmente conduzido ao oratório, por entre lâmpadas e perfumes, terminando o triunfo por um lauto jantar ao qual eram convidados os parentes e amigos. juntava judiciosamente Lourença que estas irrisórias superstições eram aprovadas por um frade muito sábio, irmão do contador, chamado frei Francisco do Menino Jesus, prior dos Carmelitas, o qual estava continuamente ensinando ao pequenito Francisco histórias em que figuravam feiíssimos demónios com grandes caudas e retorcidas pontas e pés cabruns.

Dos seus dois filhos André e Baltasar dizia Lourença que não podia esperar nada na carreira das letras, porque eram o inverso do irmão em inteligência; pelo que João Mendes desistira de os mandar a Coimbra, e esperava mandá-los administrar as suas fazendas no Brasil, se eles ou elas não levassem descaminho.

CAPÍTULO VII

Em 1715, Sara de Carvalho escrevia à sua amiga com muitas lágrimas, noticiando-lhe que Jorge começava a queixar-se de sofrimentos do peito, supervenientes a umas teimosas sezões que o deixaram enfermo para sempre. Noutra carta imediata, dava-lhe parte da sua ida para Roma, onde o marido ia procurar a restauração das forças, posto que ela, convencida da sua fatal sina, pressagiava a curta vida do seu Jorge, e a si se acusava de ser a causa involuntária de tamanha infelicidade, supondo que o seu marido, restituído aos ares pátrios, poderia convalescer. Da filhinha Leonor dizia que eram seis lindíssimos anos, com um toque de sobrenatural pressentimento nos olhos sempre tristes, e nos jeitos melancólicos, ao invés de todas as crianças.

De Roma escreveu mais animada contando por miúdo as progressivas melhoras do seu marido. Nomeava os israelitas portugueses que lá encontrara numerosíssimos, vivendo ricos e sossegados, ali mesmo debaixo dos olhos indulgentes do papa.

Muito se admirava ela da bondade do chefe da Igreja Cristã, e da crueza bárbara dos seus subalternos em Portugal; mas, no decurso da carta, dava a entender que os hebreus compravam muito cara a tranquilidade que tinham em Roma.

Lourença, contente da boa nova que a viera desafogar de ansiosos cuidados, voltou a referir alegres coisas do seu António, como quem as contava à futura sogra do seu filho. O menino estava já suficientemente instruído em Humanidades para entrar na Universidade; porém, faltava-lhe a idade para matricular-se. Dava-lhe a notícia de ter ele escrito uma comédia, que o pai lera e rasgara logo, querendo castigá-lo, porque a comédia feria os verdugos da Inquisição, pondo em imagens um conciliábulo de demónios, discutindo o melhor modo de acabar com a religião do Galileu, e concluindo por saírem do inferno com três refinadíssimos demónios, chamados Domingos de Gusmão, Torquemada, e Pedro de Arbués, vestidos de frades dominicanos.

Não obstante as severas ameaças de João Mendes, o pequeno reproduzira de memória as cenas principais da comédia trágica, e leu-as a sua mãe, segundo ela dizia, com uma graça e declamação que fazia ora chorar, ora rir.

Temia, porém, Lourença que o filho em Coimbra se desmandasse, e abrisse o seu abismo e o da família toda; pelo que lhe rogara com lágrimas que tivesse muita prudência, e fingisse quanto pudesse que era cristão.

Contava ela que D. Isabel não cessava de catequizá-lo para lhe incutir bem no âmago as suas doutrinas piamente engraçadas. Do pequeno Francisco Xavier dizia que nunca vira menino tão esperto, e ao mesmo tempo tão visionário. Tinha onze anos, e confessava-se todos os meses e comungava com uma reverência edificante. António ria-se da devoção do seu amigo, não em presença dele, mas em conversa com a mãe, que o admoestava a não dizer coisa que o pequeno pudesse transmitir à sua família. Dois padres de grande nomeada em Lisboa, o congregado Inácio Ferreira, e o loio Lourenço Justiniano, confessores e mestres do menino do contador, profetizavam que Francisco Xavier de Oliveira havia de ser um luminar da cristandade, porque já lhe descobriam no olhar e no dizer um não sei quê de predestinação. “Vê tu, minha amiga”, dizia Lourença, “corno em Portugal se inutilizam os grandes engenhos, e abafam os alentos e arrojos dos espíritos! O meu Antoninho diz que o seu amigo está já tolhido, e quando chegar aos dezoito anos estará sandeu. Mas não imaginas como eles se querem. “O António não sai de casa dele, ou ele da nossa, exceto nas horas em que o Francisquinho está orando com a mãe ou no confessionário, enquanto o meu poeta engenha comédias, com as quais João Mendes e eu temos ocasiões de rir até mais não poder.“

Ajuntava Lourença, com respeito à família do contador-mor José de Oliveira e Sousa, que naquela casa se acreditava que el-rei D. Sebastião havia de voltar, quebrado o seu encanto: de maneira que D. Isabel não consentia que se lhe fosse à mão nesta esperança em que ela punha tanta fé como na ressurreição dos mortos. Era grande parte nesta loucura um franciscano sebastianista, ancião de mais de noventa anos, chamado frei Vicente Duarte. Ouvira Lourença Coutinho, da própria boca do frade, esta lenda persuasiva da vinda infalível de el-rei D. Sebastião: “Andava por Lisboa, no fim do século dezasseis, um sincero sebastianista a quem alguns incrédulos escarneciam. Um dia, disse ele aos zombadores: — Acreditareis, que Dom Sebastião há de vir, se esta vara de marmeleiro, metida na terra, florescer e frutificar?“ – Acreditamos — , responderam os circunstantes.

E o sebastianista”, prosseguiu dramaticamente frei Vicente Duarte, “em presença de cem pessoas, cravou o bordão na terra, e para logo a vara bracejou ramos, que se vestiram de flores, e estas se formaram em belíssimos e maduros marmelos. Quantos estavam e provaram da fruta, se converteram do íntimo à fé e esperança do sebastianismo. O meu pai”, continuava o frade, “comeu daqueles marmelos prodigiosos”.

“Ora aqui tens, minha Sara”, juntava Lourença, “como está a razão de pessoas da primeira linha em Lisboa! Dona Isabel é uma das mais distintas damas, e, à semelhança desta, dizem-me que há centenares delas que ensinam aos seus filhos a crença de frei Vicente Duarte dos marmelos! Vê tu que marmelada!

Queres tu saber uma coisa mais espantosa? Há aqui ricos mercadores que vendem os seus géneros com a condição de receberem o pagamento deles, quando vier Dom Sebastião. O meu marido já viu escrituras destes contractos, lavradas há cinquenta anos, e postas em juízo, se pode haver juízo para tolices deste tamanho! Diz João Mendes que ainda agora há velhacos que se fingem sebastianistas para lograrem os miseráveis vendedores a prazo tal! Eu fazia de Portugal uma ideia muito diversa, quando estava no Brasil, O meu António diz que em Lisboa não há senão duas espécies de gente: fanáticos e hipócritas; com os primeiros estão os verdugos da humanidade, com os outros estão os patifes. Eu creio que ainda há gente boa como Diogo de Barros e a sua santa família, e como esta senhora minha amiga, que tem tanto de boa como de embrutecida por frei Vicente e outros, não sei se hipócritas se fanáticos.

A respeito de frades, vou contar-te um caso galante acontecido há dias. O teu Jorge há de folgar de o saber, porque sei que ele ainda é parente de um dos personagens desta comédia, que o meu António promete escrever. O conde da Atalaia tinha uma manceba muito bonita, segundo dizem. Ninguém se atrevia a disputar-lha, porque temiam o conde. Tentou a empresa um frade franciscano, e ganhou-a. Uma criada da manceba infiel denunciou a traição ao seu amo. O conde fingiu uma caçada, despediu-se da pérfida, e escondeu-se na cidade. Pouco depois, entrou o frade, e imaginou que estava na sua casa. Quando era meio-dia estavam dormindo sossegadamente. Eis que bate à porta o conde, e a criada abre prontamente. O frade, trajado como o inocente Adão, escondeu-se debaixo da cama. O conde da Atalaia entra no quarto, vê os hábitos de São Francisco, olha para debaixo do leito, e exclama: — Quer tu sejas demónio quer tu sejas frade, não te toco; mas ordeno-te que saltes daí para fora, que desças as escadas e vás para o teu convento: isto imediatamente. — O frade queria vestir-se, e o conde não deixava. Ajoelhou-se o francisco, pedindo-lhe que antes o matasse e o não obrigasse a sair naquele feitio. O conde foi inexorável até ao momento em que o frade lhe disse: — Que desonra Vossa Senhoria vai causar ao nosso comum padre São Francisco, expondo-o desta forma na pessoa de um do seus indignos filhos, à zombaria e escárnio do povo! — Ora o conde, como era irmão da Ordem Terceira de São Francisco, abalado pelo medo de ofender o padre comum, perdoou-lhe, e disse-lhe que se vestisse.

E vai o frade, tão depressa lançou mão do hábito, arranca duas pistolas, mete-as à cara do conde, e diz-lhe que o matava, se lhe não cedia a jovem. O conde, acovardado diante da fúria do agressor, saiu de casa, não sei se com intenção de voltar. O certo é que o frade saiu com a manceba, e até agora, que já são passados quinze dias, ninguém sabe dizer onde param, apesar das pesquisas de todos os quadrilheiros.

Aqui tens como está Lisboa, minha Sara. Deus me livre que esta carta fosse dar à mão dos que purificam o ar corrompido de Portugal com as fogueiras da santa fé!...”

CAPÍTULO VIII

Em 1716, recrudesceram os padecimentos de Jorge de Barros. Saiu de Roma, e vagueou pelos ducados italianos, experimentando alternadamente ora melhoras, ora empioramento do achaque do peito.

Instado por Sara, escreveu ao seu tio Diogo de Barros a pedir-lhe que lhe segurasse a ida para a pátria, cujos ares lhe poderiam ainda renovar o sangue.

Diogo sondou o ânimo do Santo Ofício, e colheu péssimas induções da sua raiva ao marido da judia.

De Roma tinham vindo ao inquisidor-geral avisos da embaixada, exagerando os serviços que Jorge de Barros andava lá diligenciando a favor da nação judaica em Portugal, fazendo reviver no espírito de Clemente XI escrúpulos e suspeitas, acerca do estilo de processar os judeus em Portugal, tais como as outras que o padre António Vieira tinha suscitado em 1674 por meio do seu opúsculo oferecido a Clemente X, com o título Notícias Recônditas do Modo de Proceder a Inquisição de Portugal com os Seus Presos.

Na verdade, Jorge de Barros, testemunha presencial dos flagícios corri que os cristãos-novos sem culpa se viam atormenta — dos em Portugal, solicitou audiência de alguns cardeais de mais humana índole, e advogou a causa dos hebreus, afervorando as súplicas com a justiça das razões. Os israelitas espanhóis e portugueses instigavam-no a ser-lhes seu amparador, oferecendo indeterminados cabedais para vencer algum pequeno relaxe nas gonilhas do seus pobres irmãos, e doutros que vagamundeavam espoliados dos haveres que a Inquisição lhes confiscara na pátria. Não surtiram efeito as suas ativas inteligências e diligências com alguns membros do Sacro Colégio. Empeceram-no as humilhações hipócritas da corte portuguesa aos pés do papa.

No ano de 1716 concedera Clemente XI ao rei D. João V o erigir-se em igreja patriarcal e metropolitana a real capela. Esta concessão era um chover copioso de prosperidades sobre Portugal, as quais o piedoso rei não sabia como pagar à munificência do bispo de Roma. Nunca tão do íntimo se tinham amado as duas cortes! Estava no trono de D. João I, o perdulário que havia de despejar o ouro do Brasil, contado por milhões, nos cofres de S. Pedro. Clemente XI não era homem que pudesse aplicar um ouvido ao som dos dobrões portugueses e outro às súplicas de um advogado de judeus. O dinheiro dos israelitas era humilde regato em comparação do Páctolo da corte. Com a bulla aurea enriqueceu o pontífice esta nossa terra de parvos, com a prosperidade de mais um cabido metropolitano com seis dignidades, e dezoito cónegos, chamados “principais”, que trajavam de bispos, e mais doze prebendados, após outros ministros eclesiásticos para o serviço da patriarcal. Todos estes sujeitos de ilustríssimo sangue, e estômago correspondente em lustre e elasticidade, eram favores que Roma, a pedido do devoto monarca, fazia ao erário, Ao mesmo tempo, D. João V lançava a primeira pedra daquela vasta mole de granito e mármore que aí está chamada Mafra, coisa de triste e pavoroso aspeto, monumento que a si se levantou um braço real, como se a qualidade do braço o ressalvasse, posteridade além, da nota de se ter imergido no tesouro da pátria, tirando e espalhando às rebatinhas mãos-cheias de ouro que deviam cair em estradas, em colónias, em benefícios da navegação, em benefícios da agricultura, em recultivação das terras de D. Dinis, cujos arados D. Manuel e João IH converteram em espadas e mandaram ensopar no sangue das nações de além-mar.

Baldaram-se, pois, os rogos de Jorge de Barros; mas, assim mesmo, no Conselho do Santo Oficio, o nome do generoso causídico da raça maldita foi duplamente cintado de negro.

Razão tinha Diogo de Barros para afastar seu sobrinho de Portugal, embora o matassem lá fora os ares pestíferos de Roma ou de Amesterdão. Antes morrer à beira das lagoas pontinas ou dos lameirais holandeses que nas labaredas do Campo da Lã.

Em dispendiosas viagens de dois anos e interrupção de trato mercantil se desfalcou o capital de Jorge. Atenuava-se ele a olhos vistos, quando se detinha a pensar no futuro de Sara e da filha, se a moléstia o matasse naquele seu andar de reino para reino, em cata da saúde que, a intervalos curtos, lhe abria luz de esperança, e logo o descaía na escuridão das suas longas noites de velar e gemer com Sara e Leonor à beira do seu leito.

Lembrou-se a esposa do clima brasileiro, onde ela recobrara saúde. O enfermo deixava-se levar como criança a toda parte. Bastava que Sara lhe dissesse: “Rogo-te que vamos em nome da nossa filha. “Leonor, quando a mãe falava assim, ia acariciar as faces de Jorge, e repetir a súplica no mais mavioso tom e sorriso de anjo da esperança.

Pouco tempo se detiveram no Rio de Janeiro. O governador da Baía, ido pouco antes de Portugal, avisou Jorge de Barros do perigo que a sua liberdade corria em território português. Deu-se pressa em voltar à Europa, com a moléstia agravada e o coração mais angustiado.

Alguns israelitas, seus companheiros de viagem, induziram-no a ir experimentar os ares de Londres. Desejava Jorge permanecer ali, porque a nação hebraica, em parte alguma — a não ser na Polónia, chamada “paraíso dos judeus” — gozava tanta liberdade e consideração.

Não tinha sido assim até 1649, época em que um espanhol escreveu e ofereceu ao Parlamento certa Apologia dos Hebreus, Uma razão alegava o apologista, que tem muita originalidade, e milagrosamente ponderou no ânimo da Câmara. Dizia ele: “Se os avós destes hebreus crucificaram o Messias, parece, em conformidade com o Evangelho, que os chefes e doutores da lei foram unicamente os réus de tal crime, ao passo que o povo exclamava: — Hossana, filho de David! “e que a posteridade não deve ser punida de uma culpa já expiada por tantas gerações. “Ajuntava o defensor que devia ser respeitado o carácter do povo de Deus, que os israelitas ainda tinham, como relíquias de uma aliança pactuada com eles solenemente por Jeová. Finalmente, dizia a representação que a tolerância de Inglaterra atrairia a bênção do Senhor ao reino que, nos cem anos últimos, tinha sido firmíssimo sustentáculo da verdade e valhacouto de infelizes.

Cromwell estava à frente do Parlamento. Sustentou a discussão a favor da apologia, e desatou as cordas opressivas da liberdade dos judeus.

Não soube ainda a História nem o souberam os hebreus de Inglaterra a quem deveram a sua redentora apologia. O incógnito benfeitor, no remate da sua súplica, escreve: “Lo que tengo escrito no ha sido a pedimento de ninguno de Ia nacián de los judios. Solo quiero mostrar lo que a tanto tiempo tengo en mi corazón, y sobre todo es mi intención fundada en la gloria de Dios.“

Desde Cromwell — o qual, no entender de alguns judeus tão gratos quanto estúpidos, era o seu verdadeiro Messias — a nação de Israel construiu sinagogas em Londres, e desassombradamente comerciou por igual com os papistas e protestantes.

Quando Jorge de Barros ali chegou já nenhuma baliza odiosa estremava os judeus da família humana. Em Londres, com muita distinção das outras paragens, o hebreu assumira a sua perfeita dignidade de homem. Em nenhum dos mais poderosos negrejava o ferrete da usura. Os costumes eram mais exemplares que propriamente os da severa Grã-Bretanha.

Esta sociedade cativou o espírito de Jorge; mas o ar de Inglaterra deslaçava-lhe as fibras dos pulmões. Saiu para Itália pela terceira vez. Tomou casa em Veneza, onde por aquele tempo demoravam dois mil hebreus, com as suas sinagogas, seu cemitério, e comércio desafogado de opressão, graças ao papa Inocêncio XI que, desde 1671, lhes quebrara os ferros com que a República os tinha sopeado.

Desde Veneza, escreveu Sara à sua amiga Lourença Coutinho, a quem raras cartas enviara no espaço de três anos, e de nenhuma esperava nem pedira resposta, por não ter permanência em reino algum.

Lourença Coutinho noticiou a ida do seu filho para Coimbra, com bem agouradas esperanças de ser ótimo estudante, e sucessor dos créditos do seu pai. António vinha sempre ao propósito de se ratificarem as promessas mútuas do casamento.

Narrando, como era costume dela, sucessos esquisitos de Lisboa naqueles dias, escreveu Lourença Coutinho.

“Vou-te contar o caso do doutor Machuca, em que toda nós de Lisboa fala. O teu Jorge há de conhecer, pelo menos de nome, este médico de maiores créditos. Dizem que ele tem vista dupla, e adivinha ou vê tudo que nós tem no interior do corpo e do espírito. A algumas mulheres casadas diz-lhes que a sua doença são ciúmes dos maridos; aos mancebos recomenda-lhes que divirtam o espírito de pensarem na fidelidade de tal e tal dama; a este doente diz que o seu mal foi comer uma azeitona contra as prescrições da dieta, àquele reprova ter provado um gomo de laranja. E o caso é que adivinha sempre, e com isto ganha rios de dinheiro.

Um outro médico muito infeliz nas curas e abandonado dos doentes foi ter-se com ele, e disse-lhe, segundo o doutor Machuca referiu ao meu marido: — Tu, digno homem, sabes que eu sou muito ignorante ou muito desgraçado: fomos condiscípulos, estudámos nos mesmos livros, começámos a curar ao mesmo tempo: tu estás muito acreditado e riquíssimo; eu, ninguém sabe como me chamo, nem eu sei como hei de sustentar minha família. Em nome de Deus te conjuro que me digas uma parte do segredo da tua felicidade.

O Machuca, apiedado das lástimas do seu colega, respondeu: “Meu amigo, eu não adivinho: o que faço é espreitar sagazmente certas coisas que, ao parecer dos estúpidos, são extraordinárias. Por exemplo: entro na alcova de um doente: sei que está ali uma rapariga incapaz de observar a abstinência prescrita; casualmente descubro ao pé do leito um caroço de azeitona ou uma casquinha de laranja; tomo-lhe o pulso, e digo-lhe: “A menina comeu disto ou daquilo? E vai ela nega, e eu insisto; ela cora, e eu teimo. Aí está logo toda a família persuadida que eu adivinhei. E à imitação deste caso, os outros, meu caro colega, são assim naturais e simples. — “Bem”, disse o médico infeliz, — farei por imitar-te.“

Sai de casa do Machuca o pobre homem, e topa na rua uma mulher que o chama para ir ver o marido, que tem febre. O doutor senta-se à cabeceira do doente, vê-lhe a língua; e, relançando a vista, segundo o sistema do Machuca, descobre que o doente debaixo do travesseiro tinha uma gabela de feno.

— Vossa Senhoria comeu feno”, diz o doutor. “Feno?!”, pergunta o enfermo.

— Sim, feno! O seu mal procede de ter comido ferio.

— Vossa Senhoria é um bêbado! — , exclama o doente.

— E você”, replica o doutor, — é uma carruagem que come feno!”

— Que besta minha mulher me trouxe!”, torna o doente.

— Mais besta é quem como feno! — , replica o médico.

O doente enche-se de ira, salta da cama, e juntamente com a mulher empurra o doutor do alto da escada à soleira da porta.

Aqui tens o ridículo e ao mesmo tempo triste caso que faz rir hoje toda a gente. Eu chamo-lhe triste, porque o médico foi para casa com um ombro derreado da queda.

Tenho pedido notícias da Sra. D. Francisca Pereira Teles. Dizem-me que já não sai à rua, porque entreveceu, e vive quase sozinha num velho palacete que tem no Bairro da Alfama, porque os outros lhe tiravam o filho Garcia e o marido. Ambos estes senhores vivem alegre vida; mas nenhum deles é recebido na corte. O Sr. Garcia de Moura Teles é teu cunhado, e por isso não repetirei o que a respeito dele ouço dizer. Basta que saibas que todas as portas das famílias honestas se lhe fecham. A companhia dele são as cómicas e cómicos espanhóis do Bairro Alto, que vieram para aqui há dois anos, e têm causado grandíssimos dissabores aos pais de família...“

CAPÍTULO IX

Sara já não achava graça na história do doutor Machuca. Lavavam-na enchentes de lágrimas, quando recebeu a carta da sua amiga. Jorge piorara tanto, que já se não podia erguer, nem planear inúteis mudanças para outro clima.

Quis ele ouvir a carta, e chorou no período em que Lourença escrevia do desamparo de D. Francisca Pereira, e da penosa agonia com que a Divina Providência a castigava, amarrando-a ao leito de entrevada. Sara respondeu com lágrimas às do esposo, e disse:

— Se esta senhora nos quisesse receber na sua companhia, com que amizade e amor a não trataríamos na sua triste enfermidade!...

— Talvez rejeitasse a minha submissão — disse Jorge — , porque Deus não quer que ela aceite... A justiça divina opera só: a nossa caridade para com a minha desgraçada e criminosa mãe seria oposição aos decretos da Providência... Não pode ser uma filha impunemente má... Sofreu muito meu avô... Dores, como as dos últimos anos daquele santo velho, Deus as não faça provar à filha desavergonhada!... Eu sei que ele lhe perdoou; sei; mas a justiça divina é menos indulgente: quer que os ofendidos indultem os agravos que particularmente receberam, e reserva para si o castigo, a execução de uma lei geral e inquebrantável. A minha mãe há de padecer, expiar, e recordar-se muito tempo das agonias do seu pai. Fez-me infinita compaixão o seu desamparo dela! Aquilo é que é angústia humanamente incomportável! O meu avô tinha, quando morreu, muitos parentes e amigos em volta de si. Ela não terá ninguém! Eu beijava as mãos frias do velho, que morrera serenamente, abençoando-me; minha mãe acabará amaldiçoando o filho que odiou, e a chora hoje; amaldiçoando também o filho que tanto amou, e a despreza na sua última miséria! Ó Sara — prosseguiu Jorge, apertando ao seio as mãos da esposa — , ó Sara, que infernos tem este mundo!... Não há outros, não te assustes da existência doutros, minha querida amiga; não ensines a tua filha outros infernos: mostra-lhe somente aquele em que penou sua avó...

Passados alguns segundos de silenciosa cogitação, Jorge prosseguiu:

— Tens tu ânimo, Sara, para combinar comigo no que te cumpre fazer, se a minha vida for tão breve quanto...

— Não! — atalhou ela. — Não! Por Deus te rogo, pela filhinha, Jorge, por este anjo te suplico...

E, como os soluços a entalassem, continuou a súplica em lágrimas, corri que refrigerava as mãos ardentes do marido.

— Sossega, sossega — disse meigamente Jorge — , que eu não digo mais nada... Tens razão... é ainda muito cedo para pensarmos nisto... Pode ser que eu melhore... Aos trinta e oito anos, a natureza ainda vence a morte. Mudaremos de terra, assim que eu poder levantar-me. Os médicos dizem que os portos de mar são nocivos aos meus achaques; vamos procurar montanhas... Quem me dera as da nossa pátria, ó Sara! — disse ele, com muita saudade, olhando por uma janela, como a procurá-las, e talvez a vê-las na ilusão da febre as montanhas da sua terra!

— Vamos nós! — exclamou ela de súbito e alvoroçada. — Vamos, Jorge?

— Para onde, Sara?

— Para a Covilhã... nós esconde-se... O nosso Simão fará que vivamos sem risco nem medo até que estejas restabelecido.

O alvoroço de Sara comunicou-se ao espírito do marido, porque a saudade da pátria o dispusera a aceitar um alvitre, que noutra hora recusaria por imprudente.

— E quem sabe?! — disse Jorge com exaltada alegria, estreitando a filha ao peito.

— Quem sabe?! Pode ser que eu me cure com um mês ou dois de respirar aquela saúde das montanhas da Covilhã!... De dia, não sairei; dormiremos; mas de noite, iremos por aquelas veigas fora, e subiremos às serras, e veremos romper a aurora, já de volta para os esconderijos do nosso Simão: queres, Sara? Vamos?...

— Hoje mesmo... se te pudesses erguer... — acudiu a alegre senhora, crendo que já via cor de saúde nas faces escarnadas de Jorge.

— Erguer-me poderia eu... poderia, que a esperança é uma forte e celestial medicina; mas o pior é a viagem por este mau tempo que faz! Os balouços do navio, assim nesta fraqueza em que estou, quem sabe se me acabariam o resto das forças... Se te parece, escrevamos primeiramente a Simão, esperemos resposta que há de ser boa, no entretanto vou-me eu avigorando, e a Primavera chega também. O mais acertado acho que é isto, Ao outro dia, com muita vontade e pouquíssimo vigor, saiu Jorge de Barros da cama, dando a mão à filhinha, que presumia ser amparo do pai, e recurvando o braço direito pelo pescoço de Sara. Deu alguns passeios numa saleta, saiu à janela que se abria sobre uma praça muito soalheira, e ali esteve alguns minutos gozando o ar tépido de um meio-dia de Dezembro sem nuvens na Itália. Dizia ele que se lhe estava aliviando muito a opressão do peito, como se àquele sol se derretessem os tumores que lhe impediam a inspiração do ar. Sara, de jubilosa, desfazia com beijos as faces de Leonor.

Por espaço de vinte dias, aquelas melhoras, quando não aumentassem, conservaram-se; porém, o contentamento do enfermo e da esposa tanto as encareciam que já um nem outro sabiam falar senão em vida para alegres futuros. A morte costuma assim zombar com algumas das suas presas, como a fera com a vitima, quando a deixa fugir já ferida, e salteando-a outra e muitas vezes, renova o gozo de lhe rasgar as carnes, até que de uma assentada a despedaça.

Jorge de Barros passeava um dia no cais do desembarque, porque esperava cartas de Amesterdão, por onde as de Simão de Sã lhe eram enviadas. Um navio holandês, que naquela manhã ancorara, devia levar-lhe a suspirada resposta do hebreu da Covilhã.

Uns passageiros saltavam das gôndolas ao cais; outros vinham de longe acenando às pessoas que os esperavam em terra. Sara, reparando numa daquelas gôndolas, porque lá vinha uma senhora acenando para o cais muito agitada, expediu um grito e exclamou:

— Ó Jorge!... ó Jorge!...

— Que é?! ...

— Acolá vem Judite!...

— Que Judite?

— A filha de Simão... e o pai também... não vês?

— É ele! — clamou Jorge.

— E o marido de Judite lá vem também, não é?

— São eles!, são eles! — bradaram juntos os esposos agitando os braços, e aproximando-se do canal.

— Venho trazer-vos a resposta da vossa carta — clamou Simão de Sã, ao passar-se da gôndola para terra.

— Ó Judite! — exclamou Sara, apertada ao seio da sua amiga.

— Corno teu marido está desfigurado! — disse Judite ao ouvido de Sara, querendo esconder de Jorge o espanto e as lágrimas.

— Se tu o visses há vinte dias! — volveu Sara. — Só a esperança de voltar à pátria parece-me que o arrancou à morte... Esperávamos hoje a vossa resposta, para sairmos daqui, e vós vindes nesta ocasião...

— Vem ouvir meu pai, que ele está contando a Jorge a razão da nossa fuga...

— Fuga! — atalhou Sara. — Pois vindes fugidos?! A quê?

— À Inquisição. Afinal, chegaria a nossa vez da fogueira, se não tivéssemos bons amigos em Lisboa...

Recolhidos à residência de Jorge de Barros, contou Simão de Sã que a perseguição se acendera com bravura inexorável contra os hebreus, principalmente simulados cristãos-novos, refugiados pelas províncias, e com mais particularidade contra ele Simão de Sã, porque tinha lutado peito a peito com um fidalgo da Guarda, que lhe quisera roubar uma filha, violentando-a. Ora, sucedendo que o fidalgo, contuso das mãos do hebreu, era irmão de um ministro secular do Conselho Real, dignidade atinente ao Conselho do Santo Oficio.Note: O Conselho do Santo Ofício tinha presidente, que era o inquisidor-geral, e conselheiros sem número certo. Entre estes, eram também nomeados ministros seculares, chamados do Conselho Real, dos mais abalizados em letras e autoridade. O secretário do rei era-o também do Santo Ofício. Mediante ele, se comunicava a Inquisição com a coroa. Este secretário expunha vocalmente ao rei os negócios da Inquisição, e não por escrito, para assim impedir que os segredos do Santo Oficio se soubessem. A perseguição ao favorecido judeu da Covilhã foi tão ativa e poderosa que o duque de Cadaval, protetor de Simão de Sã, apenas pôde antecipar o aviso vinte e quatro horas antes do assalto dos esbirros.

Simão de Sã, com a sua numerosa família, fugiu sem mais demora que a precisa para entrouxar o mais urgente, especialmente o muito dinheiro que, já de herança de avós, tinha amuado no cofre para o caso previsto da fuga, enfim realizado, quando ele menos se temia da Inquisição. Expondo-se ao risco de incutir suspeitas em Espanha, Simão de Sã, coadjuvado por valiosos parentes que o acompanharam desde Bragança, ganhou porto de mar, onde voltou o navio que o desembarcou nas salvadoras praias de Holanda. Logo que aposentou sua família em Amesterdão, fez-se ao mar em demanda de Jorge de Barros, com o seu genro e filha, para pessoalmente acudir à inquietação do seu amigo, e demovê-lo do propósito de entrar em Portugal, numa época tão infamada do recrudescido barbarismo do Santo Ofício.

Entristeceu-se amargamente o enfermo Jorge, e logo se viu quanto as melhoras dele pendiam da esperança de ainda ver o céu de Portugal. Sara, posto que os hebreus da Covilhã lhe prometiam distrair-lhe o esposo das saudades da pátria, animava Jorge a insistir no seu intento, lembrando-lhe que podiam viver desconhecidos nalguma aldeia da província mais afastada de Lisboa, e menos vigiada pelos esbirros da Inquisição. Jorge respondia:

— Tanto monta morrer em Holanda como em Portugal Agora vejo que as minhas melhoras eram um milagre da esperança. A esperança era aquele viver da Covilhã, onde passei os mais ditosos dias da minha vida. já não existem as condições que se me figuravam. Noutro qualquer ponto de Portugal ser-me-ia tão penosa a existência como aqui. Iremos todos para Amesterdão. O que me resta da felicidade passada és tu e eles: bom e doce será o morrer entre vós. Ao menos, Sara, quando eu fechar os olhos, tu e a minha filha vereis muitos olhos piedosos em redor de vós, e uma família que vos será amparo. É grande esmola da Providência este juntarmo-nos em tempo que tu corrias o perigo de te veres sozinha com uma criança em terra estranha.

No discurso desta e doutras falas, Sara debulhava-se em choros, porque via definhar-se o rosto e apagar-se o lume febril dos olhos do seu marido. Então era o vertiginoso abraçar-se com a filha, e erguê-la ao seio, como se a mostrasse a Deus, naquele seu afligido rogar, que era mais por soluços que palavras.

Alguns dias passados em busca de navio, as duas famílias passaram para Amesterdão. Os padecimentos de Jorge aumentaram na viagem, bem que ele, condoído das penas de Sara, fingis — .se vigor e esperanças, que ninguém já alimentava por serem a cada hora mais declarados os sintomas de próximo fim.

Um dia, Jorge de Barros disse à mulher, olhando sobre o anel do avô:

— Há quanto tempo nos não lembra este anel!... Vamos falar disto, que é necessário, Sara. Tu conheces perfeitamente o local onde está o tesouro. Ainda te recordas?

— Recordo, Jorge.

— Pois, por amor da nossa filha, não o esqueças nunca. A mim já me não aproveita; e a ti... futura-se-me que também não; mas pode ser que a nossa Leonor alguma vez encontre o acaso que lhe restitua o património do seu pai, que outro não lho restituirão os descendentes do meu irmão Garcia. Assim que Leonor compreender as tuas explicações, ensina-lhe a significação das letras deste anel, e descreve-lhe em miúdos a forma do tanque e da estátua, que cobre o depósito da água, onde está o cofre. Quem sabe? Passados anos, a nossa filha poderá sem risco ir a Portugal, e talvez que a justiça lhe faça restituir o que ela legitimamente herdou do seu pai. Os reis, que hoje possuem o palácio dos meus avós, podem e devem dispensar a posse de uns bens de fortuna que, segundo consta da escritura da venda, claro é lhes não pertencem. Ainda mesmo que o tesouro haja de ser repartido entre mais herdeiros, o quinhão de Leonor, como minha filha, há de ser o maior de todos, porque os herdeiros atuais dos haveres dos meus avós sou eu e o meu irmão. Leonor é minha única herdeira; e, como tal, meeira nos bens livres que existirem por morte da minha mãe... Fatigam-te estas observações, Sara? Tem paciência... São necessárias; não as percas da memória... Chora-me, lembra-te sempre de mim; porém, não seja isso motivo a que te esqueças do futuro de Leonor. Olha que ela e os nossos netos hão de pedir esmola, se nos descuidarmos de olhar para a única fortuna que lhes deixamos... bem sabes que nenhuma outra lhes resta além do segredo deste anel.

CAPÍTULO X

Eram o amor de Sara e os cuidados extremos da família Sã, e porventura as orações da inocentinha Leonor, que iam tendo mão da vida de Jorge.

Na Primavera de 1719 descansaram os sobressaltos da esposa que, durante o Inverno, não tivera dia do seu que não passasse cortado de angustiosos receios, porque a desconfiança dos médicos alanceava o coração da inconsolável senhora.

Reanimou-se algum tanto o enfermo. Nem aquele sol, nem aquelas árvores tinham o aquecer e florir da pátria; todavia, o ar que lhe filtrava às cavernas ulceradas dos pulmões parecia coar bálsamos cicatrizadores. Renasceram esperanças e contentamentos.

Neste tempo, chegaram a Amesterdão cartas de Portugal. Lourença Coutinho fechara a sua com obreia negra.

— Morreu-lhe, talvez, o marido ou algum filho à minha pobre amiga!... — disse Sara alvoroçada.

— Ou pode ser que morresse minha mãe... — observou Jorge.

Quando Sara começava a ler a sua carta, entrou Simão de Sã de golpe, exclamando:

— O seu irmão já não vive!

— O meu irmão morreu?! — perguntou Jorge.

— De desgraça... de grandíssima desgraça.

— Como Filipe? — atalhou Jorge.

— Pior... pior!... — disse Simão.

— Ah!... — exclamou abruptamente Sara, que continuara lendo a carta de Lourença Coutinho.

— Que é? — perguntou Jorge.

— O senhor Garcia — disse ela — morreu... enforcado!...

— Enforcado! — bradou Jorge. — Enforcado um neto de Luís Pereira de Barros! Oh!, que vaso de ignomínia a Providência impõe aos descendentes do mais honrado homem de Portugal!... Enforcado!... Que infâmia praticou meu irmão para tão aviltante morte!...

— A minha carta diz o seguinte — respondeu Simão de Sã, e leu os seguintes períodos:-... Há cinco anos que o rei Dom João quinto foi enfeitiçado, como cá dizem os pios cristãos, por aquela encantadora cigana, que eu, há três anos, te mostrei nas hortas de Chelas, chamada Margarida do Monte.

“Lembrado estás de te eu contar quantos desterros, quantos homicídios enegreciam a vida de Margarida, desde que o rei perdeu o tino por ela, sendo causa de tantas desgraças não poder a boémia guardar ao rei mais fidelidade do que tinha guardado aos outros mancebos e cúmplices da sua desenvoltura.

“O rei, irado de ciúme, obrigou-a a entrar no convento das domínicas da Rosa, na paróquia de São Lourenço; e violentou-a a professar, com muitíssima vergonha das outras religiosas, que se deram por grandemente agravadas de tal parceira. Tamanho foi o escândalo na cidade, quanto inúteis os queixumes das cândidas filhas de Domingos de Gusmão, de escaldante memória.

“Margarida do Monte, ao tempo que professava, ia declarando que não cria em Deus nem no Diabo; mas professou, sob ameaça de ir presa para a Torre de São Gião, e lá dar a ossada do mais galhardo corpo que ainda viram olhos mortais!

“Deram-lhe no convento luxuosos aposentos. A índia não teve mais que desse para ornamento dos profanos retretes, câmaras, recâmaras e antecâmaras da cigana domínica. Serviam-na criadas com ar de damas de honor, e ali estava como irmã de um rei a Margaridinha do Monte que há quinze anos aqui apareceu em Lisboa, trazida de Santarém pelo conde de Óbidos, como sua manceba, e com ele esteve, enquanto outro conde lha não empolgou, e outro a este, e não sei quantos ao último, até que o rei, fascinado dela numas touradas, a tomou, julgando que lhe cabia a honra de ser o derradeiro e absoluto possuidor da boémia.

“E, por se enganar redondamente, e ter coração curto, julgou que o vingar-se era roubá-la a alheios olhos, e amansá-la no convento para depois a retomar purificada dos braços do beato Domingos.

“Ninguém se atrevia a requestá-la no Convento da Rosa, posto que ela provocasse os mais audazes freiráticos de Lisboa: temiam o rei, e punham os olhos nalguns mancebos ilustres, que por causa dela andam desterrados, mais felizes que outros enterrados.

“Era preciso que o maior doido destes reinos se amoldasse aos caprichos vingativos da cigana: apareceu Garcia de Moura Teles, irmão do honrado marido de Sara.

“Já sabes que este Garcia com as demasias da sua despejada vida alheava de si todos os amigos e parentes. Rara semana se passava sem que algum enorme escândalo estrondeasse por conta dele, ou da mulher, de quem ele há muito se afastou, facultando a entrada da corrupção por todas as portas da casa, onde habita a esposa, criatura de vilíssima extração e piores instintos.

“Foi este homem, que já não era novo, quem se abalançou às temerárias asneiras dos vinte anos.

“Como visse Margarida do Monte na grade de uma secular extravagante do Convento da Rosa, aceitou-lhe a requesta, e correu regularmente com visitas e correspondência para o convento.

“Parece que o rei o soube, e enfurecido até mais não poder, quis pessoalmente matá-lo; todavia, os áulicos desvaneceram-no do intento, prometendo-lhe vingá-lo oportunamente, sem que o nome real ficasse enxovalhado no sucesso.

“Gente bem informada me conta que uma freira confidente de Margarida fora habilmente comprada por agentes do paço, para trair a confiança da boémia, e referir dia por dia o andamento dos amores dela com o alucinado Garcia de Moura.

“E o caso foi que a traidora denunciou o dia e hora em que, disfarçado em carvoeiro, Garcia de Moura havia de entrar no Convento da Rosa.

“Os ministros da real vingança providenciaram a espionagem tão acertadamente que o disfarçado carvoeiro foi agarrado no momento em que entrava com um saco de carvão sobre os lombos derreados.

“Apenas agarrado pelos quadrilheiros, despojaram-no de quatro pistolas que escondia num cinturão, levaram-no ao corregedor do bairro, e daqui para o Limoeiro.

“Ninguém esperava que um caso destes, segundo o exemplo doutros análogos, fosse castigado com mais severa sentença que um desterro temporário; porém, como o negócio era com o rei, os mais avisados esperavam que o desterro fosse para sempre e para alguma das mais inóspitas possessões.

“Eis senão quando corre um boato de que o preso seria condenado à morte. Os parentes de Garcia de Moura, quando isto souberam, saíram todos a suplicar como grande mercê o degredo do pobre louco. A mãe, que estava entrevada, ordenou que a levassem assim à presença do rei. Dom João, assim que lha anunciaram, saiu por outra porta, e foi para a quinta de Alcântara. A desgraçada mulher voltou para casa dando brados de doida, e clamando ao povo que não deixassem matar um neto de Luís Pereira de Barros, e um filho dela, que tinha nas veias sangue real. Do povo havia quem chorasse e quem risse. Eu fui um dos que choraram, porque a conheci em tempos de muito grande valimento e formosura por igual. Em tempos de virtude é que, a dizer verdade, nunca a eu conheci.

“Dos parentes o que mais ativamente entendeu na salvação do preso foi Diogo de Barros, e com ele a parentela que fala de Luís Pereira como de um santo. Baldou-se tudo!

“Ontem, por volta das dez da manhã, correu que se estava carpintejando uma forca no Campo da W (Local onde é hoje o Terreiro do Paço.), a tempo que um regimento de arcabuzeiros se formava à porta do Limoeiro. Toda nós entendeu que ia ser enforcado Garcia de Moura. Fecharam-se as janelas de muitas casas principais. A indignação era grande; mas o terror maior. A compaixão já perdoava as travessuras escandalosas de Garcia; mas ninguém ousava proferir palavra de descontentamento.

“Ao meio-dia, saiu Garcia de Moura Teles entre dois frades de Arrábida, que lhe diziam as costumadas pregações, enquanto dois homens o amparavam pelos sovacos. Eu o vi: ia como morto; não pude encarar naquele espetáculo por muito tempo.

“À uma hora e três quartos correram-lhe o laço, quando já pouca vida lhe poderia a corda apertar na garganta...

Simão de Sã interrompeu a leitura, porque Jorge de Barros, perdida a cor e o alento, caiu para sobre a espádua da sua mulher.

Passado largo espaço, deu sinal de acordo: eram torrentes de lágrimas, e vozes ininteligíveis. O hebreu. arrependera-se de ler a carta, sem predispô-lo a escutá-la. Pensava ele que Jorge devia de odiar bastante o irmão para não sentir tão profundo o golpe.

Depois das lágrimas, sobreveio uma torva serenidade ao rosto de Jorge, e logo estas pausadas palavras:

— Um irmão assassinado pelos Távora; outro... enforcado... Enforcado, santo Deus!... Um neto de Luís Pereira de Barros enforcado!...

Confluíam palavras consoladoras da esposa, de Simão, e de todos. Parecia não ouvi-las, nem ver quem lhas dizia.

— Aquela pobre senhora... a minha infeliz mãe!... — murmurou ele.

E, voltando-se para Simão de Sã, perguntou: — e a minha mãe ainda vive?

— A carta não diz nada a tal respeito.

— E a tua carta? — perguntou Jorge à esposa. — Que diz a Coutinho?

— Não a h toda... Vou ver — respondeu Sara, correndo os olhos por sobre as muitas páginas da carta.

Parou num relanço da última página, e leu: — O honrado Diogo de Barros, segundo me diz a minha amiga Dona Isabel, mulher do contador-mor, vai hoje buscar a senhora Dona Francisca para sua casa, porque se conta que enlouquecera, e diz e faz coisas de furiosa. Vê tu, Sara...

Sara susteve-se, e Jorge disse: — Vê tu... o quê? Lê o mais.

Sara leu: — Vê tu que espantoso castigo o desta senhora!... Os dois filhos que ela amava tão miseravelmente mortos!... Esta infâmia da forca para ela que tão soberba era da sua fidalguia!...

— Está bom... — atalhou Jorge. — Agora... deixem-me sozinho... deixem-me chorar...

O leitor faz-me certamente a justiça de supor que eu não imaginei um D. João V que amou uma cigana, chamada Margarida do Monte, a qual, na qualidade de freira domínica, se fez amar de um mancebo ilustre, que, por se fingir carvoeiro para entrar à cela da dileta do rei, morreu na forca. Se eu suspeitasse da desconfiança injusta do leitor, copiaria o seguinte período com que o Cavalheiro de Oliveira me justifica e abona: “... Eu vi o soberano arrastar pesadíssimas cadeias, em que muito tempo esteve cativo por astúcia ou feitiço, como se dizia, de Margarida do Monte, criatura da raça boémia. Quantas desordens, exílios, e até mortes se não efetuaram por intrigas daquela mulher! Morreu ela finalmente encarcerada no Convento da Rosa de Lisboa, em qualidade de religiosa da ordem do patriarca de S. Domingos. Este novo pai, que à força lhe deram, não a tomou mais ajuizada. Induziu ela um peralvilho a visitá-la na cela; prestou-se ele aos seus apetites, e foi desgraçadamente surpreendido, e pouco tempo depois enforcado. Entrara ele no convento, disfarçado em carvoeiro; e, como foi apanhado com o disfarce, hoje é mais conhecido pelo nome de Carvoeiro da Rosa, que pelo seu nome de batismo ou de família.

O amor das ciganas, naquele tempo, era funesto, invencível e fatal. No segundo volume desta narrativa virá melhor lance de exemplificar o prestígio das mulheres daquela raça que lá vai perdida na confusão de raças que, ainda bem, se fundiram, à luz da civilização, no molde universal da humanidade.

Que ideia formavam nossos avós da raça que tanto se chamava boémia como egípcia? Uns diziam que saíra da Tartária, e infestara a Europa em 1417, com passaporte de Sigismundo, rei da Hungria, e recomendações de alguns príncipes, que a veneravam como raça de profetas, videntes e extraordinariamente iluminados em coisas das altas regiões, cumprindo decretos de Deus, que a mandara cruzar a face da Terra, sob condição de não possuir um palmo dela. A juízo dos príncipes que os protegiam, os ciganos expiavam a culpa do seus antepassados, moradores do Egipto, os quais recusaram receber Jesus e a sua Mãe Santíssima, perseguidos por Herodes.

Cuidavam outros que os boémios procediam da Pérsia; e, de sete em sete anos, saíam em caravanas, obrigados por lei, a buscarem sua vida pelo mundo além, por não terem pátria que lhes abastasse o sustento.

Outros, por derradeiro, consideravam-nos descendentes das dez tribos de Israel, cativas de Salmanasar, rei da Assíria.

Como quer que seja, os filhos da misteriosa origem, em Alemanha eram chamados ziguener, em Itália cingari ou zingari, e nas Espanhas ciganos ou ziganos.

Se a história nos não diz coisa importante acerca de ciganos em Portugal, a legislação claramente nos assevera que eles por aqui estancearam em grandes e perigosas caravanas. Também se nos dá a inferir da legislação que alguns monarcas lhes deram indulgente faculdade de viverem em determinadas localidades do país: quais elas fossem não posso eu de pronto assinar; presumo, porém, com muitas probabilidades que algumas vilas das carairas de Trás-os-Montes e Beira Alta eram o paradeiro legal dos ranchos que anualmente visitavam as feiras principais da nação.

Citarei de passagem as cartas régias, que tenho à mão, pertinentes ao assunto, que merecia ser difusamente versado por quem o investigasse com mais saber e paciência indagadora.

Na Ordenação Filipina lá encontro uma carta régia de 17 de Agosto de 15 5 7 “sobre a saída dos ciganos do reino. “É enviada ao corregedor da comarca de Pinhel, e reza deste teor nos pontos concementes ao nosso intento: “Pela lei dos capítulos de cortes que el-rei meu senhor e avô, que santa glória haja, fez em Évora no ano de 1535, é mandado sob as penas nela conteúdas, que não entrem ciganos nos meus reinos e senhorios, por se evitarem alguns delitos que cometem e fazem em muito dano e prejuízo do povo; e porque me é dito que os ditos ciganos entram nos ditos meus reinos... Hei por bem e vos mando que os não consintais estar nem andar em lugar algum dessa comarca; e se alguns, agora ou ao diante, deles nela andarem ou estiverem os prendereis e procedereis contra eles à execução das ditas penas... O que assim hei por bem sem embargo de quaisquer provisões de el-rei meu senhor e avô, ou minhas que os ditos ciganos ou alguns deles tenham para poderem entrar ou andar nos meus reinos, as quais em todo revogo... E a estes tais que assim tiveram as ditas provisões assinareis termo de trinta dias para que saiam dos meus reinos... Jorge da Costa a fez em Lisboa a 17 de Agosto de 1557.”

Devia de ser urgentíssima esta carta régia, lavrada vinte e quatro dias depois da morte de D. João III.

Não sei até que ponto foram obedecidas as ordens da regência. Pode conjeturar-se que a disciplina se relaxou logo, ou poucos anos corridos; porque dezasseis anos depois, por alvará de 14 de Março e apostila de 15 de Abril de 1573, D. Sebastião, referindo-se ao desprezo com que eram esquecidos os regimentos e leis antigas, junta que os ciganos “fazem muitos furtos, e insultos e delitos de que o povo recebe grande opressão e trabalhos”. Pelo que, manda apregoar em todos os lugares públicos a saída dos ciganos e ciganas, e mais pessoas que com eles andarem, dentro de trinta dias, não obstante as provisões de D. João III ou dele propriamente.

E acabados os ditos trinta dias, acrescenta o pregão, os ciganos que se encontrarem sejam logo açoutados e degradados perpetuamente para as galés. Enquanto às mulheres — diz a apostila — como não podem sofrer a pena das galés, sejam publicamente açoutadas com baraço e pregão, e lançadas do reino.

O rigor das penas não enfreou a ousadia das hordas boémias. De envolta com elas andavam portugueses e estrangeiros de diferentes nações disfarçados em ciganos, e falando a linguagem deles, não aparentada com língua nenhuma conhecida dos lexicógrafos.

Ao meu juízo, estas conquistas de estrangeiros e portugueses quem as faziam eram as ciganas, mulheres sobremodo formosas.

A lei, que manda matar os ciganos e ciganas, rebeldes aos alvarás já sumariados, é de Filipe I. Do contexto da lei colhe-se quão poderosas e temíveis se tinham feito as quadrilhas boémias em Portugal, com as quais se bandeavam portugueses entrajados de ciganos, e falando a linguagem deles. Não era já atrevimento raro entrarem nas povoações de mão armada, saquearem as casas, e repelirem as justiças e tropas. Para aqueles que, no termo de quatro meses, não despissem os trajos da sua raça, não falassem língua portuguesa ou castelhana, e não convizinhassem em povoados, a sentença era de forca no local onde fossem encontrados. Às mulheres dos ciganos, presos nas galés de Lisboa, ordenava a lei que se afastassem no prazo dos quatro meses, sob pena de serem açoutadas com baraço e pregão, e degradadas para o Brasil.

Esta lei, à primeira vista severa, concedia aos ciganos um fácil direito de naturalização, facultando-lhes residirem em Portugal, mais amplamente do que lho tinham concedido as provisões dos reis antigos. Foi ela, enquanto a mim, que, em grande parte, acabou com as hordas vagabundas, dando, para assim dizer, pátria a milhares de famílias que não conheciam berço nem sepultura.

Todavia, algumas caravanas daquela insociável raça, talvez as mais ferozes, nem se temeram da forca, nem se lisonjearam com a permissão de se fazerem portuguesas. Grandes senhores em Portugal as protegiam, nomeadamente o conde de Óbidos no fim do século XVII. Refere um contemporâneo que anualmente na grande feira de Santarém se juntavam muitos, e se alojavam nas abegoarias daquele conde na aldeia de Pernes. O Cavalheiro de Oliveira, então rapaz, e dado aos amores das ciganas, ia passar a Pernes as três semanas da feira; e, segundo confessa, acariciava as mulheres e filhas dos ciganos, e presenteava-lhes os filhinhos. “Entendi”, escreve ele, “que era este o melhor, senão único expediente, de me livrar dos insultos e malvadez desta espécie de gente. E nisto me não enganei, que eles, como escravos, me obedeciam, chamando-me seu senhor, e adorando-me; e devo confessar, em pró deles, que nunca recebi mínima desfeita dos que formavam aquele rancho, e mais vivi com eles por espaço de quinze ou dezasseis anos. Os meus amigos e vizinhos da mesma povoação não podiam gabar-se do mesmo. Como eram maus para aqueles miseráveis recebiam o retorno da mesma natureza. Os ciganos respeitavam no extremo o conde de Óbidos, seu benfeitor. Creio que não hesitariam expor a vida em serviço dele; pelo menos assim mo diziam energicamente e com mostras de sinceridade. Também me diziam que a sua índole em geral lhes não permitia pagar o bem com o mal, e jamais poderiam ser ingratos a quem os beneficiava. Convencido estou disto por um lance que porei como exemplo e prova, o qual é raro em verdade e pode ser que único. A 7 de Novembro de 1727, entre onze horas e meio-dia, quando eu ia atravessando o pinhal da Azambuja, o Ziedel, rei ou diretor da cáfila, acercou-se de mim com mais três que eu não conhecia. Estavam eles armados de clavinas e pistolas; e, bem que eu estivesse armado como eles, tendo somente comigo dois criados, e um só com que podia contar, as forças eram muito desiguais. O Ziedel decerto me não temia, podia impor-me a lei, bastava-lhe arremeter comigo para eu lhe entregar a bolsa, e a vida, se ele a quisesse. Saudou-me o gentil salteador com quanto respeito imaginar se pode, e confessou que desde alguns meses vagueava naquela floresta, à frente de uma quadrilha de bandidos, que viviam tão-somente de roubar os passageiros. juntou que se teria ele a si em conta de infame, se levemente me molestasse; e, para de todo me tranquilizar, deu-me um bilhete assinado pelo seu punho, isto é, uma espécie de passaporte escrito nas costas de uma carta, que era um sete de paus, pelo que ordenava aos demais sócios que me deixassem livremente passar. De feito, este passaporte foi-me utilíssimo. Meia hora antes de entrar em Azambuja, encontrei a quadrilha que me respeitou tanto como o chefe. Seriam uns quinze a vinte celerados que eu não conhecia, e três dos ciganos que eu vira na aldeia de Pernes, os quais me trataram com. muita consideração, alegando os pequenos favores que lhes eu tinha feito. Estes homens, embora os julgueis infamados por aquele grupo de salteadores, não quiseram, por mais diligências que fiz, aceitar duas moedas de ouro que lhes ofereci.“

Ora, da tribo destes salteadores é que saíra aquela Margarida do Monte, amante de D. João V, freira dominicana da Rosa, por amor de quem fora enforcado Garcia de Moura Teles, que revive na tradição, com o cognomento de Carvoeiro da Rosa.

CAPÍTULO XI

Não bastava Sara e a filha a divertirem o pensamento de Jorge, torvamente fixo e concentrado no suplício afrontoso do seu irmão. Pode ser que este sucesso o abalasse pouco, se a doença, ulcerando-lhe, digamos assim, o órgão da sensibilidade, o não predispusesse a ver na desgraça do seus irmãos e da sua mãe uma fatal estrela que sinistramente o perseguia a ele e perseguiria sua mulher e filha.

Esta pertinaz apreensão, debalde combatida com razões e carícias, desfechou em monomania que ameaçava completo desconcerto de juízo. Jorge, abraçado a Leonor, falava-lhe do funesto destino que ela havia de cumprir; e, se a mãe, lavada em lágrimas, o contradizia, apelando dos prognósticos dele para a bondade de Deus, Jorge, num tom de declamação trágica e suspeita de insânia, exclamava:

— E tu, Sara, se melhor morte não te colher cedo, morrerás como tua mãe e como teu pai! Morrerás na fogueira!... e a nossa filha morrerá como tu e como eles!...

Os dias passavam todos assim escuros. Não volveu um só de esperanças. A enfermidade acelerava-se tanto ao seu fatal remate, que já não havia na ciência nem na piedade respiradouro aos apertados corações das duas famílias que, em volta do enfermo, pareciam indistintas pela paixão das lágrimas. Jorge de Barros dizia a Simão de Sã que a Providência trouxe-ora da Covilhã para receber uma viúva e uma órfã, no desamparo de marido e pai. Explicava-lhe o estado dos seus minguadíssimos haveres, deplorando a quase pobreza em que deixava sua família. Lembrava-lhe expedientes quase impraticáveis para desenterrar o tesouro da Bemposta; e pedia-lhe que por conta das futuras riquezas da sua mulher, ou filha, adiantasse Simão de Sã o empréstimo necessário para a subsistência de ambas.

Com estas melancólicas disposições, e outras mais dolorosas práticas com a sua mulher, passaram os últimos dez dias de Jorge de Barros; até que a morte, tão esperada e todavia de surpresa para todos, lhe desatou a alma dos vínculos do corpo cortado de dores acerbas. A religião de Jorge resplandeceu nas últimas horas, senão de modo que todos creiam que aquela alma se juntou a Deus, pelo menos não há cabal argumento que nos induza tristemente a pensar que se perdeu. Jorge expirou sem o cerimonial católico, é isso verdade; mas também não aceitou o cerimonial judaico. Quando ele viu o rabino com dez testemunhas em volta do seu leito, acenou que se retirassem, e disse:

— A testemunha da minha consciência é Deus. O Senhor de bondade e de misericórdia me julgará sem ouvir o depoimento das testemunhas da minha confissão

Note:

Quando um hebreu entra em trabalhos de agonia, acercam-se-lhe do leito um rabino e dez testemunhas, que lhe ouvem a confissão dos pecados, feita alfabeticamente. Cada letra simboliza um pecado dos mais comuns; porém, se o moribundo tem espírito e boa inteligência para se exprimir sem os símbolos, confessa-se à maneira dos cristãos. O enfermo pede a Deus que lhe dê saúde, ou se amerceie da sua alma; e principalmente lhe pede que contrapese nas culpas as dores do trespasse como expiação. Os amigos do agonizante juntam-se na sinagoga a orar por ele, com um nome diverso do que ele tinha, a fim de mostrarem que é já outro homem pelo arrependimento. Os que permanecem na câmara águardam o instante da morte, e alguns beijam a face do defunto, costume antiquíssimo, como de Filon se infere, quando lastima que jacob não pudesse dar o derradeiro beijo no seu filho, inesperadamente morto. Esta usança, significativa de supremo adeus às almas queridas, passou aos pagãos, se havemos de chamar usança a um acto em que é tudo a ternura, a paixão e a dilacerante saudade.

.

Leonor foi anjo da esperança, como ajoelhada à beira da sepultura do pai, pedindo a sua mãe que por amor dela se não lançasse à mesma sepultura. Sete anos tinha então Leonor, encantadora criança a quem os pressagiadores vaticinavam desventuras, tirando os seus horóscopos de um ar triste e pensador com que a menina punha os olhos naquele céu triste como ela, e por largo espaço se detinha no seu enlevo, julgando que via o pai, ou Deus sabe se estas visões as permite Deus aos seus anjos deste mundo. Sara pôde, pois, levantar-se da sua prostração, aquecer o rosto quase frio de morte nos lábios da filha, e enxugar as lágrimas para poder ver o escabroso caminho por onde havia de atravessar guiando a sua orfãzinha pobre.

Os poucos teres, administrados por Simão de Sã, pareciam dar lucros bastantes para alimentação de Sara e Leonor, ou, mais exatamente, fingia o hebreu da Covilhã que a herança de Sara era mais valiosa do que pensava Jorge.

O comércio de Simão prosperara em Amesterdão mais desassombradamente que em Portugal. Isto lhe compensou a perda dos bens de raiz na pátria, logo confiscados pelo Santo Ofício, visto que a fuga do proprietário indiciava exuberantemente o judaísmo de Simão e dos seus parentes, também espoliados.

Leonor ia crescendo em graças de corpo e espírito. Sara obedecia à vontade do marido que, nas suas viagens e trato com sociedades diversíssimas da portuguesa, criara desejos e invejas de ver sua filha instruída varonilmente como tantas damas que se lhe depararam no estrangeiro, especialmente em Itália, nas famílias israelitas. Em Amesterdão abundavam matronas ilustradas, feitas na convivência da judia portuguesa Isabel Correia. Com estas estudava Leonor as prendas literárias, sem descurar das outras.

Decorreram cinco anos. A correspondência de Lourença Coutinho, com mais ou menos resguardo da espionagem da Inquisição, nunca descontinuou. Lourença, como mulher que muito padecera e pagara tributo grande de lágrimas à saudade de Jorge, seu livrador, inventava ditames consoladores para despenar o coração de Sara. O plano de casar o seu António com Leonor não sofrera a menor quebra. Queria ela que o consórcio se realizasse logo que o filho concluísse a formatura em Coimbra; mas este desejo era embaraçado pelo medo do perigo que Sara poderia ainda correr em Portugal.

Sara, rogada pela sua amiga, mandou-lhe o retrato de Leonor, o qual foi dado ao académico António José, nas férias do seu último ano de estudos.

António José da Silva, que assim se assinava o canonista, respondeu ao mimo com arrebatada e amorosa poesia, da qual sua mãe fez presente a Leonor, A menina respondeu com ingénua doçura aos versos em breves linhas de prosa, nem entusiastas nem esperançadas. Quase que a isso a compelira suavemente a mãe, referindo-lhe então o pacto jubiloso que ela com a mãe de António tinham feito, seis anos depois de ter nascido a prometida esposa. Leonor, com um sorriso de precoce gravidade, achava graça à brincadeira de duas mães felizes.

No fim do ano de 1726, recebeu Sara a notícia de ter morrido D. Francisca Pereira Teles, em casa dos primos Barros, depois de sete anos de rematada demência, com acessos de fúria aterradora. Constava, no dizer de Lourença Coutinho, que fora exemplar em horror a morte dela, porque a Providência justiceira lhe dera luz de razão nas suas últimas vinte e quatro horas para que ela visse a vida que deixava, e os méritos que levava à presença do juiz Supremo. E assim, acontecera o sair-lhe à porta da eternidade o ancião Luís Pereira, o pai, amaldiçoando-a; o marido tombado à sepultura por desgostos afrontosos que lhe ela dera; os filhos perdidos pela perdição moral da sua mãe, que lhes empeçonhara os instintos com a licenciosa vida que lhes favoneara. E, como então lhe dissessem que o seu filho Jorge tinha já morrido desde muito em Holanda, D. Francisca revelara um prazer feroz na certeza de que ele, como judeu que se fizera, estava no inferno irremediavelmente. Este hediondo espetáculo de uma agonia em arrancos, interpolados de esgares de júbilo, não havia quadro de horrores desta vida com que compará-lo! As piedosas exclamações dos frades não puderam com ela nada. As vinte e quatro horas lúcidas não lhas dera Deus para o arrependimento, se não para que ela entrasse noutro mundo com a memória do que tinha sido neste. Eram estas e outras as reflexões que o advogado João Mendes fazia a sua mulher, e ela comunicava à sua amiga.

No tocante aos haveres de D. Francisca Pereira Teles, a opinião de João Mendes da Silva era que Leonor, filha de Jorge, pouquíssimo ou nada poderia cobrar. O vínculo muito deteriorado, por morte de Garcia de Moura, passara ao primogénito da mulher, com quem não fazia vida. O segundo marido de D. Francisca senhoreara-se do restante da casa, sobrecarregando-a de ónus e dívidas, reais e fictícias, das quais era já coisa quase impraticável desembaraçar o património de Jorge de Barros. Por este lado, Sara não tinha que esperar de Portugal. Porém, dizia Lourença: “Ainda te fica o tesouro da Bemposta, porque eu não ouvi dizer nem levemente que alguém o descobrisse. No palácio residem os infantes Dom Francisco e Dom António, irmãos de Dom João V; e, como meu marido conhece o capelão-mor, algumas vezes lhe tem falado no tesouro, para o sondar, e o capelão diz que o tal tesouro era a guarda avançada da maluquice de Dona Francisca. Este capelão tem um filho que é almoxarife da Bemposta, e acredita que o tesouro existe, porque ouviu contar a história do anel. Andou ele algum tempo atrás do meu marido, querendo saber em que parte do mundo estavam os herdeiros de Jorge de Barros para se entender com eles a respeito do tal anel; mas meu marido, cautelosamente, lhe mentiu, dizendo que nunca ouvira falar em tal coisa; para que não fosse o homem revolver a quinta, e por arte do diabo encontrar o tesouro.

Olha que eu tenho esperanças de ainda te ver a ti possuidora das riquezas do teu marido, minha Sara. Mais tarde ou mais cedo, vens para Portugal. Isto depende de espreitar o ânimo da Inquisição. Meu marido volta que ainda é cedo; mas a minha saudade faz-me persuadir que o meu velho é muito timorato. Eu penso que podias estar em Lisboa com outro nome, enquanto esta sanha dos algozes não abranda. Dos teus inimigos já não vive nenhum. Não sei quem te iria acusar agora!

Mais receio me faz o meu António com as suas imprudências lá por Coimbra, segundo alguns estudantes hebreus me avisam. Vive muito ligado, quando está em Lisboa, com aquele Francisco Xavier, filho da minha amiga Isabel de quem já muitas vezes te falei. Este Francisco não é judeu nem cristão: diz ele que é filósofo, e não se esconde para cortar nos frades e na Inquisição. Quem viu-o tão devoto e crendeiro há oito anos! Acho que o respeitam por causa do conde de Tarouca, com quem ele está sempre; mas temo que o meu filho seja o responsável pelos delírio dele.

O Antoninho queixa-se da frieza da sua futura noiva, dizendo que a atmosfera da Holanda lhe nevou no coração. Quando ele cá veio a férias de Páscoa, eu, para ouvi-lo, disse-lhe que desconfiava da nenhuma inclinação da nossa Leonor para o matrimónio, à vista da glacial tibieza das suas cartas. O rapaz, ouvindo isto, deu dois passeios na sala, e recitou uma décima, que me fez rir, e aqui ta mando para que também te rias. Vê tu que graça tem o diacho do poeta:

Toda a mulher que não for
Inclinada ao matrimónio,
Há de levá-la o Demónio,
Se não a levar amor:
Trate logo de depor
O seu tirano desdenhar;
Porém, se não abrandar
O seu vigor, deve escolher
Ou casar por não morrer,
Ou morrer por não casar.
Note:

Esta décima está numa das óperas de António José da Silva.

Não te persuadas tu, Sara, que o meu António tem génio folgazão. Não fazes ideia das tristíssimas horas que o afastam da convivência da família! Fecha-se no seu quarto, encosta a face às mãos, e fica-se num torpor de que só eu consigo acordá-lo com muitas carícias. já uma vez me disse que tinha pressentimento de grandes infortúnios. de outra vez, pediu licença ao pai para sair de Portugal, embora tivesse de granjear a sua subsistência no estrangeiro exercitando algum baixo ofício. Mas (coisa singular!) tudo que escreve é alegre! Diz ele que nas horas de maior tristeza tira da imaginação as cenas mais engraçadas das comédias que tem já tecidas para lá para o futuro as aperfeiçoar.

O pai grita-lhe que estude Direito Canónico, e ele o que faz é ler e reler um grosso livro que ele chama o seu Plauto, e outro chamado Gil Vicente.

Que impertinências as minhas quando te falo neste meu filho tão querido! Desculpa os excessos do meu coração, Sara, porque és mãe. Pede comigo a Deus que os presságios dele se não realizem; e a tua inocente filha que peça também, porque o céu não pode ser surdo às orações da nossa linda Leonor. “

CAPÍTULO XII

Sara tinha vivas saudades de Lisboa, como se alguma hora de felicidade lhe tivesse reverdecido uma palmeira no deserto da sua árida juventude. ódio devera ela sentir à terra em que pai e mãe lhe queimaram as labaredas, ainda acesas para os seus desventurados irmãos. Simão de Sã não entendia as saudades de Sara; combatia-lhas para despersuadi-a de voltar a Portugal, enquanto o rodar do tempo não esmagasse os sanguinários fanáticos, recrudescidos num reinado em que os errados pressagiadores tinham previsto o melhoramento dos hebreus, inferindo a conjetura do alívio que eles experimentavam em todos os estados, tirante Espanha.

Sara parecia condescender; não cessava, porém, de recomendar a Lourença Coutinho que averiguasse o ânimo do Santo Ofício, e a chamasse logo que o pudesse fazer com segurança.

O doutor João Mendes da Silva, fiado no parecer do familiar do Santo Oficio Diogo de Barros e do contador-mor José de Oliveira e Sousa, disse a sua mulher que podia afoitamente chamar Sara, não para a companhia deles, mas para a dos Barros, que, sem embargo de ela pertencer à comunhão judaica, a recebiam como viúva de Jorge de Barros.

Simão de Sã, postas as coisas neste pé de segurança, não impugnou a saída de Sara, senão com as suas lágrimas e as da família que se tinha afeito a julgar que as duas senhoras eram suas e para todo o sempre. Fraca oposição era a das lágrimas ao fulgor atrativo daquela funesta estrela que o moribundo Jorge de Barros vira iluminando o destino dos seus!

Recebeu Sara a herança muito aumentada do seu marido, e saiu de Amesterdão entregue à família do cônsul espanhol na Haia, que retirava para Espanha, em embarcação que se dirigia a Sevilha. Simão de Sã, temeroso da Inquisição de Sevilha, a primeira na Península, o manancial de fogo que derivara por sobre o território das Espanhas, e cortara os mares até às índias, agourou mal da passagem de Sara por sobre aquele chão maldito ensopado de sangue de hebreus; não obstante, a viúva deu nenhum peso aos agouros de Simão, tendo como impossível o estorvar-lhe o passo o Santo Ofício numa terra em que ela não era conhecida, indo para além do mais em companhia de uma família cristã e muito considerada em Espanha.

O rosto do hebreu ressumbrava o desgosto profundo da quase ingratidão de Sara, que, por amor de Lourença Coutinho, podia separar-se sem lágrimas das pessoas que a tinham salvado nos dias da perseguição. Ao mesmo tempo, os olhos de Leonor afogavam-se em choros, protestando contra o procedimento inexplicável da sua mãe, que trocava uma existência segura e pacífica pelos sobressaltos de Portugal, donde cada hora estavam fugindo os hebreus com os seus haveres, a muito custo subtraídos à vigilância da Inquisição.

— Torna para nós, se a tua mãe se perder, e a ti te deixarem, minha filha — disse Simão em segredo a Leonor. — Volta para a família em cujo seio nasceste, menina. As minhas filhas acalentaram-te nos teus primeiros sonos. O teu berço foi o delas. Ama e obedece a tua mãe; mas, se ela te faltar, volta para nós.

Sara olhava com supersticioso medo para as lágrimas de Leonor, quando, no mar alto, a menina voltava o rosto amargurado para os nevoeiros em que lhe ficava Holanda e nós querida da sua infância. Falava-lhe a mãe do céu, das árvores, dos laranjais, do sol, das estrelas de Portugal. Leonor, numa dessas descrições das delícias da sua Lisboa, por amor do sol, das estrelas, dos laranjais, atalhou-a, dizendo:

— E as fogueiras, mãe?!

— Que horrível pergunta, minha filha!... Pelo amor de Deus, não me fales nisso!... Pois não viste a carta de Lourença?!

— Vi... e também, viu-a o senhor Simão — respondeu Leonor. — E a mãe bem sabe com que terror ele nos viu partir...

— Era a amizade que nos tinha, menina...

— Pois sim... mas... melhor fora... Sara precisava de que alguém lhe desse alento para não se deixar vencer do medo da filha. A coragem, com que se despedira, ia-lhe minguando. Já o arrependimento começava a dar-lhe tratos. A si mesma se perguntava ela, com feminil versatilidade, como pudera sacrificar a paz e tal qual satisfação que tinha em Holanda, a um pueril prazer de voltar à terra onde apenas tinha uma amiga, pela qual deixava tantas e tão provadas em grandes aflições!

E Leonor continuava a chorar silenciosa. A família espanhola julgava mais de si que das tristezas de Sara e da filha. Bem que tolerantes, a esposa e mais damas do cônsul castelhano olhavam de soslaio para as judias, cuja companhia tinham aceitado, porque o cônsul era muito obrigado a Simão de Sã e outros hebreus portugueses que, ao invés do seu costume, lhe tinham emprestado dinheiro sem onzena. Cá, porém, no mar alto, os cuidados das damas enjoadas, com as israelitas portuguesas, podiam sem injúria igualar-se a uma completa indiferença, como se receassem saltar do mesmo bote, no cais de Sevilha, acamaradadas com gente de tal raça.

A bordo do navio, viajava um mercador de Valhadolide, homem de meia-idade, que desde o embarque fitou Leonor com olhos requebrados, e não perdia azo de lhe dizer finezas. De Valhadolide era também a família do cônsul.

Sara, bem que notasse o desgosto com que a sua filha escutava forçada as galanices algum tanto serôdias do espanhol, conversava com ele por ser o único passageiro que de melhor sombra se esmerava em obsequiá-la, com os olhos sempre envesgados à sombria e formosa menina. O espanhol, que os seus patrícios consideravam muito, ofereceu a Sara o seu valimento, em país onde realmente lhe era necessário, visto que ela era cristã-nova, segundo ouvira dizer a um familiar do cônsul. Aqui viu a hebreia quão mal recomendada fora a uma gente que a denunciava e punha em risco de ser presa em Espanha. Aos sustos de Sara acudiu o mercador com a promessa da sua eficaz proteção.

A viúva, convencida da insinuante bondade dos quarenta ou mais anos do seu companheiro de viagem, relatou o essencial da sua vida, com indiscreta lhaneza. Péssima qualidade têm as boas almas: é serem comunicativas, abertas, dadas com infantil expansão. O espanhol ouviu com interesse a história de cuja revelação Sara se arrependeu, logo que a filha lhe disse:

— Deus queira que a mãe se não arrependa de falar tão sinceramente com uma pessoa desconhecida!... Não sei que mal o coração me diz deste homem!...

— Isso é injustiça, filha!... — atalhou Sara. — Pois nós há de desconfiar de quem nos trata com tanta cortesia, e nos oferece os seus serviços em terra estranha...

— Toda a terra é estranha para nós, minha mãe... em toda a parte nos cercam inimigos, desde que saímos do amparo do senhor Simão.

— És visionária, Leonor! Fazes-me medo!... já estou arrependida...

Entretanto, o negociante de Valhadolide não cessava de galantear Leonor que, temendo o despeito do pertinaz requestador, lhe recebia menos severamente as graças e delicadezas enfadonhas.

Aportaram a Sevilha. Daqui, tencionava Sara, dirigida por pessoa a quem Simão de Sá a recomendara, seguir por terra para Portugal. O mercador, a quem o tempo ia escasseando segundo o intento não desonesto do seu afeto a Leonor, declarou-se, pedindo à mãe a mão da filha. Sara respondeu que o marido dela lhe fora destinado já antes de ter nascido.

O espanhol contraditou esta fútil objeção inventariando as suas riquezas e poderio, não sem deixar transparecer o despeito em que o desprezo de tal oferecimento poderia deixá-lo. Leonor instava com a sua mãe a pronta saída de Sevilha, principalmente depois que os cristãos-novos a quem vieram recomendadas lhes incutiram receios de alguma vilania vingativa de tal homem.

Já aterrada e desnorteada, Sara não sabia que fazer. Faleceu-lhe o ânimo ainda antes de se avistar com a sombra da Inquisição. Os hebreus em cuja casa elas se hospedaram, assustados do risco em que tais hóspedes poderiam pôr o seu sossego, estavam em ânsias de os despedirem. Sara foi ter com a família do cônsul, pedindo-lhe auxílio. A família condoída ofereceu-lhes levá-las consigo para Valhadolide, e de lá enviarem-nas cautelosamente para Portugal. É de supor que o mercador opulento chamasse ao seu partido a família do cônsul; porque muito espantadas as senhoras censuravam Leonor por não aceitar tão rico marido, que o mais auspicioso dos acasos lhe deparava.

Nesta desordem de coisas, e aflitivas vacilações de Sara, dizia Leonor:

— Veja, minha mãe, a paz que deixamos, e a inquietação que nos atormenta!

Sara, como se visse desamparada de melhor conselho, abraçou a cavilosa proteção das damas espanholas, e seguiu com elas para Valhadolide.

CAPÍTULO XIII

Recolhidas à casa da família, que se mostrava agora mais desvelada, Sara, passados alguns dias, pediu que lhe deixassem seguir para Portugal, visto que a sua filha não aceitava as propostas do mercador. Já a paixão do homem degenerara em rancorosa vingança. As hospedeiras damas abriram-se com Sara, agourando-lhe mal da sua rejeição. O pretendente afrontado pela recusa, segundo elas afirmaram, era irmão de um conselheiro do Santo Ofício; e mal delas, se a vingança respirasse pela denúncia!

A atribulada viúva nem já destas mulheres se fiava para lhes comunicar o seu plano de fuga. Não obstante, aprestava-se para fugir, até ganhar alguma povoação dos subúrbios, donde pudesse comodamente seguir jornada por caminhos desfrequentados.

Não podiam fazer-se em segredo estes aprestos: faltava à aflita Sara a precisa serenidade para iludir a família que a espiava, sem perder lanço de tentar reduzir a repugnância de Leonor. O espanhol recebeu aviso dos intentos de Sara e da última deliberação da filha, a qual respondera:

— Que aceitaria de melhor vontade morrer queimada que viver casada com tal homem.

A mãe censurou-lhe a desabrida resposta, quando convinha dissimular. Leonor respondeu:

— Já se me não dá de acabar, porque perdi as esperanças de ter um dia de sossego. Se não for aqui, será em Portugal... Ninguém foge à sua estrela...

A desesperação, efeito do arrependimento já sem remédio, levou de impetuoso impulso a viúva de Jorge de Barros a fugir de Valhadolide numa entreaberta, quando o maior número das pessoas da casa estava na missa. As duas fugitivas levavam consigo apenas o dinheiro abundante que Simão de Sã lhes dera, a título de herança de Jorge.

O passo era louco. O mercador não dava folga às suas espias. A formosura de Leonor era já notada para passar desapercebida sob a mantilha sevilhana. As duas mulheres, denunciando-se pela ansiedade com que procuravam um guia sem determinarem a direção, não reparavam em dois quadrilheiros que as seguiam de perto. Pararam à porta de uma igreja, donde saía muito povo, no intento de se entremeterem na multidão, e saírem por alguma das portas da cidade. O povo reparava nelas, e mais ainda nos conhecidos águazis que as não perdiam de vista, e só com o reparo as delatavam às turbas. Leonor tremia aconchegada da sua mãe, e murmurava:

— Aqueles dois homens vêm prender-nos... Um mancebo, que se avizinhara delas, como ouvisse vozes portuguesas, perguntou a Sara:

— Se têm medo da Inquisição, fujam, que as seguem os esbirros... São portuguesas?

— Sim, senhor — disse Sara ao mancebo que fizera a pergunta em português. — Para onde fugiremos?

— Entrem na igreja, que eu vou ver se lhes dou escape por uma porta da sacristia.

Quando elas rompiam o concurso do povo contra a porta da igreja, os familiares, perante quem se desimpedia espontaneamente a passagem, tomaram-lhes o passo, e ordenaram-lhes que os seguissem. O português disse entre si: “É tarde... estão perdidas...“

As presas puseram nele os olhos lacrimosos, como se esperassem a salvação do jovem que as quisera salvar.

O povo aglomerava-se em redor delas: os esbirros acenaram aos alabardeiros de um corpo de guarda, que desempeçaram o trânsito. No entretanto, o jovem português correu a casa do alcaide, e anunciou-se com o nome Francisco Xavier de Oliveira.

Era o filho de D. Isabel Neves, amiga de Lourença Coutinho. Noutro lugar se dirá o que levara a Valhadolide o amigo de António José da Silva.

O alcaide recebeu sem detença o filho do contador-mor dos Contos de Portugal, seu antigo amigo.

— Então? — perguntou o alcaide — , tornou-lhe a fugir a endiabrada cigana?

— Não, senhor: outra razão mais séria me faz importuná-lo. Acabam de ser presas duas portuguesas por quadrilheiros da infame Inquisição.

— Fale baixo, seu doido! — atalhou o alcaide. — São duas senhoras, que me parecem ser mãe e filha.

— Judias ou feiticeiras?

— Não sei. São duas senhoras, e uma delas tem a formosura dos serafins!

— Então que quer o senhor? Que eu as vá arrancar dentre os ferros? — perguntou o alcaide sorrindo.

— Bem sei que não pode.

— Ainda bem que sabe.

— Quero simplesmente que saiba quem elas são.

— Isso pode ser: volte daqui a duas horas.

O alcaide entrou no Tribunal do Santo Oficio, antes que o inquisidor entrasse, Como pessoa de muita confiança entre os oficiais da casa, pôde facilmente aproximar-se das presas, que tinham sido conduzidas a uma antessala, onde era costume esperarem os réus que os chamassem ao primeiro interrogatório.

Leonor levantou-se à chegada do alcaide, cuja posição social se revelava no aprumo mesurado da andadura. Sara quis erguer-se; porém o tremor das pernas, e convulsão de todo corpo, não lho consentiram. O que ela pôde foi pôr as mãos.

— Sentem-se, senhoras — disse o alcaide — , que eu não sou inquisidor. Venho aqui saber quem são, porque há pessoa que se interessa pelas senhoras, e pode em Portugal ser-lhes muito prestadio. Não me enganem que se podem prejudicar.

— Minha mãe — disse Leonor — é Sara de Carvalho, e eu sou Leonor Maria de Carvalho.

— Donde são?

— Eu nasci em Lisboa — disse Sara — e a minha filha nasceu também em Portugal, na vila da Covilhã. À pessoa, que se interessa na salvação destas desamparadas mulheres, diga Vossa Senhoria que eu sou a viúva de Jorge de Barros, neto do contador-mor dos Contos do Reino Luís Pereira de Barros.

— Tá! — exclamou o espanhol — , que eu já ouvi falar nas senhoras ao cavalheiro que me cá mandou!... Conhecem Francisco Xavier de Oliveira?

— De Oliveira? — clamou Sara — , o filho da senhora Dona Isabel, mulher do contador-mor?...

— É esse mesmo.

— Oh!, senhor!... diga-lhe que uma das presas é a prometida noiva e ainda parenta do seu amigo António José da Silva.. .

— Que está preso nos cárceres da Inquisição em Lisboa...

— Preso!... desde quando? — perguntou Leonor.

— Há dois meses. Sei-o do seu amigo Xavier de Oliveira... Mas salva-se... Podem ter a certeza de que se salva. Agora, tratemos de ver o destino que as senhoras têm. Senhora Sara... dou-lhe de conselho que use doutro nome... Nunca foi batizada? Ouvi dizer que sim...

— Fui... e chamaram-me Maria.

— Pois chame-se Maria... Adeus que são horas. Conte com alguns amigos.

Francisco Xavier de Oliveira, assim que soube os nomes das presas, apressou a jornada para Lisboa, no propósito de fazer que o Santo Ofício requisitasse para ali as cristãos-novas como portuguesas.

O interrogatório começou ao fim da tarde. Até essa hora, os familiares da Inquisição andaram colhendo informes das presas, já por intermédio das senhoras a quem elas tinham sido recomendadas, já diretamente do mercador, que as denunciara. Nas bagagens das judias não aparecera documento que as culpasse: graças aos cuidados de Simão de Sã, que as não deixara sair com o mínimo vestígio de hebraizantes, rasgando quantas cartas de Lourença Coutinho a indiscreta Sara entesourava.

O interrogatório foi breve. A viúva balbuciava respostas cortadas de soluços. Leonor respondia com assombrosa presença, baixando os olhos sobre as mãos, que cruzara no alto do selo.

Disse quem era seu pai, donde vinha, e para onde ia. Às perguntas concementes à religião que seguia, disse que amava Deus como criador, e as criaturas inteligentes como seus irmãos, filhos do mesmo Deus.

Sobre as fórmulas exteriores das suas crenças, não respondeu. Apenas disse que recebera o sacramento do batismo, porque seu pai era cristã o e a sua mãe batizada. Como as respostas não satisfizessem cabalmente às perguntas, o inquisidor insistiu sobre saber se ela e a sua mãe seguiam o rito judaico. Leonor, após alguns instantes, respondeu:

— Nem esse nem outro. O meu pai mandava-nos que amássemos Deus e o próximo, e dizia-nos que a mais divina religião era a mais ardente caridade.

Anoiteceu.

O inquisidor saiu, ordenando que conservassem juntas as presas, até nova ordem num dos quartos reservados aos presos por meras suspeitas.

Quando chegou a casa, encontrou o alcaide que o esperava sentado ao fogão da sua ilustríssima reverendíssima.

O alcaide, que havia passado duas horas em casa do cônsul vindo de Holanda, arrancou às senhoras o segredo da paixão vingativa do mercador. As damas, remordidas na consciência, contaram o sucesso exprobrando o proceder do denunciante, e arguindo-se a si mesmas de quase coniventes naquela trama vil, por até certo ponto entenderem que Leonor faria um excelente casamento.

Ora, o alcaide foi contar esta história ao inquisidor, que confirmou ter recebido a denúncia de um irmão do negociante, conselheiro do Santo Ofício e cónego da sé.

— Se Vossa Senhoria — disse o inquisidor — ouvisse as respostas da filha e lhe visse o rosto, meu alcaide, desculpava a protérvia do denunciante! Que bela e que discreta!... Ora bem, não será o Santo Oficio instrumento das vinganças do velho alucinado; mas há de fazer-se o que for de justiça.

— Justiça, é mandar as desgraçadas para Portugal — disse o alcaide.

— Deixe-as estar, que não lhes há de faltar alimento nem luz. São hoje cinco de Outubro... No dia vinte e seis de Janeiro celebra-se auto público da fé. Sairão ambas reconciliadas nesse dia, se até então não aparecerem provas agravantes. Está Vossa Senhoria autorizado a poder-lho revelar, visto que sem minha autorização já por lá andou. Foi muito notória a prisão: não tenho remédio senão fazer o que faço.

— Quatro meses! — exclamou o alcaide.

— Parece que se espanta!? — disse o inquisidor, sorrindo. No dia seguinte, Sara e Leonor recebiam a boa nova por uma carta do alcaide. Logo depois receberam as suas bagagens, e licença para mandarem comprar os alimentos que lhes aprouvesse.

Divulgou-se a infâmia do denunciante. Era o alcaide o propalador. A conjuração formada contra ele deu de si um perseguirem-no com chufas e apodos tão pungentes que o homem, ao fim de quinze dias, saiu de Valhadolide a esconder a sua ignomínia. O alcaide, porém, não era sujeito que se contentasse com o desterro do vilão. Descobriu-o no esconderijo de uma quinta a duas léguas distante da cidade. Lá mesmo lhe fez zumbir os apupos do gentio desbragado a quem ele estipendiava e largo tempo sustentou na sua missão justiceira que disparou em desconcertarem as faculdades inteligentes do infausto refugiado. O mercador, passados anos, acabou sua vida numa casa de orates. Das perversas qualidades que tivera uma só sobrevivera à perda da razão deste homem, a que eu não dei nome porque lho não encontrei nos apontamentos subsidiários desta narrativa. A perversidade sobrevivente foi lembrar-se ele até à última hora da judia, que o sandeu sanguinário esperava sempre ver na fogueira.

No auto público da fé celebrado na Igreja de S. Pedro da cidade de Valhadolide, em vinte e seis de Janeiro de 1727 saíram, livres e “reconciliadas por culpas de judaísmo,” dizia a rubrica da lista, Maria de Carvalho, natural de Lisboa, de idade de quarenta e sete anos, e Leonor Maria de Carvalho, natural da Covilhã, de Portugal, de idade de catorze anos.

À saída do cárcere as duas senhoras encontraram, como companheiros para Portugal, o velho Diogo de Barros, tio de Jorge, e Francisco Xavier de Oliveira, o galhardo mancebo que as quisera salvar.

— E o nosso amigo António José da Silva? — perguntou a amiga de Lourença Coutinho.

— Está livre — disse Francisco Xavier de Oliveira. — Apenas lhe quebraram os dedos na tortura.

Parte Terceira

CAPÍTULO I

Concluiu formatura em cânones António José da Silva por 1726. O seu pai, o eminente jurisconsulto João Mendes da Silva, contava setenta anos feitos, e vergava ao peso da idade e da muita e principal clientela que granjeara com o seu talento jurídico e a sua estremada honradez. Chamou, por isso, o filho a coadjuvá-lo para, mais tarde, o ficar substituindo.

Forçando o engulho e repugnância que os autos lhe faziam, o recente bacharel abancou no escritório do seu pai, coagindo o espírito inquieto a prestar atenção às enfadosas exposições consultivas, e às áridas respostas do velho, que era um poço nas Institutas de Justiniano e Decretais.

As três horas, que António José sacrificava de cada dia à prática forense, eram-lhe remuneradas com a plena liberdade das outras. O uso, que ele fazia do seu tempo, conquanto desagradasse ao pai, não lhe era contrariado. Escrevia comédias, vestia de melhor linguagem umas que tinha urdido no mais verde dos anos, e arquitetava outras para refazer mais tarde. Propensão aprazível para estudos tinha uma só: era o teatro, não já modelado pela escola francesa, que então dava ao mundo policiado as regras dramáticas; mas acostado algum tanto à feição cómica de Gil Vicente, com as inverosímeis peripécias de Lope de Vega e dos filiados à grande e ainda vivedoura escola castelhana. Ponderar e discriminar a índole literária de António José, cognominado o Judeu, seria impertinência nesta narrativa, onde raro leitor antepõe o lucro da instrução ao deleite da curiosidade.

A seu tempo, farei conhecidos, de relance, alguns passos da breve carreira literária do filho de Lourença Coutinho. Então julgará o leitor do merecimento dele, sem que o ensinem a destrinçar sistemas, escolas, métodos, e centenares de subtilezas impróprias deste escrito, e aliás importantes a quem estuda e de muito lustroso trato para quem as professa competentemente.

É já sabido que o mais familiar amigo de António José da Silva era, desde os alvores da juventude, Francisco Xavier de Oliveira, o filho da dileta amiga de Lourença Coutinho.

Silva tinha vinte e um anos quando se formou, e Oliveira corria então nos dezanove.

O bacharel ficou maravilhado, quando de volta de Coimbra encontrou o seu amigo, não mais desmoralizado que os mancebos da sua geração, mas muitíssimo mais desempoado que todos, em matérias de crença religiosa. Era muito neste espanto o caso de ter sido Francisco Xavier educado pelo devotíssimo frei Francisco do Menino Jesus, tio dele, e muito a miúdo confessado com o oratoriano Inácio Ferreira, e com o cónego de Santo Agostinho padre Lourenço Justiniano, como Lourença Coutinho referia numa das cartas a Sara, escritas treze anos antes.

Desde os dezasseis anos, o filho do contador-mor José de Oliveira revelou imperiosa vocação para a vida dissoluta; sem embargo, a piedade, os acessos de fervor cristão, entremetiam-se nas extravagâncias do rapaz. Ainda então Francisco Xavier se confessava todos os meses, aproveitava quantos jubileus a magnânima Santa Sé proporcionava à salvação das almas, e não consentia a António José a mínima galhofa das coisas venerabundas da Igreja Católica Apostólica Romana.

Nesse tempo ainda, época do seu primeiro namoro, deu ele um irrefragável testemunho de crendeira piedade. Contava ele, cinquenta anos depois, que tinha, naquele tempo juvenil, um oratório com umas vinte imagens de santos da sua particular estima. Entre todos, os mais rogados e importunados eram Santo António e S. Gonçalo de Amarante. Uma vez, lhes pediu que tocassem o coração de uma beleza rebelde. “Os dois santos”, diz ele, “provavelmente ocupados em negócio de mais importância, não fizeram caso dos meus requerimentos. Despeitado com o menospreço, atei-os um ao outro, e pulos fora do santuário, desterrando-os para debaixo da minha cama. Como, porém, os não sensibilizasse com o mau tratamento, visto que a minha deidade continuava nos seus rigores, condenei-os a descerem ao poço; e logo os fui baixando com ameaças de afogá-los, se me não fizessem o favor. Aconteceu então que a rapariga me respondeu a muitas cartas, que eu lhe tinha escrito, e assim salvou as duas imagens do naufrágio; e eu acreditei que devia aos dois santos a minha fortuna.“

Outro sinal da sua razoável piedade: Francisco Xavier embarcou num bote para ir à Póvoa, cinco léguas distante de Lisboa, à margem do Tejo. Surpreendeu-o uma borrasca, em frente de Sacavém. O barco estava já em apuros de mostrar a quilha. Francisco ajoelha e invoca a milagrosa Senhora da Penha. Quebra o vento, e consegue o barco abicar a terra. Assim que chegou a Lisboa, o jovem foi à Penha de França com toda a parentela agradecer à Senhora o milagre. Fez dizer muitas missas em ação de graças. Deu dinheiro aos frades da casa, e pendurou um painel que representava o sucesso. “Este painel”, diz ele, e nós trasladamos as palavras do devoto para que algum curioso possa ainda ver na Capela da Senhora da Penha o ex-voto do Cavalheiro de Oliveira, “este painel foi pendurado no muro da igreja, e creio que ainda lá estará.“

Estes e outros casos abonavam o espanto de António José da Silva, quando, na volta de Coimbra, lhe perguntava:

— Que é feito da tua fé, meu Francisco?

Pergunta-me antes o que fez a minha razão, iluminada pelo estudo — respondia Francisco Xavier.

— Pois que te disse a tua razão a respeito daquele painel que eu te vi levar à igreja da Penha? Lembras-te que me chamaste ímpio porque eu me ri do caso?... Como foi que a tua razão te falou?

— Disse-me que os cristãos imitavam os idólatras nestes votos de painéis e quejandas oferendas. É a mesma história do templo de Apolo na ilha de Nânfio, erigido por Jasão, depois que os argonautas se salvaram de uma tempestade, ao recolherem-se de Colcos. É a mesma usança dos ex-votos no templo de Hierápolis, o mais milagroso dos deuses siríacos.

É a mesma necedade dos enfermos curados que penduravam painéis no templo de Esculápio. já Horácio falou desta costumeira, como sabes da ode quinta:

... Me tabula sacer
Votivaparies indicat humida
Suspendisse potenti
Vestimenta maris Deo.

Tíbulo também costumava, como eu, recorrer à deusa em cujo templo se penduravam painéis.

— Sabes tu — continuou o jovem Oliveira — o que respondeu o filósofo Diágoras a um sujeito?

— Nada, não sei.

— O sujeito, apontando-lhe para muitos painéis de naufrágios, à imitação do meu, disse-lhe: “Presumes que os deuses não fazem caso dos negócios da humanidade. Ora não vês tu este grande número de painéis, provando que tanta gente se salvou de naufragar, em virtude dos votos feitos aos deuses?” — ”Sim”, respondeu Diágoras, “vejo isso; mas também vejo que os afogados não se fizeram pintar. “

“A sagrada parede de que pende o meu votado painel, testemunha que eu ali pendurei as minhas vestes húmidas, em honra do possante Deus do mar.“

— Mas... — redarguiu o bacharel Silva — a que se deve a transformação moral em que te encontro? Quando começaram as tuas dúvidas sobre a fé cega do teu tio frei Francisco do Menino Jesus?

— Eu te conto. Um dia fui de peregrinação a Nossa Senhora do Cabo com o padre António Gomes, e com o doutor José Antunes Cardoso. O padre gostava igualmente do bom e do mau vinho; porém, um vinho, que lá lhe deram para dizer a missa, era tão mau que o padre, quando estava a desparamentar-se na sacristia, soltou estas coléricas palavras: “O vinho do cálix tinha um sabor de todos os diabos! Meus amigos, recomendo-vos que não bebais vinho ao jantar, a não vos darem algum que não seja daquele que eu consagrei.” Aqui tens tu como e quando começaram as minhas dúvidas sobre o dogma da transubstanciação. Parece incrível que tão pouco ar levantasse tamanha tempestade no meu espírito! Entrei a pensar como aquele vinho, que era vinagre, se transformara em sangue de Cristo! Confessei-me disto, porque me atormentavam os escrúpulos. Os confessores, todos à uma, me disseram que o demónio entrara em tentação comigo. Quando comungava, assaltava-me a suspeita de que eu engolia um bocado de obreia! Depois, quando fechava as cartas, punha-me a olhar para as obreias, e a dizer: “Quanto vos lamento, minhas pobres obreias! Um padre transformar-vos-ia em Deus, e vos tomaria objetos de adoração universal; ao passo que eu vos molho de saliva, e vos obrigo a fechar cartas! Sois todas da mesma espécie e da mesma farinha; porém, o vosso destino varia até ao infinito!... etecetera“ Destes desalentos, deste horrível descrer, ainda eu pude algum tempo arrancar à minha alma, e submetê-la às consolações reanimadoras dos padres que me ouviam e combatiam as dúvidas. Lia Mallebranche, que terminantemente me dizia: “É preciso crer no dogma da transubstanciação, sem tentar entendê-lo.” E eu fia muito Mallebranche para cada vez entender menos o dogma e o autor. Enfim, meu caro António José, para te não enfadar mais, basta dizer-te que, perdida a fé num dogma, perdi-a em todos. Depois, vieram aqueles terríveis combates com a hipocrisia, em que saí mortalmente ferido no coração. A morte de Catarina... bem te lembras... há anos...

O leitor precisa saber que morte foi esta de Catarina. Será propriamente Francisco Xavier de Oliveira quem lha refira: “O conde de Povolide e mais dois familiares do Santo Ofício quase me arrancaram dos braços uma amante que eu amava em extremo. Era uma rapariga de vinte anos, mais simpática do que bela, e tão espirituosa quanto bem feita. Era uma cristã papista, exagerada nas suas devoções como eu o tinha sido. Ia à missa, ao confessionário e à comunhão; orava à Virgem e aos santos; e as almas do purgatório eram as suas advogadas prediletas. Comia de tudo, gostava de presunto, e muito de chouriças de porco. Numa palavra, a rapariga guardava o domingo, nunca abrira a Bíblia; e bem longe de saber o que era sabat e judeus, ignorava que tivesse existido neste mundo um Moisés. Como havia de saber Catarina que Moisés legislara? Ora, tudo isto, junto ao amor que eu lhe tinha, fez que eu despropositasse em brados contra semelhante prisão. Impuseram-me silêncio, e os meus amigos trataram de me vexar por me verem apaixonado por uma judia encarcerada no Santo Ofício. Dezoito meses depois, fez-se auto-de-fé em que a rapariga devia aparecer, e ouvir ler sua sentença publicamente. Claro é que não faltei ao concurso. Qual foi, porém, meu espanto, quando ouvi a presa confessar que tinha guardado inviolavelmente o sabat, que não havia comido carne de porco, e que se abstinha de certas comidas, que eu lhe vira comer um trilhão de vezes com furioso apetite! A minha surpresa redobrou ao ouvir ler a sentença, que a mandava queimar, porque tinha sido diminuta na confissão, quer dizer, que não tinha podido achar ou adivinhar os nomes das falsas testemunhas que depuseram contra ela!... Às dez horas da noite, como a condenada fosse entregue ao braço secular, conduziram-na à Relação, cujos ministros até hoje usaram sempre a covardia de confirmar cegamente as sentenças todas da Inquisição, sem que peçam ou revejam os processos dos condenados. Como aqui me era permitido falar à desgraçada, perguntei-lhe como pudera ela mentir tanto para provavelmente salvar a vida, e se deixava morrer por não querer denunciar os cúmplices, ou antes os acusadores. Respondeu-me: “Sendo os meus acusadores falsas testemunhas, que eu nunca vi talvez, era-me impossível nomeá-los. Deus me é testemunha de que morro inocente; tu melhor que ninguém sabes que eu sou cristã, e todo o mundo o ficará sabendo pelo formal desmentido que dou agora a tudo que confessei na Inquisição, a respeito do meu judaísmo, protestando diante deste juiz que jamais professei fé que não fosse a de Jesus Cristo, e na sua santa religião quero morrer. “

Pouco depois, entraram os ministros a interrogá-la. Publicamente sustentou que morria na lei de Jesus Cristo, nem soubera nunca da existência doutra. Esta confissão não a salvava de morrer, e assaz o sabia ela. Não obstante, insistiu neste sentimento até ao derradeiro momento da sua vida, que lhe foi tirada da meia-noite para uma hora, sendo estrangulada por mão do carrasco, e logo lhe levaram o cadáver para ser queimado no local em Lisboa destinado a semelhantes execuções.”

Continua o Cavalheiro de Oliveira, com a serenidade dolorosa em que a desgraça de longos anos lhe tinha congelado o coração:

“Bem que eu naquele tempo respeitasse o Tribunal da Inquisição, nem por isso deixei de me expor a toda a ferocidade do seus ministros, bradando altamente contra a barbaridade do seu proceder. Sejam-me testemunhas dois inquisidores ainda vivos, os senhores Silva e Gomes, a quem eu fiz severas censuras, e os quais, como bons amigos, me aconselharam silêncio, figurando-me o perigo a que a minha imprudência me expunha. Segui o conselho acompanhado das ameaças daqueles senhores. Calei meus queixumes; todavia, os meus amigos sabem que, desde aquele dia, formei péssima opinião do processar deste maldito Santo Oficio. “

CAPÍTULO II

— Outra coisa? — perguntou António José. — Tu eras sebastianista, há um ano. Esperas ainda o rei?

— Não me fales nisso, que é a minha grande vergonha! Imaginas tu que amizades perdi de parentes, e graves amigos que endeusavam o meu talento, e lhe queimavam incensos no altar do Bandarra? Minha mãe ainda hoje chora, quando se lembra que eu já não sou sebastianista! E eu choro, quando me lembro que me deixei seduzir por aquele soez franciscano Vicente Duarte, cujas histórias tua mãe ouvia com uma fingida dor de dentes para que não vissem o ímpio riso!

— Então agora em que crês? — perguntou o hebreu.

— Na vinda do Messias, decerto não — respondeu com chocarreiro riso Francisco Xavier. — E tu esperas?

— Espero que não venha confundir-se com os patifes deste globo; mas que ele não veio é certo.

— De acordo contigo. Não veio, com o nome que lhe deram. já tinha vindo, e chamava-se Sócrates; voltou a vir, e chamou-se Lutero.

— Estás protestante?

— Sim!, protesto contra todos os embusteiros e hipócritas; protesto, em nome de Deus, contra todos os que lhe infamam o nome.

— Isso é justo. E de amores, como te corre a vida? Quem amas? Dura ainda o reinado da Joana Vitorina? A cigana decerto deslumbrou a memória da pobre estrangulada da Inquisição, e daquela Amónia Clara...?

Note:

Os amores de Amónia Clara devem ser contados por ele: D. António Manuel, irmão do conde de Vila Flor possuiu, três anos completos, a encantadora Antónia, Um transporte de ciúme indispô-los a ponto de ser despedida a formosa manceba por D. António. Caiu-me em sorte; e, posto que D. António se arrependesse de a ter assim tratado, o mal já não tinha remédio. Antoninha não quis mais ouvir falar dele, e ele não ousava nem podia reclamar um bem, cujo legitimo possuidor eu era, porque lha não tirei por força ou velhacaria. Antónia, como fosse um dia confessar-se ao cura da sua freguesia, o confessor propôs-lhe que me abandonasse, e consentisse em fazer as pazes com D. António. A rapariga extremamente magoada com tal conselho no confessionário, negou-se a aceitá-lo, e de volta revelou-me tudo. Custou-me a crê-la, porque o confessor era pessoa muito do meu conhecimento, Além de que suspeitei que Amónia me estava encarecendo os favores, querendo mostrar-me que por amor de mim desprezava um piegas suspiroso da estofa e méritos de D. António. Sem embargo, como eu sabia que este homem era particular amigo do cura dos Anjos, quis convencer-me da verdade da solicitação que a rapariga com juramento me certificava. Neste propósito, mandei-a, passados dias, procurar o padre, e dizer-lhe, que estando de mal comigo, e refletindo no que lhe convinha, resolvera aceitar o seu conselho, e voltar para D. António e por isso pedia ao cura que fosse a casa dela ao outro dia entre dez e onze horas da manhã, asseverando-lhe que eu, a tal hora, estava no Tribunal. O pobre cura caiu na esparrela, chegou à hora combinada, e declarou a Antoninha qual era a força da paixão que D. António por ela conservava, acrescentando que ninguém melhor do que ele a merecia, e dali se ia logo a levar-lhe a boa e inesperada nova. Nisto, saí eu de um esconderijo, e disse-lhe que para ir mais depressa, saltasse pela janela, o infame recoveiro! Um raio, se caísse sobre o padre, decerto o mataria; mas atarantá-lo tanto como ele ficou decerto não. Ajoelhou-se-me aos pés, pedindo-me em nome de Jesus Cristo e da sua Santíssima Mãe que lhe perdoasse o ultraje e desgosto que me ele queria dar. Eu estava iradíssimo, e resolvera castigá-lo deveras, porque estava na minha mão perdê-lo. Não obstante, deixei-o; e disso me não arrependo. Quatro anos depois fez-me uma grosseria na sua igreja, ofendeu-me, e deu azo a que eu contasse o caso a dois amigos dele: logo que o soube, tratou de reconciliar-se comigo. Desprezei-o então, e ainda o desprezo se está vivo, muito mais pela sua ingratidão que por os seus outros desregramentos.“

— A Joana é fatal! — disse Oliveira. — Fatal como todas as da sua tribo. Traz-me o coração debaixo dos pés. É a mais vergonhosa e mais doce escravidão da minha vida. A minha mãe chora muito por mim; porém as lágrimas que eu tenho chorado pela cigana... são incomparavelmente mais. Enche-me o peito de brasas a maldita com os ciúmes que me faz!

— Olha lá... — atalhou António José. — Como foi aquela passagem de expulsares o diabo do corpo da mãe dela?... Falaram-me nisso em Coimbra... Crês, ao menos, que o diabo entra nos corpos?

— Entra, e sai facilmente pelo processo que eu empreguei na mãe de Joana. Aí vai a receita. Corria como coisa averiguada que a velha estava incubada de demónio. Os trejeitos e destemperos, que ela fazia em casa, eram pavorosos. Não me deixava parar meia hora sossegado com a filha. De repente, começava a escumar, a rolar os olhos, a ranger com os dentes, e a caretear visagens de tamanho horror, que se me arrepiavam os cabelos. Os criados andavam de dia e de noite a chamar confessores e exorcistas. Entrei a suspeitar que a energúmena era uma perversíssima impostora. Entendi-me com a filha, comuniquei-lhe as mesmas desconfianças, e ela concordou. “Havemos de curá-la”, disse eu a Joana. Véspera de Natal, entra o tal demónio com ela por volta de onze horas da noite. Escabujava nos braços da filha, dava pontapés de derrear um elefante, coleava-se como serpente e pinchava como uma cegonha no sobrado. Depois caiu em letargia aparentemente mortal. Eu já me tinha preparado para a cura. Levava comigo dois tijolos que mandei aquecer até os abrasear, e depois ordenei a Joana que os achegasse às solas dos pés da mãe, os quais estavam nus e fora do leito, onde eu a mandara Pôr. Parece que o demónio dela estava alerta; porque assim que eu falei em tijolos quentes, recobrou os sentidos de golpe, sentou-se na cama, chamou-me bárbaro algoz, e disse contra a filha insolências diabólicas. O certo é, amigo António, que a velha nunca mais foi vexada de diabo nenhum, e passa regularmente. Aqui tens como foi.

— E com a Joana, como te vais dando?

— Já te disse: sempre traspassado das agulhas do ciúme. Agora, está aí em Lisboa um castelhano que me dá que fazer. Já lhe segui de noite o vulto para o atravessar com a espada; mas as mortificações, que eu tenho causado aos meus pais, são já tantas, que me não posso resolver a matar o homem. Joana já teve o desaforo de me dizer que o não acha feio nem desprezível. Eu quis cevar nela a minha raiva; mas deves saber que a cigana é mulher de faca, e não se ensaiaria em mim se me esfaqueasse, porque o exemplo já ela o deu com um dos meus predecessores na posse daquele formoso seio, cofre de um péssimo coração...

— E amas assim uma mulher?! — atalhou António José da Silva.

— Amo, amo miseravelmente! Pergunta ao duque de Cadaval porque ama ele a Paulina que o atraiçoa todos os dias; pergunta ao conde de Arouca porque ama aquela impudentíssima Rocha, que o cobre de irrisória ignomínia; pergunta ao rei porque amou com tão cega paixão a dissoluta Margarida do Monte que morreu freira no Convento da Rosa, o ano passado!

Note:

O amante de Paulina era D. Jaime Pereira, cunhado de el-rei D. João V. Tirante a miséria daqueles escandalosos amores, o duque foi um dos mais respeitáveis e respeitados fidalgos do seu tempo. A manceba do conde de Tarouca, mulher da ínfima plebe, chamava-se a Peles de alcunha; mas como casasse com um fulano Rocha, criado do conde de Tarouca, tomou-lhe o apelido. “Como bom homem, que era este marido”, diz o Cavalheiro de Oliveira, “conseguiu ser criado supranumerário da imperatriz Amélia.” O Cavalheiro referia-se à imperatriz da Áustria, onde o conde de Tarouca pai do conde em questão foi ministro português. A tal Rocha ou Peles fugiu ao conde para os braços do padre Domingos de Araújo Soares, capelão particular, que tinha sido, do conde. “Este padre”, diz Oliveira, “nunca disse missa: única virtude que ele praticou. Era um celerado de profissão.” Cumpre saber que o conde tinha tirado a Rocha ao pai, insulto de que o padre vingou o velho. O cronista, a respeito desta balbúrdia de perfídias, exclama com um poeta francês: Amour, amour, quand tu nous tiens, Onpeut bien dire, adieu, Prudence!

— Tens um sestro fatal! — observou António José. — E quando tu, há três anos, falavas em morrer héctico de amores pela atriz espanhola Zabel Gamarra!

— É verdade... já sabes que ela professou nas Agostinhas no Convento de Santa Mónica?

— Já sei. E o marido professou também?

— Não: foi-se embora, depois de receber seis mil cruzados, que lhe deu, em troca da esposa, o marquês de Gouveia...

— Não é cara — disse António José.

— Quanto achas tu que levou de Portugal aquela Petronilha do Dom João quinto?

— É incalculável. O sabido e notório é que ela levou de Lisboa trinta bestas carregadas, e que as damas de primeira plana de Espanha, quando viram-na carregada de joias no teatro de Madrid, assombraram-se do tamanho dos brilhantes. Vê tu onde foram cair as joias das rainhas de Portugal, e as mais preciosas, que vieram do Oriente no reinado de Dom Pedro segundo!... Voltando à Gamarra, deixa-me contar-te episódios galantes, que iam descambando em tragédia, e pode ser que afinal disparem em terrível catástrofe. O marquês de Gouveia bebe os ventos pela mulher, principalmente depois que a meteu no convento e lhe vestiu o hábito. Soror Isabel folga de ter acorrentado às grades do mosteiro o grande senhor. Aconteceu, há meses, mandá-lo chamar a Gamarra, ao mesmo tempo que o rei. O marquês vacilava aflitivamente, sem saber decidir-se. Sai o marquês, entra no coche, e diz ao cocheiro que o leve à corte; mas, a meio caminho, manda desandar para o Convento de Santa Mónica. Para encarecer o seu amor, diz à freira que el-rei o estava esperando; porém, antes desagradar ao rei que à sua amada. “Se não procedesses assim, não me verias mais”, disse-lhe soror Isabel. “Mas”, tomou o marquês, “calculas quanto arrisco por amor de ti?“ — “Deves arriscar”, redarguiu ela, “antes que todo es mi dama”, juntou ela, em espanhol, com o título da comédia de Calderón. “Quem se não sacrificar por mim não me ama, nem me agrada.“ Seguiu-se dar-lhe o marquês o seu retrato engastado em círculo de brilhantes, e jurar obediência eterna. Depois, com o consentimento dela, foi ao rei. Este diálogo ouvi-o eu da grade próxima, porque eu estava com ela quando se anunciou o marquês...

— Então é certo que a amas e és... amado, como os outros. — interrompeu António José.

— Não. Sou confidente do único homem quê ela sinceramente ama. Conheces o meu amigo Valentim da Costa Noronha?

— Também esse! Casado! Pai de quatro lindos filhos! Esposo de uma virtuosíssima senhora!...

— Tudo lhe sacrificou à funesta mulher! Está sem amigos, sem consideração, sem filhos, sem mulher, e receio muito que breve esteja sem vida. Já duas vezes os sicários do marquês lha quiseram roubar. de uma vez o ajudei eu a defender-se, contra quatro assassinos. Se o não matarem, mais hoje mais amanhã, alguma ordem do rei o manda fechar nalguma torre... A despejada mulher, depois que o marquês saiu da grade, fez-me portador do retrato e dos brilhantes do amante, como presente a Valentim de Noronha!...

O amigo de António José da Silva previra o destino de Valentim de Noronha numa das duas hipóteses. Por ordem régia, Noronha foi encarcerado no Limoeiro, a pedido do marquês de Gouveia. Ao fim de nove meses de prisão rigorosa, teve o preso a boa sorte de morrer o marquês no vigor da idade. Não obstante, D. Gaspar de Moscoso e Silva, tio do marquês defunto, e sumilher da cortina de el-rei D. João V, embargou por muito tempo o livramento do preso, para assim vingar o afrontado sobrinho.

A freira, assim que o marquês expirou, quis voltar para o marido, que representava nos teatros de Espanha. Obstaram-lhe as leis à renunciação dos votos com que professara. Gamarra tomou o mais sumário dos expedientes.

— Agora, falemos de ti. A judiazinha tem-te escrito? Conta-me alguma coisa da esquisita Leonor dos teus sonhos... Que sabes dela? Vem para Portugal?

— Vem brevemente. A última carta de Sara para a minha mãe diz que por estes seis meses, deixam a nevada Holanda em que o coração da pobre menina morre de frio! Olha que ainda me não escreveu palavra que não venha entanguida do frio lá da terra! Aos versos responde na mais chá e sovina prosa que inventaram mulheres desamoráveis.

— Tu és um tolo sincero! — exclamou de golpe Francisco Xavier. — Pois tu podes amar seriamente a rapariga, que nunca viste, só porque te disse tua mãe que ela, muitos anos antes de nascer, já era destinada tua mulher?

— Posso e amo — disse António José. — Fantasiei-a. Não sabes tu o que é fantasiar, meu sebastianista? Pois tu não imaginavas, há pouco tempo, um rei Dom Sebastião que tinha morrido século e meio antes? Então que tem que eu espere a felicidade de uma mulher, que vive, e se veste das cores celestes que a minha fantasia lhe dá? Sei que ela é formosa: que tem que eu a imagine formosíssima? Sei que é instruída: que faz que eu a fantasie uma das irmãs Sigeias? Se os meus sonhos hão de acabar, quando me ela aparecer, pouco perdi: os adornos, que a minha imaginativa lhe deu, são propriedade minha; posso dá-los a quem eu quiser depois. Isto que tem de extraordinário?

— Pois — tomou Oliveira — se não queres ser tolo extraordinário, serás um tolo vulgar.

Fugiu do convento, fisgou-se ao marido, que tinha ido furtivamente a Lisboa, passou a Espanha, e voltou à vida antiga do teatro. Eis aqui uma criatura à espera de um romance em três volumes, graças às informações de Francisco Xavier de Oliveira.

CAPÍTULO III

António José da Silva granjeara fama de abalizado engenho. As suas jocosidades métricas andavam manuscritas por mãos dos entendidos, que as encareciam, por mais ou menos aquinhoarem das graças literárias da época, no nossos dias consideradas aleijões contagiosos das escolas italiana e espanhola. D. Francisco Xavier de Meneses, quarto conde da Ericeira, o mais fecundo e menos contaminado escritor português daquele tempo, recebia António José na sua casa, folgava de ouvi-lo recitar as suas comédias entremeadas de chistosas árias, recitava-lhe cantos da sua insulsíssima Henriqueida, e aconselhava-o a transviar-se da imitação servil dos espanhóis em composições teatrais, e dos trocadilhos de Gôngora nos poemas graves, em que apenas o bacharel por acaso se entretinha.

Francisco Xavier de Oliveira, reputado mancebo de rara inventiva e copiosa leitura nas intercadências das notórias travessuras, era também das palestras e saraus literários do conde da Ericeira.

Um dia, António José e Francisco Xavier encontraram na livraria do conde, folheando nos livros, enquanto o fidalgo não entrava, um Bartolomeu Lobo Correia, sujeito dado às letras, com o infortúnio deplorável de se não darem as letras com ele.

O conde, como amigo de gente ledora, ou porque não estremasse os incapazes, ou por se compadecer dos ininteligentes, acolhia Bartolomeu, dizendo aos mais íntimos que o pobre sujeito não tinha culpa de sair milagrosamente mais sandeu que o pai.

O pai deste Bartolomeu tinha sido um Pedro Lobo Correia, escrivão da Contadoria — Geral, falecido em 1708. Este sujeito entrara no templo das letras com o ofertório de um livro da sua lavra, intitulado Vida de Ako e Orações contra as Tempestades.

O título somente, sem ajuda das parvoiçadas interiores do livro, tinha sido o epitáfio do literato, tolhido no nascedouro.

Passados anos, como a paixão das letras o espicaçasse, deu-se a tradutor do espanhol, e saiu a mais modesto lume com o Nascimento, Vida e Morte Admiráveis do Grande Servo de Deus Gregório Lopes, Natural da Vila de Linhares: Composto pelo Licenciado Francisco Losa, Traduzido na Língua Portuguesa, e Acrescentado o Fim e Primeiro Capítulo. Ora, o fim e primeiro capítulo do livro era sobremodo tolo.

Além doutras traduções, Pedro Lobo, querendo dar testemunho público da sua piedade, das excelências do seu cristianismo, e assanhado rancor à raça hebraica, traduziu do castelhano um livro revulsivo, intitulado: Sentinela contra judeus, Posta na Torre da Igreja de Deus, & C Feito isto, e mais alguns serviços à religião da caridade e às letras portuguesas, morreu Pedro Lobo, deixando ainda um volume, o pior e mais brutal de todos, que era o filho Bartolomeu.

Estava, pois, Bartolomeu Lobo folheando os preciosos livros do conde da Ericeira, quando entraram António José da Silva e Francisco Xavier. Depôs estes, entrou o padre Luís Álvares de Aguiar, prior de S. Jorge, homem de sessenta anos e alegre sombra de velho em cujos olhos lampejavam ainda os clarões da juventude.

António José, que sinceramente odiava Bartolomeu, já pela estupidez herdada já pela própria, não perdia lanço de o meter a riso com salgadas galhofas na presença da fina e algum tanto livre sociedade do conde. Casualmente, relançando os olhos à livraria, o hebreu enxergou o livro em oitavo, intitulado: Sentinela contra judeus & C. Tirou o livro, e disse:

— Óh Francisco Xavier, já leste um diamantino livrinho traduzido pelo pai aqui do senhor Bartolomeu? A Sentinela contra judeus!

— Oh!... oh!... — cacarejou gargalhando o padre Luís Álvares. — Isso é uma obra que faz cócegas nos pés à gente.

— Então porquê? — perguntou o abespinhado filho do defunto tradutor.

— Porquê?! — disse o padre — , porque é obra recheada de sandices, e imoralmente porca e torpe.

— Que outro dissesse isso... — retorquiu Bartolomeu mas Vossa Senhoria, que é padre, e homem bem nascido!...

— Quer Vossa Senhoria — disse o presbítero — que os padres e homens bem nascidos sejam tão alarves como o senhor seu pai, que Deus haja na bem-aventurança dos pobres de espírito?

António José e Francisco Xavier riram. Bartolomeu, em harmonia com a sua costumada parvoíce, riu também; todavia, o ónagro, que fareja a fêmea nas brisas de Maio, ri com mais espírito.

O filho de João Mendes abriu ao acaso o livro, leu mentalmente algumas linhas, e disse:

— Ó senhor Bartolomeu, Vossa Senhoria estará na persuasão em que morreu seu engenhoso pai a respeito das doutrinas deste livro?

— Eu creio tudo em que o meu pai creu. Tudo que ele escreveu ou traduziu são verdades — respondeu o sujeito.

— Bem. Então defende o que se diz aqui, respeito à raça hebraica?

— Defendo, sim, senhor. São as doutrinas da Igreja; e por assim o entender, mandei reimprimir esse livro há quinze anos.

— Fez Vossa Senhoria muito bem, senhor Bartolomeu — obtemperou Francisco Xavier de Oliveira. — Estamos num país em que o livrinho do seu pai há de ser ainda terceira vez impresso.

Note:

Foi efetivamente reimpresso em 1748.

— Merece-o! — disse António José da Silva. — Ora digam-me, se a imortalidade não é pequeno galardão para um livro, onde se leem coisas. Atendam:... Se os homens tiveram o cuidado em sinalar os judeus, para que fossem conhecidos pelas suas traições, não menos pensou Deus de os sinalar para confusão sua, e castigo do que mereceram seus antepassados. Não são em alguns muito patentes os sinais que pela sua mão lhes põe a natureza; mas em outros se descobrem claros e evidentes, sem que à gente os possa o seu cuidado esconder ou encobrir... Digo pois que há muitos sinalados pela mão de Deus, depois que crucificaram a sua divina majestade; uns...

“Reparem nisto! — exclamou António José interrompendo a leitura. — Reparem, por honra da história natural e do defunto Lobo morto, e do Lobo vivo!

E prosseguiu na leitura: — Uns têm uns rabinhos que lhes saem do seu corpo do remate do espinhaço; outros lançam e derramam sangue...

— Alto lá! — atalhou o padre Luís Álvares. — Estão senhoras na sala próxima: quem quiser, vá ler à rua o restante da imundícia.

— Eu já li — disse Francisco Xavier apertando as cartilagens do nariz. — Isto vapora miasmas de latrina.

— E com que então — repetiu o hebreu — está Vossa Senhoria persuadido, senhor Lobo, que alguns judeus têm uns rabinhos que lhes saem do seu corpo do remate do espinhaço?

— Estou, sim, senhor.

— Já viu dessas coisas com os seus olhos penetrantes? Agora vejo eu também que não é quimérico o anexim respetivo aos entendidos que metem o nariz em tudo! Que grande alcance e que profundas investigações por lugares tão desfrequentados tem feito o seu nariz de sábio, senhor Bartolomeu!

O padre Luís Álvares de Aguiar, desabafados os impulsos de riso, compôs o rosto, e disse:

— É grandíssimo desdouro para Portugal que este e quejandos monstros da loucura humana corram impressos. Lastimo, senhor Lobo, que Vossa Senhoria ande a fazer ganância com estes excrementos das pobres e servis vigílias do seu pai, cuja capacidade intelectual está medida por esta produção, que ele foi buscar, para traduzir, aos escoadouros de Castela. Veja, por honra sua, amigo e senhor Bartolomeu, se pode chamar a si todos os exemplares desta vergonhosa obra, e queime-os; queime este opróbrio do seu pai e seu. Queime-os...

— Ou dê-os — acrescentou António José — para alimentar as fogueiras de algum judeu...

— Pode ser... — murmurou Bartolomeu, a ponto que vinha entrando o jovial conde da Ericeira, pedindo desculpa da demora.

— Que livro lê o nosso moderno Gil Vicente? — perguntou o conde. — Ah!... Sentinela contra judeus... Isso é galante livro, que prova o adiantamento da história natural nas Espanhas. Fala aí de uns rabinhos...

— Com eles nos entretínhamos — acudiu o prior de S. Jorge.

— E viram — tomou o conde — o porquê de terem rabinhos alguns israelitas? A explicação está duas páginas adiante.

— Cá está — disse António José, e leu: — Os que têm os rabinhos no remate do espinhaço são por linha direita descendentes daqueles que entre eles eram mestres, a quem chamavam rabis, e nós nomeamos rabinos; estes se tentavam a julgar, e hoje ensinam sua lei como mestres e juízes, e para pena sua, e sentados não possam estar sem moléstia e trabalho, lhes saem aqueles rabinhos no próprio lugar que lhes pode causar penalidade.

— Parece que o senhor Bartolomeu Lobo está com azeda sombra! — atalhou o conde. — ó nosso amigo, seu pai não tem que ver com a nossa crítica. A um tradutor tão-somente se pede contas da lealdade da versão; e, ao meu ver, esta versão do espanhol é fidelíssima. Da má substância do livro está seu pai inculpado, amigo Lobo.

— Meu pai, senhor conde — disse Bartolomeu — , não pede desculpa de ter feito um bom serviço à religião. Aos judeus é que ele não fez grande favor, traduzindo este religioso livro, de que estes senhores estão zombando.

Bartolomeu feriu com os olhos as costas de António José da Silva, quando proferiu as palavras: aos judeus...

O filho de Lourença Coutinho apanhou-lhe no ar o tiro, volveu-se rápido para ele, e disse:

— Os judeus que tiveram a desventura de nascerem em território português têm quinhão na ignomínia deste livro, por estar em linguagem que se parece tanto ou quanto com a portuguesa; enquanto ao mais, Deus nos livre que o Santo Ofício acreditasse na existência de rabinhos!... A perversidade, em geral, costuma ser menos estúpida. Hoje não haveria ninguém que quisesse inspecionar as tais excrescências a não ser Vossa Senhoria, senhor Bartolomeu!...

O conde fez a António José um expressivo gesto de silêncio. Bartolomeu deteve-se alguns instantes, e pediu licença para retirar-se, cumprimentando profundamente o padre, o judeu e o filho do contador-mor.

— Faz mal, senhor Silva — disse o conde gravemente depois que Bartolomeu saiu — , faz mal em disparar tão certeiras flechas contra a cabeça dura 'deste homem! Vossa Senhoria esquece-se de que há no Rossio um palácio, que se chamou dos Estaus, e hoje se chama vulcão de fogueiras. Tenha prudência. Diante de mim, diga o que quiser a favor de Moisés e contra São Paulo; mas do maior número de sujeitos, que entram nestas salas, guarde-se.

CAPÍTULO IV

Quinze dias volvidos, aos 6 de Agosto de 1726, entrava António José da Silva, segundo o seu costume quotidiano, no escritório do seu pai, quando três familiares do Santo Ofício lhe ordenaram que os seguisse ao Tribunal. O hebreu hesitou alguns instantes, meditando no mais fácil meio de escapar-se. Um dos familiares, entrando-lhe no ânimo, descerrou um riso de escárnio, e disse:

— Não pense em fugir, que as avenidas da sua casa estão vigiadas. Em toda a parte há “sentinelas contra judeus”.

António José da Silva entendeu a alusão. Pediu que o deixassem despedir do seu velho pai e da sua mãe, obrigando-se a subir acompanhado. Negaram-lhe a licença, solicitada com lágrimas.

António José saiu na frente dos três familiares, e pediu ao merceeiro vizinho que avisasse seus pais de que elo, ia preso.

No mesmo dia e à mesma hora, foi também preso o prior de S. Jorge, Luís Álvares de Aguiar, e conduzido aos cárceres da Inquisição.

A captura do filho de Lourença Coutinho não fez estranheza. A Inquisição e os devotos lembravam-se ainda da judia, que saíra absolta donde a piedade requeria que saísse de carocha e sambenito. Grande parte de público estava escandalizado daquele singular caso de indulgência, que, até certo ponto, ameaçava quebranto na inteireza dos inquisidores. Por isso, com a notícia da prisão de António José da Silva, os pios escandalizados sentiram a satisfação desagravante.

Enquanto ao prior de S. Jorge, muita e boa gente se espantou. O padre Álvares de Aguiar, oriundo de muito ilustre família, em limpeza de sangue podia pleitear antiguidade com a mais primorosa raça de cristãos. Corria fama de que ele, desde os quinze até aos sessenta e tantos anos que tinha então, se distinguira em femeais mundanidades, amando as mais formosas e fidalgas com requintado e versátil amor nem sempre ideal. À volta dele, no dizer do seu amigo Francisco Xavier de Oliveira, florescia uma espécie de harém espiritual, composto de tenras e juvenis belezas, das quais ele se denominava pai, sendo, ao mesmo tempo, dono e galã. Este bom padre — diz o contemporâneo — que outra quebra não tinha senão a paixão do amor, não deixava ressumar a sua tendência nem por obras nem por palavras. Apenas sustentava que “o amor é o complemento e epítome de toda a lei; e que a chamada caridade nas Santas Escrituras não é senão o amor, segundo São Jerónimo”. Bem que amasse idolatricamente as mulheres formosas e as de mais lustrosa raça, nunca falava senão do amor de Deus; e deste amor parecia desbordar-lhe o coração, se atentarmos nas magnas obras de caridade que ele constantemente exercitava. Diz mais o Cavalheiro de Oliveira: “Eu vivi muito na sua intimidade. Tão excelentes no âmago eram as qualidades dele, que toda nós o estimava, sem distinção das mais gradas pessoas de Portugal, quer pela qualidade da sua fidalguia, quer pelo seu copioso saber.“

Todos, pois, se maravilharam e condoeram. Ninguém sabia conjeturar o motivo de semelhante prisão. Quem, com efeito, mais cabalmente podia informar a curiosidade do público, seria o filho do tradutor da Sentinela contra Judeus.

Esperemos-lhe a sentença. João Mendes da Silva, tão depressa pôde transportar ao leito sua mulher desmaiada e como morta pelo golpe da notícia, correu a casa do conde da Ericeira a pedir a redenção do seu filho.

O conde ouviu aterrado a nova, e disse:

— Eu previ isto... Sei donde partiu a denúncia... Vá com Deus, que eu começo desde já a trabalhar na salvação do pobre jovem.

Daqui, foi João Mendes em cata do contador, pai de Francisco Xavier de Oliveira. Encontrou-o aflito.

— Também meu filho — disse José de Oliveira e Sousa — esteve em risco de ser hoje preso. Salvou-o ontem sua mãe, ajoelhada aos pés do inquisidor, porque um conselheiro do Santo Ofício se apiedou das minhas cãs, e me avisou. Não sei que hei de fazer no seu auxílio, senhor João Mendes!... Eu já sou também suspeito. Quando a Inquisição prendeu o prior de São Jorge, não sei que haja ninguém defeso!...

João Mendes saiu desanimado. Foi ainda socorrer-se daquele Diogo de Barros, santo valedor de infelizes. O ancião algumas esperanças verteu no coração do septuagenário, dizendo-lhe que ainda era familiar.

— E então agora — disse Diogo de Barros — , agora que vinha aí a filha do meu Jorge para se efetuar o casamento! É preciso salvarmo-lo antes que ela chegue. Eu não lho faço saber a ela nem a Sara. Recomende à senhora Lourença Coutinho que não diga nada para Amesterdão; ou, a dizer-lho, que as dissuada de virem a Portugal.

António José da Silva foi conduzido ao chamado corredor meio novo, cárcere número seis.

Ao oitavo dia foi levado a perguntas à chamada Mesa do Santo Ofício. Estava adiantada a instauração do processo. Leram-lhe o depoimento das testemunhas que o capitulavam de judaizante. António José disse francamente que não tinha vivido como cristão nem como israelita; mas, se lhe concedessem vida para o arrependimento, faria inteira abjuração do seus erros.

Aceitaram-lhe o abjurar; todavia, como ele não confessasse que em casa do seus pais se judaizava, puseram-no a tratos, chamados do torniquete. A tortura exerceram-lha nas mãos, até lhes esbrugar a carne dos ossos. O padecente, consoante consta da consignação dos autos, no mais cruel remoer do tomo sobre os dedos, invocava Deus, e não a Virgem, nem algum santo do reino do céu.

Ao tempo deste suplício lento, com intercadência de trevas na masmorra, que fazia Francisco Xavier de Oliveira?

Padecia tratos de outra natureza. Aquela Joana Vitorina, tão da sua alma, a cigana requestada pelo fatídico espanhol, desapareceu-lhe um dia, deixando a mãe com a condição de a mandar buscar. Francisco Xavier, com dois membrudos criados, agarrou da velha, e ameaçou-a de a pôr a tormentos até lhe arrancar o segredo do destino da filha. A demoníaca de outrora, ao lembrar-se dos tijolos ardentes, revelou que a sua Joana fugira para Valhadolide com um espanhol, que lhe prometera palácios na sua terra e a mão de esposo.

O alucinado jovem esqueceu o pobre amigo preso, a mãe angustiada, o pai que de puro medo da Inquisição caíra enfermo, tudo esqueceu, porque a serpente do ciúme se lhe enroscou no peito, e verteu peçonha aos seios da alma até lhe queimar as febras todas da amizade e filial amor.

Pediu o dinheiro que não pôde furtar dos contadores paternos, e foi a caminho de Espanha. Entrou em Valhadolide, onde não conhecia ninguém; mas ao seu pai ouvira dizer que D. Rafael Hernandes de Bobadilha, alcaide de Valhadolide, era seu amigo, e parente do marido de uma sua irmã, casada em Barcelona.

Apresentou-se ao alcaide: disse-lhe quem era e ao que ia. D. Rafael acolheu-o com benignas risadas, exclamando:

— Eu sei onde pára a cigana, meu ditoso rapaz!

— E o covarde que ma roubou? — acudiu Xavier.

— Esse foi ontem preso: está no castelo, e de lá veremos para onde as leis mandam os caudilhos de salteadores. Fica Vossa Senhoria sabendo que a sua Joana teve a honra de hospedar no largo peito o coração do mais temeroso bandido das Astúrias. Agora veja lá se lhe serve a criatura enfarruscada com tão abjetos amores.

— Onde a encontro? — disse com veemência o português.

— Na estalagem onde o salteador foi preso. Que quer Vossa Senhoria fazer à mulher?

— Matá-la!

— É muito bem feito! — acedeu gravemente o alcaide. — Vá matá-la, que é uma devassa a mulher! Faz um serviço à humanidade, Dom Francisco! Eu, se não tivesse que fazer, ia também dar-lhe uma cochilada no pescoço...

— Dom Rafael está a zombar com a minha desventura? — interrompeu o jovem.

— Não senhor. Estou a recrear-me com Vossa Senhoria enquanto não chega o chocolate que mandei preparar... Aí vem o chocolate. Sente-se para aqui, rapaz. Merende, e depois irá perpetrar o ciganicídio, a uma hora própria dessas atrocidades. Deixe nascer a Lua, para os poetas de Espanha terem azo de falarem na Lua, ao cantarem em funérea xácara a morte da cigana às mãos do traído paladim Dom Francisco — o português! Ai!, que grilharia não vão fazer as musas!, que poemas a pingar sangue não vão sair do peito esfaqueado de Joana! Que leve a breca tal nome! Nunca vi Joana em verso! É pena que ela se não possa crismar antes de morrer, cavalheiro! Se me dá licença, Dom Francisco, ainda vou, por amor da poesia castelhana, entender-me com o bispo, a ver se a podemos crismar. Faça-me o favor de não matar a rapariga até amanhã por estas horas!

Francisco Xavier tomava o chocolate, e ria-se, quando não cravejava os dentes no beiço inferior.

Terminada a refeição, D. Rafael Hernandes de Bobadilha ajeitou o aspeito gravemente, e disse:

— Fui, sou e serei amigo do seu pai. Estivemos em Flandres há trinta anos: éramos ambos secretários dos ministros da nossas pátrias. O seu pai era honrado, e fidalgo da velha estofa. Vossa Senhoria ainda então se gerava nas entranhas do nada, senhor Dom Francisco. O resultado é estar Vossa Senhoria aí quase imberbe, e eu coberto de neve. Estas cãs devem — lhe incutir a ideia de que eu já tive cabelos pretos, e experimentei tantas paixões quantos cabelos tenho. Está Vossa Senhoria diante de um velho que lê nos refolhos do coração. A cigana, que trouxe-o a Valhadolide, é mais amada hoje do que era antes de lhe fugir...

— Oh! — atalhou Francisco Xavier. — Nada de retóricas nem de teatro, Dom Francisco. Pergunto: quer levar a cigana? Vamos: responda!

— Preciso vingar-me! Quero matá-la, amando-a!

— Nesse caso, mate-a! — disse o alcaide, no tom da primeira galhofa. — Eu vou mandar consigo à estalagem quem lha ensine. Morra embora a Joana, e fiquem os poetas tolhidos por causa do mais vilão nome que ainda se ouviu em tragédias! Vá, vá, dom assassino!

Ergueu-se o alcaide, chamou da janela um quadrilheiro, e ordenou-lhe que conduzisse o seu hóspede à estalagem que indicou.

CAPÍTULO V

É minha opinião que há umas lágrimas, que têm a mirífica virtude de lavarem as manchas da perfídia no rosto da mulher amada.

Estas lágrimas são mágicas, são os filtros do sortilégio com que a ciência dos nossos antepassados andou às voltas e com que a piedade alimentou a voracidade das fogueiras. São lágrimas que têm e encerram virtudes luciferinas: saíram de laboratório infernal; não são o sangue de alma, como o padre Bernardes as definia.

Joana Vitorina, quando Francisco Xavier entrou ao quarto em que ela estava escrevendo, tinha o rosto aljofrado, daquelas lágrimas. A ira do jovem afogou-se nelas. Cruzados os braços, crispantes os beiços, acendidos os olhos, Francisco Xavier de Oliveira parou no limiar do quarto. Joana ergueu-se, lançou mão do punhal que estava sobre um bufete, despiu-o da bainha, voltou-o pela ponta, caminhou solene para o cavalheiro com os olhos no pavimento, ofereceu-lho, e disse-lhe:

— Mata-me, que é um benefício matar uma mulher que os remorsos hão de matar vagarosamente.

Francisco Xavier passou por diante dela, aproximou-se da mesa em que ela estava escrevendo, curvou-se sobre o papel, e leu.

Era carta que a cigana escrevia à mãe, pedindo-lhe que a mandasse buscar, porque se via desamparada em Valhadolide. Do homem, com quem fugira, apenas dizia que fora atrozmente iludida por um infame. “Está vingado”, escrevia ela, “o bom jovem que eu sacrifiquei; se o vir, diga-lhe que me não deseje maior desventura. “

Francisco Xavier, lido aquilo, voltou o rosto à cigana, que ainda permanecia quieta com o punhal. Depois, sentou-se, a chorar, arquejante, aflito, com o rosto abafado entre as mãos. Joana aproximou-se dele, e ajoelhou, com o rosto pendido para o seio, braços pendentes, e o punhal na mão direita. Francisco Xavier viu-a assim; ergueu-se de golpe; quis fugir impetuosamente. Ninguém lhe estorvou o passo; podia fugir à sua vontade; mas... o fatal enliço, a cadeia magnética parecia arrancar-lhe o coração pelas costas, quando ele ia fugindo. Era a cigana!... o amor infernal daquela raça maldita de Deus, que tem por si a omnipotência de Lúcifer.

O jovem girou sobre os calcanhares como manequim. Parecia uma coisa fantástica: de real apenas se sentia, naquele quarto, a ridiculez dos olhares, das posturas e do silêncio. Estava isto assim neste curioso lance de se deverem rir um do outro, quando Joana se lhe atirou ao peito, expedindo um ai estrídulo, um como grito do coração que morre. Se a não amparassem, cairia; mas não caiu. Os braços dele apertavam-na muito, muito; e, se os braços não bastassem a sustê-la, creio que eles se segurariam um noutro pela identificação dos lábios.

Como se amavam! E, depois, não há mais que dizer no tocante à reconciliação. O alcaide chegou a lançar o jantar com o riso, quando o português lhe contava a passagem com os trejeitos e transportes que deram em resultado o jurarem-se reciprocamente um eterno amor de mais algumas semanas.

No dia seguinte, quando Francisco Xavier andava curando dos aprestos para a jornada, é que ele se encontrou com as duas perseguidas hebreias no adro da igreja. O leitor pode recordar-se.

Deteve-se ainda três dias em Valhadolide Francisco Xavier de Oliveira à espera de alguma boa nova, com referência às presas. Com as boas esperanças de D. Rafael, saiu o jovem, acompanhado da cigana, para Lisboa.

Sossegado de coração, tratou em trabalhar no salvamento de António José da Silva. Desvaliosa proteção seria a dele, já tão mal visto do Santo Oficio, que os pais incessantemente lhe pediam que fugisse de Portugal. Diogo de Barros despersuadiu-o de solicitar a misericórdia de S. Domingos a favor do seu amigo, como patronato inconveniente ao preso, a menos que o não quisesse sobrecarregar.

Os valedores do filho de João Mendes, conquanto poderosos, ignoravam e temiam a sentença no fatal dia 13 de Outubro, designado para o auto-de-fé. Contavam Diogo de Barros e o conde da Ericeira com as favoráveis alegações dos qualificadores do Santo Oficio; desconfiavam, porém, do inquisidor-geral.

Soaram os sinos à chamada dos fiéis para assistirem às sentenças na igreja de S. Domingos. Entre os réus da vanguarda ia António José com o sambenito, descalço, cabeça rapada, ao lado do padrinho que lhe fora nomeado. Ir ele entre os primeiros réus, era já sinal de grande júbilo para os seus. Os que marchavam depôs o Crucificado, erguido no meio da procissão, esses já podiam de antemão contar com as agonias da fogueira, porque já não viam a face de Cristo. António José da Silva ouviu o sermão dos lábios piedosos de um frade dominicano, que se esteve sempre em êxtase diante da misericórdia com que a Santa Inquisição andava em cata das almas tresmalhadas do caminho da glória para as restituir ao seu criador.

Concluído o sermão, dois frades subiram ao púlpito para lerem a suma dos processos, e declarar as penas em que tinham sido condenados.

A primeira sentença lida foi a do padre Luís Álvares de Aguiar, acusado de prostituir as suas devotas no confessionário, crime que na tortura confessara. Privado do exercício das funções eclesiásticas, foi condenado a desterro perpétuo.

António José da Silva, nesta ocasião somente, soube que o prior de S. Jorge fora também vítima da denúncia de Bartolomeu Lobo Correia.

Seguiram-se outros réus. Depois, um familiar conduziu pela mão António José ao meio das galerias, ocupadas por frades, bispos, qualificadores e familiares. Ouviu ler o processo, que o acusava de ter hebraizado. A sentença era absolutória, visto que o réu confesso abjurava as doutrinas dos dogmas judaicos. Em seguida levaram-no ao tope do altar, onde o fizeram ajoelhar, e pôr a mão sobre um missal. Nesta postura, recitou um protesto de fé, e esperou que o inquisidor o absolvesse da excomunhão e lhe impusesse a penitência.

Ultimada a leitura das sentenças, António José, ao sair do templo para entrar na Casa Santa circunvagou os olhos pela multidão, e viu Francisco Xavier de Oliveira, ao par da sua mãe, que cobria o rosto e as lágrimas com a mantilha. Entrou no Tribunal, despiu o sambenito, os calções e a jaqueta parda listrada de raios brancos: entregou ao alcaide da Inquisição a vestimenta, e esperou que o inquisidor, duas horas depois, lhe designasse em lista manuscrita os artigos da penitência, e lhe cruzasse a última bênção misericordiosa.

Ao anoitecer, o filho de João Mendes entrou na liteira do contador-mor, e foi conduzido a casa do seus pais. Lourença Coutinho, quando lhe viu os dedos macerados, e as articulações das falanges ainda chagadas da tortura, perdeu os sentidos nos braços do filho. O ancião, com as mãos erguidas, abafava de soluços, desviando os olhos das mal fechadas cicatrizes, que o jovem mostrava. Francisco Xavier, a praguejar, blasfemava da Providência, duvidando que ela existisse, e impassivelmente se revisse nas atrocidades deste mundo.

António José da Silva, nos primeiros dias de liberdade, fez suspeitar desconcerto de juízo, à conta de uns ares sombrios e rosto empedernido em que se deixava estar, longas horas, num terrível quietismo. À primeira vez que saiu de casa, foi ao Convento de S. Domingos tratar coisas espirituais com frades de boa nomeada em virtude e saber. Fugia aos seus antigos conhecidos, e nomeadamente Francisco Xavier de Oliveira, que mais que todos se compadecia da estragada cabeça do pobre António. Quando o amante de Joana Vitorina lhe queria contar os sucessos de Valhadolide, António José cortava a narrativa, pedindo que lhe não desnorteasse o espírito. Oliveira ria-se à socapa dos trejeitos pios do amigo, o qual, por vezes, era na verdade irrisório, referindo seraficamente as suas visões e sonhos beatíficos.

Esta enfermidade cerebral, efeito das trevas, da insulação e tormentos da Santa Casa, guarneceu-a lentamente o correr do tempo. Este melhoramento, porém, não impedia que António José, um dia por outro, fosse ao Convento de S. Domingos conversar, instruir-se e roborar a sua piedade com os frades.

Entretanto, Lourença Coutinho e João Mendes, grandemente auxiliados pelo tio de Jorge Barros, curavam incansáveis do livramento de Sara e Leonor. Ao princípio, António José ouvia falar delas com uma quase estranheza, e depois com piedade. Dizia ele que a desgraça era necessária, quando nos saía ao encontro fora da estrada direita, porque, sem ela, nunca nos resgataríamos de atalhos perigosos e condutores à perdição. “ Oxalá”, juntava ele, “que Sara e Leonor aprendam a verdadeira religião, como a mim me aconteceu! “

Lourença chorava quando isto ouvia. Francisco Xavier olhava-o em rosto com sincera amargura, e de si para si dizia: “Endoideceram-no! “

D. Rafael Hernandes avisou o seu velho amigo José de Oliveira que as duas presas sairiam infalivelmente no primeiro auto-de-fé; pelo que estavam sendo supérfluos os empenhos que iam de Portugal para o inquisidor e qualificadores do Santo Oficio. Asseverava-lhes que o Santo Oficio em Espanha era muito menos rigoroso que o tribunal português; e, no caso das duas mulheres, não havia nada que recear, senão a prisão de mais dois meses, num quarto bem iluminado e provido de tudo que elas à sua custa mandavam procurar.

Ao aproximar-se o dia 26 de Janeiro, Diogo de Barros, carregado de anos e virtudes, quis prestar ainda os bons-ofícios de parente à filha do seu sobrinho Jorge, indo a Valhadolide buscar as duas senhoras, para dali as conduzir para o seio da sua família. Francisco Xavier de Oliveira, o jovem romanesco, afigurando-se-lhe cavalheirosa bizarria aparecer numa hora feliz às damas, que viram-no em aflitíssimos momentos, acompanhou o ancião, muito a beneplácito do pai, que se atormentava com medo das iras do filho contra os inquisidores.

E chegados estamos, pois, ao ponto em que Sara e Leonor saíram absoltas e penitenciadas da Inquisição de Valhadolide, no auto-de-fé de 26 de Janeiro de 1727.

CAPÍTULO VI

Aposentou-se Sara em casa do tio do seu marido. Lourença Coutinho e a sua amiga encararam-se e duvidaram uma da outra. Na desfiguração destas atormentadas mulheres só a continuada reminiscência poderia entrever umas sombras da antiga formosura.

Sara quis ver António José, o homem formado daquela criancinha que andava na Covilhã com a sua filha ao colo, e tanto chorara por ela na despedida. O jovem encarou estupefacto em Leonor. A visagem não era bem de espanto: estava ali o quer que fosse do idiota, que se procura no seu passado a um raio de luz, da apagada luz da sua razão, do seu amor, das suas esperanças.

Leonor contemplava-o triste da comum tristeza das piedosas almas. Não o tinha amado; mas afizera-se a pensar nele. Imaginava-o jovem de muitos, espíritos, de airosa presença, simpaticamente melancólico; e via ali um homem como entanguido de frio de alma, em espasmos de santa introversão, olhando para ela com assombro, e para os outros com certo ar de quem pede que lhes iluminem as escuridades da memória do seu coração.

Leonor, avisada por Lourença, do estado lastimoso em que a tortura lhe transformara o filho, chamava-o às recordações do passado, recitava-lhe os versos dele que recebera em Amesterdão, pedia-lhe que lhe dissesse poesias novas; e convidou-o, uma vez, a glosar-lhe uma quadra. António José da Silva acedeu com um sorriso, e disse:

— Uma quadra espiritual... Seja! Diga que eu vou escrevê-la...

Mas, ao curvar os dedos para segurar a pena, soltou um leve gemido, e murmurou:

— Esquecia-me que não posso escrever... Tenho os dedos quebrados!

— Infames frades! — exclamou Leonor.

— Por quem é!... — acudiu António José — , por quem é!... não fale assim, Leonor! Não fale... que eu posso ser seu acusador na tortura!... Eu tinha desejo de morrer, quando me deram os tratos; por isso não acusei meu pai e a minha mãe, mas aqueles que não podem com a dor nem com o terror da morte... esses acusam pai, mãe, esposa e filhos... denunciam-se a si, caluniam-se, desonram-se, condenam-se a inferno sem fim, para não sentirem o repuxar e estalar de cada fibra do seu corpo, e o gotejar de cada gota do seu sangue, e o apagar-se compassado, lento, horrendíssimo de cada faísca luminosa do seu espírito...

— E como eram as torturas... como foi que lhe puseram as mãos neste estado? — perguntou Leonor.

António José da Silva fitou-a como espantado da pergunta, e disse:

— Nunca revele o que viu na Inquisição de Valhadolide, Leonor: olhe que não há perdão para a boca imprudente que deixou passar uma palavra reveladora do que lá vai naqueles infernos!...

E, dito isto, com torva e misteriosa solenidade, o filho de Lourença Coutinho saiu impetuosamente dentre as famílias hebraicas e cristãs que o viam e ouviam com os olhos marejados de lágrimas.

— E aqueles nossos planos, Lourença — disse Sara. — Vê tu como a desgraça no-los desfez!... O teu filho, se assim se vai... podemos perder a esperança de o trazer a uma regular vida em que possa realizar-se o casamento... Ele nada te diz?

— Se eu lhe falo nisso, diz-me que está morto para a felicidade, e que lhe não resta esperança de restaurar nada do que perdeu. Dantes era triste; agora está continuamente chorando. Não pode escrever... é o maior infortúnio... Não sei como hei de distraí-lo. Anda de convento em convento. Por aí, chamam-lhe hipócrita ao meu pobre filho... O que ele está é quase demente, se a Divina Providência o não socorre... A minha esperança és tu, Leonor! — exclamou Lourença, beijando a filha de Jorge de Barros. — Tu é que hás de salvar o meu António, o teu esposo!... Dá-lhe tu calor ao coração que se congelou no frio dos calabouços. Acorda-o, filha; chama-o às alegrias deste mundo...

— Eu não as tenho... — balbuciou Leonor. — Não tenho mais calor no coração que ele...

— Então não o amas?! — replicou Lourença, como admirada da frieza de Leonor.

— Como podem amar-se pessoas que apenas se viram na infância! — disse a filha de Sara. — Mas com isto, senhora Lourença, não quero eu dizer que me esquivo a ser esposa do seu filho, se tal é a vontade da minha mãe, e se já esse destino me tinha dado meu querido pai. Sem ideia de casamento, minha amiga, hei de fazer quanto puder por distrair o Antoninho das suas amarguras; creia-me...

Lourença levou a mão de Leonor aos lábios e, reparando, disse:

— Cá está o anel do teu pai, menina!... Não o percas... Deixaram-to os da Inquisição? Cá em Portugal não é costume restituir aos absolvidos as coisas, que lhe encontram, quando os prendem. A mim nunca me restituíram dois anéis de pedras e uma manilha que eu trouxe do Brasil...

Não vos cortaram os cabelos na Inquisição de Valhadolide?

— Não, nem nos mudaram os vestidos — disse Sara. — Então, filhas, não digais que sofrestes... A vossa prisão foi suave; o Deus compadecido dos infelizes sem culpa não vos desamparou... E o tesouro? — prosseguiu Lourença — , quando havereis à mão a vossa riqueza, filhas?

— Nem já pensamos em riquezas — disse Sara. — O tio do meu Jorge presume que o cofre já não existe.

— Há um ano — tomou Lourença — que o meu marido soube do capelão da Bemposta que tal coisa nunca aparecera.

— Isso me disseste para Amesterdão.

— É verdade: bem me lembro... E o filho do capelão, que é o almoxarife dos infantes, se souber que vós viestes de Holanda, é capaz de vos procurar a ver se descobre o segredo. Tende cautela com ele, que eu não lhe tenho muita fé, apesar de se mostrar muito compadecido do meu António, e me dizer que pedira por ele aos infantes. Chama-se Duarte Cotinel Franco, andou com os meus filhos e com o Francisquinho Xavier na escola, e Deus sabe que ele foi causa de muitos desgostos da minha amiga Dona Isabel, levando — lhe o filho para as noitadas da Bemposta, onde vão todos os perdulários e mulheres perdidas de Lisboa. Eu não gosto dele... Não sei o que me diz o coração daquele homem, que me não fez mal nenhum! São preocupações de quem anda sempre a tremer de falsos amigos... para além do mais consta-me que ele é familiar do Santo Oficio, e o pai é qualificador. Tudo isto vos conto, filhas, para que vos não confieis do tal Duarte Cotinel: basta-lhe ser filho de cigana, segundo dizem. O padre, que hoje goza boa fama, foi um dos mais libertinos clérigos de Lisboa. Agora, escolheram-no para qualificar e avaliar as culpas dos cristãos — novos, hereges e feiticeiros.

CAPÍTULO VII

Francisco Xavier de Oliveira, desde a hora em que foram presos António José e o prior de S. Jorge, fez ao demónio da vingança um tão fervoroso voto como, anos antes, em perigo de naufragar, fizera à Senhora da Penha de França. A vítima, que ele prometeu sacrificar na hecatombe do diabo, era aquele Bartolomeu, filho do tradutor da Sentinela contra Judeus, e propugnador dos rabinhos dos mesmos.

Era incapaz de matar traiçoeiramente um homem Francisco Xavier. A sua robustez, muitas vezes provada com grandíssimo dissabor dos seus adversários deslombados, instigava-o a encarar de frente os inimigos, e esmagá-los, se a vítima ficava entre ele e uma parede. Um só homem, em Lisboa, lhe disputava primazias em força: era um D. Henrique Henriques de Arroios, que sustentava durante quatro minutos na palma da mão a mó de um moinho, e, arremessando-a depois, a fazia rolar a distância de dez a quinze passos.

Em corridas de touros, um outro homem lhe competia em destreza e força: era o marquês de Alegrete, Manuel Teles da Silva, que, numa festa da Senhora da Piedade, no pátio do duque de Cadaval, estando presente o rei, cortara cerce a cabeça a um touro de uma só cutilada.

De si diz o Cavalheiro de Oliveira que, aos vinte anos, agarrava um boi e o subjugava em singular combate. junta que ninguém o venceu no atirar ao alto uma bala de ferro, que recebia na queda, e três vezes sucessivas arrojava à mesma altura.

Ora, um homem que assim brincava com uma bala de ferro devia de conjeturar que a cabeça de Bartolomeu nas suas mãos não pesaria mais que uma avelã.

O seu máximo cuidado era sair-se limpamente da empresa para não desgostar sua família nem incomodar amigos no livramento.

Bartolomeu tinha uma quinta em Oeiras, sobre o mar, onde costumava passar o Estio, em saborosa companhia dos seus livros, relendo e comentando as obras inéditas do pai, no intento de as estampar, quando a ilustração pública merecesse tamanho brinde.

Francisco Xavier farejava-lhe a pista, sem revelar a ninguém o propósito com que miudamente galopava na estrada de Pedrouços.

Uma tarde, quando se recolhia, já lusco-fusco, enxergou na praia do Dafundo o pensativo Bartolomeu que se passeava filosofando à beira-mar. Francisco Xavier descavalgou, depois de ter relançado os olhos por sobre a praia deserta. Avizinhou-se de Bartolomeu, e perguntou-lhe se achara nas suas meditações a causa eficiente de uns rabinhos que surdiam do fim do espinhaço de certos judeus.

Bartolomeu tremia e balbuciava. Francisco Xavier, sôfrego da oportunidade, perguntou-lhe se o não abrasavam remorsos de fazer desterrar inquisitorialmente um velho de sessenta e cinco anos, e de fazer esmagar na tortura os dedos de António José da Silva. Bartolomeu preparava-se para arrancar alguns gritos do peito ansiado, quando Francisco Xavier lhe disse, segurando-o pelo pescoço:

— Vossa Senhoria precisamente arde de remorsos, e carece de refrigério.

Dito isto, filou-o pelas roupas do costado, sacudiu-o para ganhar impulso com o balanço, e remessou-o ao Tejo. O homem escabujou alguns segundos à tona de água, sumiu-se, mostrou as pernas mais longe onde a ressaca o levou, e não deu mais conta de si aos olhos atentos de Francisco Xavier, que invocava as estrelas e a Lua como testemunhas daquela boa ação da sua vida. O jovem cavalgou placidamente, e, como quem depois de um feito brioso tira a limpo os corolários excelentíssimos do acto, ia dizendo consigo: “Se os cristãos depuram os hereges no fogo, porque não hão de os homens racionais depurar os fanáticos na água? Façamos também aquaticamente nossos autos-de-fé. “

Na madrugada do dia seguinte, a maré revessou o cadáver de Bartolomeu ao sopé da Torre de S. Gião. A notícia chegou logo a António José da Silva, que não sabia se devia folgar, se temer-se da possível imputação do homicídio. Francisco Xavier encontrou-o nesta vacilação, e disse-lhe:

— Não temas, parvo, que o infame denunciante morreu sem a mais leve contusão. Peguei-lhe jeitosamente pelo estofo dos vestidos, e apertei-lhe o pescoço com tal cuidado, que o homem apenas passou pelo incómodo de beber água à proporção das lágrimas que fez chorar. Estás vingado, é o grande caso. Se não te pude livrar da Inquisição, livrei a humanidade de uma fera.

— E estarei eu livre das outras? — perguntou António José, com temeroso aspeito.

— Estás, se continuares nessa tua hipocrisia salutar de te gastares por conventos de frades. Faz isso que é bom; mas a mim não me enganes.

— Cala-te! — acudiu o judeu. — Cala-te que eu creio em Jesus Cristo e na Virgem.

— Fazes muito bem, meu amigo; diz isso a toda a gente; diz-mo também a mim...

— Se tu ouvisses o frei António Esteves de São Domingos... Queria que o ouvisses!... Convenceu-me, reduziu-me ao puro cristianismo com razões inexpugnáveis. O meu amigo, torna-te à tua fé antiga. Eu pedirei à Senhora da Penha que te ilumine e converta àquele fervor com que lhe pediste remédio quando as ondas te soçobravam...

— Pois sim — atalhou Francisco Xavier — , pede lá o que quiseres; mas conta-me alguma coisa daquela peregrina Leonor, formosa a mais não poder, Casas ou não casas? Olha que eu, se lhe não acodes depressa, vou galanteá-la! À fé!, não me leves isto em graça!

— Faz a tua vontade — disse triste e serenamente o Silva. — Eu perdi o gosto da vida. O sangue, que me tiraram, era o do coração. Quebraram-me corpo e alma. A luz de esperança em coisas desta vida, apagaram-ma. Não vês a minha tristeza sem intermitência de satisfação? Tudo me enfastia, cobrei tédio de tudo! Como hei de eu ir associar à minha desgraça aquela menina, tão de luto já no coração de quinze anos!... Para mim e para ela há vulcões que nos refervem debaixo dos pés. de um momento para outro, cairíamos abraçados no abismo de fogo. Um inimigo basta para nos perder; um inimigo que disponha de algumas consciências vendidas! Que se não casem homem e mulher em cuja cara a sociedade abriu a ferro o estigma da maldição! Dois malditos que se reproduzem em filhinhos amaldiçoados do mundo! A mãe há de arrancar o peito da boca da criança para seguir o enviado do Santo Oficio; a criança, agonizando de fome, não terá seio de cristã que se lhe abra! Tu não vês uns meninos esfarrapados, que se aconchegam uns dos outros no coberto de São Domingos? São os filhos dos hebreus, que já morreram queimados, e doutros, cujos gemidos eles poderiam ouvir, se colassem os ouvidos à s paredes negras da Casa Santa, e se os guardas dos calabouços não cortassem com um tagante as carnes dos que gemem. Aqueles meninos não deviam ter nascido! Foram gerados na maldição. Foi perversidade dos pais darem a este mundo aqueles padecentes, que vão ali estender as mãozinhas descarnadas...

— Aos verdugos do seus pais — atalhou Francisco Xavier. António José da Silva fitou com penetrantes olhos o amigo, deixou depois cair o rosto sobre o seio, e murmurou:

— É assim... é assim. Os pais e mães daquelas crianças mataram-nos eles; esmagaram — nos debaixo do madeiro do Crucificado...

E, erguendo-se de vertiginoso salto, exclamou:

— Celerados!, celerados!, que mal fiz eu para martírio tão longo! Se tu visses como estes ossos das mãos me rangiam entre duas lâminas de ferro que se queriam juntar através das fibras... E o sangue a espirrar debaixo da pressão do torniquete... Olha!...

E mostrava-lhe as fendas da carne esfacelada, e por entre elas o roxo dos ossos, com laivos de sangue e o amarelido dos tendões que pareciam cancerados.

— E podes ainda levantar essas mãos ao Deus de Domingos de Gusmão!? — perguntou ironicamente Francisco Xavier, voltando o rosto do espetáculo nauseento das feridas ressumando pus sanguíneo.

António José pensou por momentos, e disse: — Não me tentes!... Deixa-me crer para ter vontade de outra vida... Este mundo, sem fé, sem esperança, é um horror inconcebível.

— Pois crê! — voltou Xavier. — Mas crê como homem que rejeita Moisés e o divino Cristo. Crê em Moisés como num legislador bárbaro, e em Cristo como num reformador dulcificado pelas doutrinas de Sócrates e de Fílon. Crê no destino do homem para além desta vida. Crê na virtude sã dos sectários de todas as religiões: crê que o verdadeiro Deus está no coração do maometano virtuoso, do hebreu honrado, do cristão caritativo, do brâmane inofensivo. Sê hipócrita, se te é precisa à vida essa vil qualidade; mas não pervertas a tua inteligência, não aniquiles os teus dons de altíssimo engenho, não bestifiques as tuas luminosas faculdades.

CAPÍTULO VIII

Francisco Xavier discorreu longo tempo. Escutava-o silencioso António José da Silva. Quando o filho do contador-mor se retirou, a razão abafada do jovem conflagrou-se, como o rápido alar-se da chama, que rompeu súbita por entre as vigas da casa incendiada.

Ressaltou-lhe a alma do quietismo letárgico em que passava os dias, no mais recôndito e escuro da sua casa. Agitavam-no fúrias blasfemas que intimidavam a família. Extenuado dos sacões que fazia com os braços ainda quebrados dos jejuns e dores do cárcere, caía prostrado e febril.

Esta agitação de alguns dias acabou em sossegado repouso e lúcido entendimento. Era, já conversável e judicioso nas suas práticas. Ia com o seu pai ao escritório, e aplicava-se ao estudo da jurisprudência com tenacidade. Descontinuou as visitas aos mosteiros; mas, tal qual vez, escrevia a dois frades, que se lhe tinham figurado mais doutos que o comum, e estranhos aos processos inquisitoriais, e talvez avessos e censores do procedimento do Santo Ofício em grande parte dos seus actos. Ao diante, os dois frades hão de dar de si tão boa conta que a posteridade haja de os louvar como honrados amigos e defensores do talentoso hebreu.

A longos termos, António José da Silva visitava Sara, nos primeiros meses. Depois, amiudaram-se as visitas. Por fim, ao cabo de um ano, o coração do jovem não estava sossegado na presença nem na ausência de Leonor. Esperança inquieta ou inquieta saudade divertiam-lhe a ideia do estudo, mormente do árido estudo do Direito, posto que ele, vasta capacidade para tudo, despachava os feitos que o seu pai considerava dignos de mais hábil e engenhoso articulado.

Já o bacharel, quando Oliveira lhe pedia vénia para galantear a judia adorável, sorria ao requerimento jocoso do amigo, e aconselhava-o que dissesse da sua justiça no tribunal dela, por ser o competente.

Com as alvoradas do amor, dilucidou-se a escureza das suas cogitações, desnoitou-se — lhe o coração, repontaram ideias claras e alegres, e, a poucas voltas, fez-se dia esplendidíssimo, vida nova no íntimo e no exterior do jovem.

Renasceu o gosto e vocação da comédia. Rebuscou os seus papéis esquecidos; uns poucos existiam ainda, que o maior número deles rasgara-os João Mendes, receando que o Santo Ofício fizesse busca e lhes espremesse a herética peçonha que eles, apertados entre mãos de inquisidores, gotejariam certamente.

A ópera, ou comédia, que António José prediletamente polira e repolira em Coimbra, como peça com que tencionava estrear-se, era a Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança. Esta, e mais outras com que, mais tarde, o hebreu levantou a meio a quebrada coluna da sua glória, lia ele à numerosa assembleia de fidalgos que Diogo de Barros convidava em honra do engenhoso jovem. Estas leituras, por onde o seu nome se divulgara até às camadas inferiores da cidade, ser-lhe-iam de muito desprazer, se Leonor as não agradecesse, como favor e brinde feito especialmente a ela. Decerto era; que a índole melancólica de António José da Silva desdizia das gargalhadas com que o auditório vitoriava as cenas ridentíssimas do D. Quixote, da Esopaida e do Anfilrio. E todavia, Leonor, cerimoniosamente, e não do coração lhe agradecia. Do D. Quixote, especialmente, uma cena das mais cómicas, sem ser das menos urbanas em linguagem — esmero pouco usado dos dramaturgos francos e populares daquele tempo — , repetiam-na de memória os admiradores de António José da Silva. É a cena VIII. D. Quixote declama em solilóquio numa floresta, e diz:

“Há dias que trago no pensamento uma coisa que me tem causado grande preocupação! Dar-se-á caso que os meus inimigos encantadores tragam transformada a beleza da senhora Dulcineia na figura de Sancho Pança! E os motivos que tenho para isso é ver a paciência com que este escudeiro me atura as minhas impertinências sem salário nenhum; e ver que jamais foi possível ver eu Dulcineia no seu original e nativo esplendor. Tudo pode ser que seja; pois se leem, nos antigos livros de cavalaria andante, outras transformações de ninfas, ainda em mais ruins figuras, qual a de Sancho Pança, e porque este pensamento não é fora de conta, bom será averiguá-lo, que a diligência é mãe da boa vontade. (Entra Sancho.)

Sancho

Senhor, o rocinante está esperando que Vossa Senhoria o cavalgue, e tem dado tais relinchos, pulos e... que suponho nos prognostica alguma boa ventura.

D. Quixote

E, se bem reparo agora nas feições deste Sancho, lá tem alguns laivos de Dulcineia; porque, sem dúvida, Sancho, às vezes, o vejo com o rosto mais afeminado, que quase me persuado está Dulcineia transformada nele.

Sancho

O meu amo está no espaço imaginário! (À parte) Ah!, senhor, toca a cavalgar, que o rocinante está selado e o burro albardado. Senhor, Vossa Senhoria ouve?

D. Quixote

Sim, ouço. Que seja possível — prodigioso enigma do amor! — galharda Dulcineia del Toboso, que os mágicos antagonistas do meu valor te transformassem em Sancho Pança!

Sancho

Ainda esta me faltava para ouvir e que aturar! (À parte) Que diz, senhor?, está louco?, com quem fala Vossa Senhoria?

D. Quixote

Falo contigo, Sancho fingido, e com Dulcineia transformada.

Sancho

Se Vossa Senhoria algum dia tivesse juízo, dissera que o tinha perdido. Que Sancho fingido ou que Dulcineia transformada é esta?

D. Quixote

Não sei como agora fale, se como a Sancho, se como a Dulcineia! Vá como quer que for: saberás que os encantadores têm transformado na tua vil e sórdida pessoa a sem igual Dulcineia! Vê tu, Sancho amigo, se há maior desaforo, se há maior insolência destes feiticeiros, que em mascarar o rosto puro e rubicundo de Dulcineia com a máscara horrenda da tua torpe cara!

Sancho

Diga-me, senhor, por onde sabe Vossa Senhoria que a senhora Dulcineia está transformada em mim?

D. Quixote 

Isso é o que tu não alcanças, simples Sancho; pois sabe que nós, os cavaleiros andantes, temos cá um tal instinto que nos é permitido conhecer onde está o engano e transformação pelos eflúvios, que exala o corpo, e pela fisionomia do rosto.

Sancho

... Que parentesco carnal tem a minha cara com a da senhora Dulcineia? Ora eu até aqui não julguei que Vossa Senhoria era tão louco! Julgo que nem na vida de Vossa Senhoria se conta semelhante desaventura!

D. Quixote

Quanto mais te desconjuras mais te inculcas que és Dulcineia; deixa-me beijar-te os átomos animados desses pés, já que me não permites tocar com os meus lábios o jasmim dessa mão, dulcíssima Dulcineia! (Chega-se D. Quixote para abraçar Sancho.)

Sancho

Aqui-del-rei que não sou Dulcineia! Tire-se lá!, olhe que lhe dou uma canelada!

D. Quixote

Ora, meu Sancho, diz-me aqui em segredo se és Dulcineia, que eu te prometo um prémio.

Sancho

Como, senhor, lho hei de dizer? Sou tão macho como Vossa Senhoria.

D. Quixote

Sancho, nesse mesmo dengue agora confirmo mais que és Dulcineia.

Sancho

Ora leve o diabo o dengue! Que queira Vossa Senhoria que à força seja eu ensanchada, ou Sancho endulcinado! Ora pois, já que quer que eu seja Dulcineia, para cá que lhe quero dar dois coices. 

Tu me queres dar coices? Agora vejo que não és Dulcineia; pois Dulcineia tão formosa e tão discreta, nunca podia ser besta, nem ainda transformada para dar o que me ofereces com a tua grosseria. “

Acabada esta leitura”, prossegue Costa e Silva, “algumas vezes interrompida pelo riso, Bocage prosseguiu: — Então? Que te parece? Não é isto uma lembrança bem original, bem graciosa e bem própria? E o judeu não soube tirar dela um grande partido produzindo uma cena bem cómica? W, esta ideia devia ter ocorrido a Miguei de Cervantes!“

Até aqui o amigo de Bocage. Que outra ordem de considerações mais literárias e filosóficas não faria Elmano, ponderando o ingente infortúnio do engenhoso hebreu, mormente nos dias que passou no cárcere da Inquisição! Manuel Maria Barbosa do Bocage, se lá tivesse entrado cinquenta anos antes, não sairia para mais longa vida que António José da Silva. As feras de Domingos de Gusmão, na época de Bocage, rugiam apenas, acorrentadas à jurisprudência civil. O marquês de Pombal arrancara-lhes os dentes, e emprestara-lhos uma vez para despedaçarem o padre Malagrida.

CAPÍTULO IX

Lourença Coutinho, como visse restaurar-se o amor ao estudo, o gosto das comédias, e o contente viver do filho, entendeu ativamente no consórcio almejado e prometido de tão longe. Contava ela com a vontade do seu António, e tinha como segura a condescendência de Leonor.

Enganou-se na mais importante parte dos seus cálculos. Leonor, assim que a sua mãe formalmente lhe lembrou os antigos compromissos, respondeu que sempre considerara brincadeira da sua mãe com a mãe de António o contrato de união eterna entre duas pessoas, uma das quais nasceu alguns anos depois. juntou que aceitara a correspondência de António José, para não desagradar a sua mãe, e na esperança de, alguma hora, se aproximar e sentir por ele o interesse que a distância não podia inspirar-lhe. Acrescentou e concluiu dizendo que o facto de se aproximarem não era bastante a resolvê-la a casar-se, nem a sua idade era ainda própria de tão grave decisão. Pedia, pois, cinco anos de espera; e, aos vinte, se decidiria.

Estas razões, literalmente traduzidas, queriam dizer que o não amava. Isto não é censurável nem extraordinário. O que a mim me quer parecer louvável pouco menos de nada é que Leonor, farta de ouvir contar as travessuras, os escândalos e a libertinagem do amante de Joana Vitorina e doutras do mesmo jaez, não obstante, sentisse e escondesse de todos profunda e devoradora paixão por Francisco Xavier de Oliveira, desde que, à saída do tribunal de Valhadolide, viu de novo o gentil jovem que a tinha querido salvar, e a sua mãe, pela porta da sacristia! O caso não se recomenda aos louvores de quem lê, repito; mas não é estupendo nem culpável. Leonor vira a ansiedade inútil daquele português, soubera depois que a rogos dele saíra pelas desamparadas presas o alcaide; via-se livre; e, apenas livre, dava de olhos e de coração reconhecido nos olhos e talvez no coração do belo rapaz, que saíra da sua terra para, ao lado do velho Barros, lhe ser guia e companheiro. Raros amores e até poucas paixões nascem e flamejam tão desculpáveis e bonitas!

Francisco Xavier, posto que não por amor, antes por cavalheirismo e obséquio ao seu amigo encarcerado, fosse a Valhadolide, durante a jornada teve uns vislumbres do sentimento que fizera nascer. Fechou os olhos da alma para não vê-los; todavia, o coração não se retraía de todo em todo aos honestos cometimentos da lindíssima judia. Francisco Xavier dizia entre si: “Se ele a não amasse!...“, e ela provavelmente iria dizendo: “Se eles se não estimassem...”

Ambos compreenderam e como em silêncio se comunicaram o melindre das suas posições.

Ora é certo que Francisco Xavier estava maniatado àquele baixo amor da cigana; estava, e com pejo de si pesava entre mãos o gravame de tão vergonhosos ferros; pode ser, porém, que os quebrasse de impetuoso empuxão, se Leonor lhe dissesse: “Tenho liberdade para ser tua; podes amar-me sem desonra. “

Viam-se frequentes vezes na sala de Diogo de Barros. O rosto de Leonor iluminava — se, quando o jovial rapaz entrava, contando bruscamente aventuras da devassa camarilha do Salomão português, ou rasgadamente verberava a hipócrita devassidão do clero, sem que os brados da mãe o coibissem. Leonor antes queria este arrojo que o assustadiço acanhamento de António José; antes as risadas estrídulas do amante das ciganas que as deplorativas lamentações, e concentrada amargura do flagelado dos cárceres; antes a descrição enérgica e fogosa de uma peça de touro que a leitura de uma comédia.

Uma vez, bem se lembram, perguntava Francisco Xavier ao seu amigo se amava Leonor. A resposta foi de feitio que o mancebo poderia, sem desdouro, aceitar a alma que se lhe oferecia sem grandes rodeios. Não o fez assim. Viram que ele curou de afastar as nuvens de sobre o coração do amigo, para que o amor da israelita pudesse lá chegar com o calor da esperança e das alegrias. Depois, ao passo que António José cobrava alento e se reanimava debaixo do olhar menos amorável que piedoso de Leonor, Francisco Xavier afastava-se, pretextava jornadas, ocupações, divertimentos, e — Deus e ele sabiam a dor do sacrifício! — contava na sala de Diogo de Barros, em presença da pálida menina, as suas paixões passadas, os seus amores presentes, e as suas esperanças em designadas mulheres da melhor fidalguia, umas para amantes, e outras para dentre delas eleger a esposa, a companheira da vida.

E, no entanto, Lourença Coutinho admirava-se e ofendia-se das hesitações de Sara, toda vez que ela a interrogava não já sobre a vontade da filha, senão sobre o tempo de se casarem os prometidos noivos.

— Pois tu não sabes?... — perguntava Lourença. — Não sabes quando será?!

— Não sei... — respondeu Sara enfim, muito apertada pelas importunações da amiga. — Não sei, porque Leonor não declara quando, e eu, obedecendo à vontade do meu Jorge, não a obrigo a declarar-se; o mais que posso é aconselhá-la; e muitas vezes lhe tenho inculcado as vantagens deste enlace; mas, se ela me diz que só dos vinte anos em diante se há de resolver, que queres que eu lhe faça? Esperemos, Lourença. O teu filho está novo; ela está uma criança; os haveres de parte a parte são por enquanto poucos... Esperemos, minha amiga, e gozemos com a felicidade de ver que eles se amam tranquilamente, e não desconfiam da lealdade um do outro...

— Mas o meu António não cessa de perguntar... — atalhou Lourença.

— Responde-lhe isto mesmo. Diz-lhe que se goze da sua liberdade nestes cinco ou seis anos, que lhe não há de faltar tempo de viver cativo dos encargos de marido e pai. Quanto mais cedo se casarem, maior número de filhos hão de deixar para aí provavelmente pobres.

Esta resposta espinhou vivamente o amor-próprio e o coração também de António José. Deliberou-se a interrogar Leonor, suspeitoso de que, por acanhada modéstia, e melindre talvez inconveniente, desmerecesse no conceito da enérgica filha de Jorge de Barros. Mais dolorosa suspeita o feria, e era temer-se de que a bisneta do contador-mor, e a descendente dos Teles pela sua avó materna, se quisesse esquivar ao desdouro de aliar-se a um homem da classe meã, neto de fazendeiros e bisneto de pobres colonos judeus, que tinham ido de Portugal para a capitania do Rio de Janeiro.

Resolvido a desenganar-se por si, procurou o lanço de estar a sós com Leonor. Foi mais lastimável que eloquente. Almas aquecidas ao fogo místico do ideal são as menos idóneas para expressarem afetos grandes sem se apoucarem nalguma baixeza, de que raras mulheres levantam o homem. Convinha-lhe um airoso orgulho; o amor abateu-o à humildade. A mulher que ama não conhece isto; a que é tão-somente amada chama-lhe impertinência e sensaboria.

Não obstante, Leonor dava-lhe a compensação da delicadeza; e à poesia da paixão respondia-lhe com a poesia da esperança. Era cedo, dizia ela, cedo para si e cedo para ele.

— Eu tenho sido desgraçada — juntava Leonor. — Fiquei triste, muito mais triste do que era, desde a prisão de Valhadolide. Estou a convalescer das torturas da alma, que começaram com o falecimento do meu bom pai. As lágrimas ainda hoje me afogam, quando me lembra, que é para sempre, a irremediável perda que sofri. É preciso muito coração para nós passar destas tristezas ao contentamento de esposa; e aqueles que se casam, na esperança de despirem depois os lutos da alma, vão enganados: é o que eu penso, e nem meu tio Diogo nem minha mãe sustentam o contrário.

— Sustento-o eu — disse António José da Silva. — Com aquela décima jocosa que a sua mãe mandou para Amesterdão? Não, Leonor. Não falemos gracejando. O homem, que escrevia aquelas trovas, acabou. Delas me recordo escassamente... Vejo-as como folhas secas da minha primavera. O que eu hoje lhe deveria dizer em verso, não sei eu dizê-lo. Lágrimas não se escrevem: ou as decifra a mulher que ama, ou, senão, Deus. Porque me não ama, Leonor?

— Quando lhe disse eu que o não amava, senhor Silva?... — Senhor Silva... Que urbano tratamento! — acudiu o hebreu, com dilacerante sorriso. — Que desengano! Que calúnia eu lhe assacava quando à minha consciência dizia que a senhora Dona Leonor de Barros me amava...

— Eu não sou Dona Leonor de Barros — atalhou a filha de Sara. — Sou Leonor Maria de Carvalho. Os meus avós matemos apelidavam-se Carvalhos. O nome do meu pai tenho-o no coração; mas não careço dele nem para venerar sua memória, nem para me fazer respeitar do mundo. O meu pai tem ilustres parentes em Lisboa. Não quero que eles o maldigam porque deu os seus fidalgos apelidos à filha de Sara, à neta de uns judeus, que as chamas queimaram há cinquenta anos em Lisboa. Chame-me, pois, Leonor Maria de Carvalho, que eu hei de provavelmente assim morrer.

António José da Silva tomou delicadamente a mão de Leonor, e disse-lhe com mavioso enternecimento:

— Abra-me com esta mão a porta do paraíso.

— Quando for tempo, se Deus assim o tiver destinado.

— Diga-me, ao menos... que não chore...

— Não chore, que os homens a chorar não parecem bem.

— Que fria alma! — murmurou António José.

Entraram pessoas à casa onde correu este diálogo. Vinha entre elas Francisco Xavier de Oliveira, que relanceou olhos suspeitos ao rosto do seu amigo, e viu lágrimas. Ao mesmo tempo, encarou em Leonor, e traduziu a veemente satisfação que a alvoroçara, no instante em que o vira.

Tomou o braço de António José da Silva, e passou com ele ao jardim do palacete. Pediu-lhe explicação das lágrimas. Silva carecia de respirar no seio do seu melhor amigo. Abriu-se, expandiu-se, desatou novos choros dos olhos injetados, e referiu sumariamente a prática dolorosa que tivera com Leonor.

Francisco Xavier escutou-o silencioso; fez com ele alguns passeios no jardim, e voltou à sala.

— Que novidades conta, senhor Xavier de Oliveira? — perguntou uma das damas da casa.

— Não sei quase nada, minha senhora.

— Teremos brevemente touros? — perguntou um neto de Diogo de Barros.

— Provavelmente teremos, porque chegou a notícia de se ter celebrado o casamento do príncipe Dom José com a infanta de Espanha. Logo ouvirão o repicar dos sinos que pedem luminárias. No dia treze vai o nosso amigo conde da Ericeira ao paço recitar um discurso panegírico sobre os desposórios da princesa das Astúrias, e o marquês de Valença recita o panegírico do príncipe. Estes dois sujeitos, de quem aliás somos amicíssimos, se lhes fecharem a válvula dos panegíricos morrem entouridos. Andam há vinte anos a esmoucar as paredes do templo da memória a ver se lá se enfiam por uma fenda. Parece — me que os vindouros não lhes hão de dar mais importância do que a mim!

— Cala-te, má-língua! — disse o ancião Diogo de Barros. — Deixa lá os nossos sábios trabalhar na redenção das letras pátrias. Nem todos hão de fazer versos... e travessuras, como tu.

— Versos e travessuras, meu prezado amigo, está tudo por um fio. As rapaziadas cedem o passo à circunspeção, que vai abrir-me o seu plácido abrigo.

— Aí vem uma mentira das tuas, Francisco! — disse Diogo. — Temos o Roberto do Diabo casado! É o que nos queres encampar?

— É o que vai suceder, senhor Diogo de Barros — redarguiu com gravidade Francisco Xavier. — Se eu citar o respeitável nome da senhora que vai ser minha esposa, espero que me façam a justiça de crer que eu não viria aqui zombar, associando às minhas brincadeiras o nome de uma menina que vossa Senhoria e todos que a conhecem consideram.

— Se assim é — disse Diogo — podes dizer, que todos te acreditaremos; mas reflexiona, Francisco!... Não te responsabilizes a dar explicações, se o casamento se não realizar; nem queiras que a sociedade as dê, se as tu não deres.

— Refleti — disse Xavier de Oliveira. — A senhora com quem vou casar-me é Dona Ana Inês de Almeida.

— Nome respeitabilíssimo, na verdade — acudiu Diogo de Barros — , tanto por nascimento como por virtudes herdadas e próprias. Conheci muito de perto o pai dessa menina, quando ambos éramos ouvidores na índia. Ele dirá qual de nós volveu de lá mais abastado; mas o certo, a que ele não pode faltar, é que pobres fomos e pobres voltámos. Cada um de nós casou com a sua prima, e então tivemos casa. Eu desisti da carreira para cuidar dos bens; ele seguiu os lugares, e pela escala da probidade subiu a desembargador do paço. Parabéns te damos, Francisco, e aos teus pais. Ligas a virtude dos teus avós às virtudes de uma estrema da família, tão antiga como a tua. Sê digno do favor da Providência Divina!

Durante o dizer de Diogo de Barros, Leonor saiu da sala, pretextando qualquer coisa. Francisco Xavier viu sem reparar; António José da Silva viu e reparou. As restantes pessoas olharam-se reciprocamente. Uma das senhoras disse:

— Eu dou-lhe os emboras, senhor Xavier; mas...

— Mas quê, minha senhora? — perguntou Oliveira. — Consta que Dona Ana de Almeida é muito doente do peito, e promete pouca vida.

— Assim dizem — disse o jovem — ; mas quem tem tanta vida no coração dará dela a remanescente para alimentar o corpo, que é o mais fácil de sustentar. E, se a vida do coração não bastar, dar-lhe-ei da minha, que é muita e fará o milagre de ressuscitá-la.

Anunciou-se na sala que Leonor estava em ânsias aflitivas. Sara saiu logo acelerada, e as damas seguiram-na.

António José da Silva acercou-se de Francisco Xavier, e disse-lhe à puridade:

— Leonor amava-te.

— E eu estimava-a muito a ela, e por igual a ti. Faz de conta que não compreendemos este incidente. É necessário que ela me odeie, se porventura as tuas suspeitas são fundadas.

Os cavalheiros conversaram sobre coisas do Estado. Volvidos vinte minutos, Leonor entrou na sala com risonho e composto rosto. Os homens rodearam-na com perguntas sobre o seu estado.

— Não foi nada — respondeu ela. — Foi uma pequena dor que a amizade das minhas primas exagerou. Sinto-me boa.

A conversa continuou. Leonor nunca estivera tão animada. Falou dos portugueses poetas com quem travara conhecimento em casa do seu pai. Recitou algumas poesias de um judeu de Leiria chamado Manuel do Leão, que lá viveu, cantando as festas de Portugal, e lá morreu para que a pátria o não levasse ao capitólio de algum auto-de-fé. Citou muitas poesias do judeu; disse, porém, que para si a mais dileta era uma que começava:

Recolheram-se os sóis, fechou-se o dia, mas não se abriu a noite, pois se via outra manhã...

Note:

Vem a poesia no Triunfo Lusitano — impresso em Bruxelas em 1688. Manuel do Leão morreu em Amesterdão de provecta idade.

Muitos compreenderam a alusão. Pobre menina!, Julgou que eram todos tolos, excetuado Francisco Xavier de Oliveira.

CAPÍTULO X

Anunciou-se no portão dos Barros o almoxarife do palácio da Bemposta, para haver de falar à viúva do senhor Jorge, neto do contador-mor Luís de Barros.

Sara, assim que recebeu o aviso, lembrou-se logo do Duarte Cotinel Franco, e da misteriosa aversão de Lourença Coutinho ao amigo do seu filho.

Duarte, entrado à presença de Sara, expôs difusamente o propósito da sua visita, fundada nos boatos correntes a respeito de um tesouro enterrado na quinta da Bemposta, de um anel transmitido com o segredo do tesouro a Jorge de Barros, e da cláusula da escritura de venda da dita propriedade, mostrando o traslado que ele Duarte fizera tirar da nota do tabelião. Dito isto, declarou ser desde menino particular amigo de António José da Silva, o qual, segundo a voz pública, brevemente esposaria a filha do senhor Jorge de Barros. juntou, com muitos recamos de palavreado, que ele desde muito pensava em ser o restaurador daquela riqueza soterrada; e lamentava que a viúva e filha de Jorge de Barros vivessem pobremente podendo gozar-se de rica independência. E, portanto, concluindo ao fim de estirada parlenda, ia ele solicitar de Sara que consentisse em ser rica, dignando-se confiar da probidade inteira e da amizade extremosa do amigo do seu futuro genro, ou o anel, ou a declaração do local onde Luís Pereira de Barros enterrara o tesouro.

Sara, sem tergiversar, como quem já trazia de muito urdida a resposta, disse que poderia ser que o tesouro existisse na Bemposta, ao tempo do falecimento do avô do seu marido; sabia, porém, que o revolvimento dos alicerces e jardins da casa, feito por ordem da sua sogra, provavelmente descobriu o cofre, se ele existia. Enquanto ao anel, disse que nunca vira ao seu marido anel com tal significação, nem lhe constava que ele o tivesse.

Redarguiu Duarte Cotinel, lastimando-se de não merecer a confiança da senhora, e fazendo votos porque ela se não fiasse doutrem, e arriscasse o completo perdimento da riqueza; dando assim a entender que julgava mentirosa a negativa de Sara, e verdadeiro o boato do anel.

A viúva de Jorge, ao outro dia, perguntou a António José se tinha em boa conta a probidade do almoxarife da Bemposta. Respondeu António que, desde menino, o tratava, e sempre o encontrara leal amigo, homem de bem, e dotado das excelentes qualidades que em tão verde juventude o fizeram digno do almoxarifado da Bemposta. Sara referiu o que passara com ele. António José disse que a não aconselhava em coisa de tanto melindre, bem que, se ele fosse o senhor daquele tesouro, insuspeitosamente comunicaria o segredo a Duarte Cotinel Franco.

A viúva ouviu o parecer de Diogo de Barros, que foi contrário ao de António José. A razão com que o velho desabonava o almoxarife não era judiciosa. “De tal árvore”, dizia ele, “não pode sair bom fruto. Eu conheci o tal capelão da Bemposta, cujo filho é Duarte; conheci-o espião de Castela em Portugal e espião de Portugal em Castela. Foi frade, e secularizou-se depois. Vivia em mancebia escandalosa, e pregava sermões às rainhas mulheres de Dom Pedro segundo. Fez-se confessor dos infantes, capelão-mor, e qualificador do Santo Ofício, tendo começado sua vida na forja do pai, que trabalhava de ferreiro à porta do marquês de Ferreira, à custa do qual fez frades dois rapazes e freiras três raparigas, que em pequenitas vendiam arféloa na Praça do Terreiro do Paço e na feira do Rossio?

No entanto”, prosseguiu Diogo de Barros, “pode ser que ele seja boa pessoa. Será; mas a ocasião, diz o provérbio, faz o ladrão. Esperemos, minha sobrinha. Por enquanto, não se vos é necessário aquele tesouro.“

Duarte Cotinel, descoroçoado dos bons efeitos da tentativa, procurou António José, para instigá-lo a mover Sara. O hebreu desculpou-se dizendo, como sempre dissera, que não tinha certeza de existir tesouro nem o anel em poder de Sara.

— Mas, se casares com a filha — observou o almoxarife — e o anel te for na mão da esposa, já sabes que aqui estou para te desenterrar o cofre, e entregar-to sem um ceitil de menos.

— Sei que o farás, Duarte, e de ti só confiarei o segredo, se algum segredo existe. Mas o mais certo é eu nunca possuir a mão nem o anel de Leonor...

Eu ainda vi relíquias desta feira há trinta anos, em tempo que a Feira da Ladra começava na extrema do Rossio, e abraçava o Passeio Público pelas duas ruas laterais. Que saudades eu tenho de uma nora que ali gemia no pátio do duque, e daqueles pucarinhos dos alcatruzes! Lastimo o leitor menor de quarenta anos, que não ouviu gemer a nora. nem viu aqueles alcatruzes do pátio do duque, e nem sequer apalpou, como eu, as paredes da Santa Casa que pareciam exsudar sangue de hebreus. Hoje, no lugar dos alcatruzes, está um barbeiro, que é nora de parvoíces políticas; no melhor do passeio, onde nós goza sombra... de noite.

No local onde gemiam judeus, hereges e feiticeiros, uma vez por outra, geme a arte; e eu, desgraçadamente, deste ofício tão santo como o outro, também tenho sido inquisidor.

CAPÍTULO XI

Dias depois daquele inesperado anúncio de casamento, Francisco Xavier de Oliveira, desquitado da influência mágica da cigana, dava a mão de esposo a D. Ana Inês de Almeida, e logo na próxima semana era agraciado com a mercê de cavaleiro fidalgo da casa real, e cingia a espada de cavaleiro professo da Ordem de Cristo.

Leonor, até então, para sustentar o fingimento, digamo-lo assim, segurou a máscara na cara com penetrantes agulhas. Custava-lhe tormentos indizíveis aquela afetação de indiferença. Devia de estar-lhe muito enraizado na alma aquele amor, tanto mais violento no desengano, quanto abafado estivera no recôndito do peito.

Sara adivinhou-a; abriu-lhe com a chave da ternura o mistério; achou uma fonte de lágrimas represadas. Ajudou-a a chorar, e diligenciava sempre aliviar-lhe o coração, chamando-lhas à face. Leonor pediu encarecidamente à mãe que saíssem de Portugal para Amesterdão. Lembrava-lhe as profecias que fizera, ao separar-se dos ossos do seu pai e do afeto extremoso da sua querida gente, dos Sãs que tantos infortúnios, com as suas lágrimas, lhe agouraram.

Não ousava Sara contradizer a filha; senão antes lhe pedia que, por piedade, a não acusasse, que o seu arrependimento lhe bastava para castigo e flagelo. Instava, porém, Leonor na volta para Holanda, como meio de esconjurarem maiores infortúnios, que maiores lhos pressagiava o coração.

Queria Sara condescender; mas não tinha força para romper os laços com que a boa parentela do seu marido a soubera prender, não tendo em vista mais que honrar a memória de Jorge, nas pessoas mais queridas, por quem ele tanto sofrera, e, ao fim de breve e desgostosa existência, deixara pobres. Depois, não saberia Sara dizer que delícias lhe era aquele ar e viver em Lisboa, querida de fidalgos, ameigada de damas, que se não dedignavam de a chamarem sua prima. De mais disto, a amizade de Lourença Coutinho, que não cessava de a querer disputar à posse dos parentes. Sobrevinha ainda a compaixão de António José da Silva, o qual, a juízo dela, era dotado de excelências raras, e próprias da felicidade de uma esposa. Como se tudo isto não fosse empeço aos rogos de Leonor, acrescia ainda a esperança ambiciosa, mas razoável, de possuir as riquezas da Bemposta, com as quais sua filha poderia aspirar a jovens de nascimento e bens de fortuna iguais aos tão encarecidos e invejados dotes de Francisco Xavier de Oliveira.

Assim foi protraindo Sara a decisão, até que o tempo deliu a pouco e pouco o maior da dor, de modo que Leonor, condoída da sua mãe, e gravemente repreendida pelo tio Diogo, deixou de falar na ida para Amesterdão, e aparentemente vivia conformada, saindo raras vezes às salas, e quase nunca, se lhe diziam que lá estava António José da Silva.

Entrou também o desesperar e o desenganar-se na clara razão do hebreu, depois que ele, com os pés sobre a dignidade própria, lhe escreveu lamentosas cartas às quais Leonor respondia com o silêncio ou com uma sequidão ainda pior.

Naquele tempo, o poeta apaixonado não desdenhava o socorro da musa para expressar a sua angústia. Nos tempos de agora, seria ridículo o malfadado amante que, em vez de prosa a rever lágrimas, enviasse à ingrata quadrinhas de sílabas acentuadas segundo a arte.

Nas óperas de António José da Silva, representadas anos depois, apareceram algumas trovas das que ele enviara a Leonor naquele período de excruciante desesperação. Nenhum poeta de torno quereria hoje assinar, em carta escrita à sua vizinha rebelde, as seguintes quadrinhas que o hebreu mandava suplicar misericórdia aos pés da desamorável menina:

Toda a minha alma

Se abrasa amante,

E a cada instante

Morrendo está,

Mais que os minutos

Só meus ardores;

Nos teus rigores

Conta não há.

Mas, ai 'tirana,

Se a quem te adora

Fosse esta hora

Hora d'amar!

Se ao leitor se figura que este versejar em redondilha menor era impróprio de alma apaixonada e queixosa; se entende que o verso hendecassílabo, o soneto, o majestoso soneto, foi sempre o respiradouro dos grandes poetas, crucificados no amor, como o amante de Laura, e como o suspiroso cantor de Natércia, aqui tem um dos sonetos que a impassível Leonor recebeu e leu enfastiada:

Não intento favores merecer-te,

Leonor, quando chego a idolatrar-te;

Que excedendo os limites só de amar-te

Nunca os princípios toco de querer-te.

Com razão poderias ofender-te,

Se ambicioso chegara a desejar-te,

Que, para ser mais fino no adorar-te,

Sem prémio, o sacrifício hei de incender-te.

Amar não é querer; que impura ardera

A chama de Cupido, se esperara

Frutos, aonde tudo é Primavera;

E, se acaso, ó Leonor, imaginara

Que na tua beleza prémio houvera,

Pelo prémio a beleza desprezara.

Parece mais engenhoso que apaixonado o poema. Cumpre, porém, saber, por honra do amante desditoso, que naqueles dias de decadência literária e século de chumbo da nossa poesia, os poetas, não só amorosos, mas ainda pendurados no triângulo, expiravam proferindo trocadilhos, gongorices, marinismos, uma coisa triste de ler-se, na qual António José ainda foi o menos pecador.

Hão de dizer os bardos modernos que esta poesia do hebreu é seca, desflorida, sem auras, sem borboletas. Não, senhores. António José da Silva também fez à sua esquiva poesias com borboletas. Por exemplo:

Borboleta namorada

Que nas luzes abrasada,

Quando expira nos incêndios

Solicita o mesmo ardor...

Tal, ó Clóris, me imagino,

Pois parece que o destino

Quer, por mais que tu me mates,

Que apeteça o teu rigor!

Se com tudo isto, o poeta não lograva comover Leonor, o defeito não era da poesia, digamo-lo em pró das camenas dos nossos avós: defeituoso era o coração da filha de Sara, se é que podemos arguir máculas em objetos que saíram das mãos de Deus, tão primorosos quanto nos cumpre presumir que ele se esmerasse na compostura interna do peito da mulher. Argumentamos fundamentados na perfeição exterior, feitas as exceções, que as há deploráveis, por dentro e por fora.

CAPÍTULO XII

Francisco Xavier forcejou por avassalar o espírito do hebreu a outra mulher. Nem António José da Silva se deixava alcançar de olhos que poderiam atar-lhe as asas da fantasia, nem as senhoras, parentas e conhecidas de D. Ana de Almeida, se prestavam a ser amadas de um judeu, que, dois anos antes, figurara no auto-de-fé, Francisco Xavier encomiava a levantada inteligência do seu amigo; recitava com entusiasmo os versos dele; abancava-o, nos seus jantares, à direita da sua senhora. Não era tudo bastante para que uma dama da sociedade alta se deixasse olhar duas vezes equivocamente pelo filho da judia Lourença.

António José olhou em si e compreendeu a sua posição aviltada nos salões de Lisboa. Refugiou-se na soledade do seu quarto, restabeleceu a intimidade que tivera com alguns frades, e consigo e com eles passava as horas, umas de pensamento doloroso, outras de recreada palestra literária.

De longe a longe, visitava Leonor. Perante ela não proferia expressão amorável nem queixosa. Escutava as conversas enfadonhas da sua mãe com a viúva; e, se Lourença, alguma vez, de indústria ou eventualmente, falava nos antigos projetos de casamento, em presença de Leonor, António José desafiava a menina a sorrir dos desígnios esquisitos das duas mães.

Leonor invejava a sorte das monjas cristãs. Aquele quieto viver à beira da sepultura parecia-lhe o bálsamo divino que a humanidade inventara para remédio dos seus desgraçados. Disse-o à mãe, que lhe respondeu soluçante. Comunicou as suas esperanças e desejos ao tio do seu pai. Diogo de Barros achou louvável o intento, menos a profissão, conjeturando de si para consigo que a raça materna lhe seria impedimento, que só os reis e os seus parentes costumavam vencer para darem hábito a cómicas e ciganas, umas que não podiam ser enterradas em sagrado, e outras que nem baptizadas eram. Margarida do Monte e a Gamarro eram exemplos recentes, e mais recente ainda o da freira de Santa Joana, amante que tinha sido de um dos infantes, mulher de mais encantos que vira Lisboa?

Note:

Esta religiosa, de apelido Silva, morreu esmagada entre as quatro paredes da sua cela no terramoto de 1755. A beleza já devia ter morrido.

Aceitou Leonor qualquer convento, e de qualquer modo. Pediu licença à mãe, coadjuvando-se dos rogos do tio. Depois de muito chorarem, mãe e filha, venceu Leonor, com promessa de passar alguns meses de cada ano com a sua família. Diogo de Barros preparou a entrada da sobrinha no Convento da Encarnação, de religiosas comendadeiras de Avis. Não lhe foi difícil provar que D. Leonor Maria tinha sangue da primeira nobreza, prova condicional para poder entrar como pensionária. Entrou alegremente para lá se engolfar nas suas tristezas. Má casa lhe escolheram para quem queria viver triste. As comendadeiras da Encarnação eram senhoras joviais, festeiras e dadas ao amor. As suas grades eram fontes de Vaucluse, onde mais felizes Petrarcas iam poetar. A liberdade, que estas professas beneditinas gozavam de sair, sob a responsabilidade da visita amiga ou parenta que as ia buscar de manhã e levar à noite, era uma liberdade geradora doutras muitas, que de si e por si geravam variados fenómenos de geração, com os quais andam grandemente povoadas as genealogias dos grandes senhores e grandes senhoras destes reinos. Ainda assim, o vício naquela casa tinha fidalga libré. S. Bento não se honrava de tais filhas, é isso verdade; mas a organização da sociedade de D. João V não as contava somenos elemento do seu luxo e policiamento.

Leonor competia com as mais belas, e primava entre as mais discretas. Mostrou-se, deixou-se ouvir, deixou-se admirar, deixou-se amar; e, depois, sumiu-se no seu cubículo. Chamaram-lhe esquisita, louca, ingrata às dádivas da opulenta mão da natureza. Não importou. Leonor não voltou aos palratórios, nem faltou aos seus deveres de pensionária. Costurava muito, lia pouco, e não rezava nada. A filha de Jorge, em coisas de religião, cria em Deus, criador, todavia imperfeito, porque ela, à imitação de abalizados filósofos, errava como eles, não querendo ver o perfeito no regirar evolutivo das harmoniosas imperfeições. Qual foi o autor que disse: “Homem solitário, das duas uma: ou santo ou demónio?” Da mulher sozinha, e de Leonor especialmente, direi que se há santidade, sem beneplácito de Roma, sem camândulas e sem água benta, santa era a filha da judia Sara.

Magoavam-na ainda as mordeduras da serpente do primeiro amor; soavam-lhe no seio uns rebates de saudades, que, por instantes, lhe enoitavam a mais clara luz do sol da sua cela: assim era; mas ninguém lhe ouvia queixumes, a ninguém consultara sobre os linimentos das suas feridas. Sofria calada e risonha?

Alegremente recebia as visitas da sua mãe e parentes. Lourença Coutinho ia à Encarnação com o filho, e alguma vez o filho sem a mãe. Leonor recordava-se das brincadeiras de ambos, na Covilhã, porque a mãe lhas entalhara na memória, contando-lhas frequentemente. Nisto passavam alguns minutos, e chamavam-se irmãos.

A visita de Lourença e do filho eram-lhe causa de dissabor, porque as fidalgas beneditinas conheciam de nome Lourença, mulher do letrado judeu João Mendes, e mãe do poeta Silva já penitenciado pela Inquisição.

Leonor sofria calada os remoques; não se queixava ao tio Diogo, por temer que a tirasse de lá. Aquele sofrimento parecia-lhe menor que o viver e tratar com muita gente, e o não ter um cubículo seu e defeso, às importunações.

E assim passou um ano, e cinco depôs o primeiro, triste sempre, sempre inflexível às maviosas súplicas que lhe fazia a mãe no sentido de aceitar o nobre e leal coração de António José.

Corria o ano de 1733. Leonor tinha vinte e um anos. Consoante ela tinha prometido, era chegado o tempo de decidir-se sobre o seu futuro. Perguntou-lhe a mãe qual era.

— Acabar aqui — disse ela. — Quando a mãe não puder dar-me a pensão, irei ser serva de alguma senhora noutro mosteiro. E Deus sabe que sacrifícios a mãe terá feito para me sustentar aqui!...

— Nenhuns, filha. Ainda tenho algum do dinheiro que Simão de Sã nos deu, como liquidado da herança do teu pai. Decides não casar com António?

— Nenhum de nós seria feliz. Não devo enganá-lo. Falta-me o amor que ele merece. Desperdicei-o... mas que remédio tem? Eu expio a minha cegueira, e ele abrirá os olhos quando Deus lhe mostrar mulher mais digna.

— E por quem te apaixonaste, filha!... — disse Sara. — Digno jovem era Francisco Xavier; não to posso negar, nem sei desfazer naquele brioso carácter; mas, logo que te ele deu como certa a sua indiferença, devias esquecê-lo, filha...

— Não pude; fiz tudo que podia, minha mãe. Tive o pensamento de me matar!...

— Deus de Israel! — exclamou Sara. — Pensava em matar-me, quando todos me viam rir, e falar como toda nós fala das coisas interessantes da vida. Eu sabia que, se o visse, depois, não podia aviltar-me; mas podia acabar comigo. Fugi-lhe para aqui, Poderia agora vê-lo sem alterar-me... Poderia... mas não quero experimentar. Ouvi dizer que Francisco Xavier enviuvou há dias, e que tem o pai a morrer...

— É certo, filha.

— Pois tenho pena imensa dele, se amava a esposa, quanto eu creio que ela o amasse... Começa a ser infeliz; desanda-lhe a roda. Enquanto foi mau, tudo lhe saía à medida do desejo; agora, que vivia honradamente, morre-lhe a mulher e o pai...

— E já me disse que sairá de Portugal assim que lhe faltar o pai, porque não pode viver entre estes desaforados hipócritas.

— Faz bem. Quem pudera também fugir daqui!... Se a mãe soubesse que sonhos... que pressentimentos!... Porque hei de eu pressagiar para mim um desastrado morrer!...

— Como, filha? — Lembro-me da Inquisição! Tenho dias que me não sai do pensamento o espetáculo horrendo!...

— Oh, filha!... por misericórdia, não me assustes!... — exclamava Sara.

E, poucas mais palavras ditas, a viúva saiu da grade, e entrou em casa quebrantada, queixosa e doente.

Poucos dias depois, Diogo de Barros foi buscar Leonor ao Convento da Encarnação para assistir à perigosa enfermidade da sua mãe. Ao princípio, quando Sara se queixava de dores da alma e ligeiros achaques do corpo, não se inquietaram extraordinariamente as pessoas, que se esmeravam em dar-lhe alívio noutras iguais doenças de espírito; mas, assim que a febre a prostrou, já a medicina viu-a com desconfiança. A viúva de Jorge de Barros tinha cinquenta e quatro anos; alvejavam-lhe, porém, os cabelos como aos setenta. Desde a morte do marido, o envelhecer foi tão rápido que, ainda sem as angústias e terrores do cárcere de Valhadolide, faria espanto em acabar-se e desfigurar-se assim a mulher, que aos quarenta anos dava invejas às formosuras em flor de juventude.

Leonor, aproximando-se do leito da sua mãe, compenetrou-se da certeza de a perder. Ajoelhou-se a pedir-lhe perdão dos terrores que lhe incutira com as suas visões.

— Não foi isso, filha — disse Sara. — A minha morte explicam-na os anos e as desgraças do passado. Vou deste mundo aflita... porque Deus te não levou diante de mim.

— Oxalá... — murmurou Leonor. — Do mais, que é morrer?, que sou eu neste mundo?... que faço eu aqui se nem já me é concedido ver-te feliz, pobre mulher?

A presença de Leonor parecia angustiá-la mais. A menina retraiu-se a um canto sombrio da alcova para chorar escondida da sua mãe.

O progresso rápido da doença ao seu termo fatal não dava intermitentes à esperança.

Ao quinto dia já a febre maligna se manifestara com os piores sintomas. Os intervalos de razão lúcida eram curtos.

Em um destes, Sara declarou que queria morrer na religião cristã, porque sabia que o seu padrinho Luís Pereira de Barros morrera como um justo, e o seu marido se confiara à Divina Providência, em vida, e pedira no dia final os recursos de um padre católico. Recebeu Sara os sacramentos corri fervor de catecúmena, Lourença Coutinho, israelita de consciência, assistiu com desgosto à fraqueza intelectual da sua velha amiga, como ela dizia ao marido. João Mendes da Silva, que então contava setenta e nove anos, quando sua mulher escondia o rosto amargurado para não ver as cerimónias da extrema-unção, disse — lhe:

— Deus sabe onde está a verdade, Lourença!... Nesta religião de Jesus de Nazaré vejo que há exemplos de vidas e mortes exemplares. Os cristãos morrem com uma certeza de castigo e recompensa... e nós...

— Também — concluiu Lourença. Um aceno de Sara, que parecia tranquila depois de sacramentada, fez aproximar Lourença e António José.

A moribunda pegou da mão de Leonor, e disse-lhe:

— Filha, atende à súplica da tua mãe. Pelas agonias desta hora te peço que sejas esposa deste infeliz jovem.

Leonor beijou-lhe a mão, e murmurou: — Sim, minha mãe... serei...

— Bem hajas do divino recompensador, filha do meu coração... Eu vos abençoo; sede bons; amai-vos... António, deixo-te a filha de Jorge de Barros...

António José da Silva ajoelhou ao lado de Leonor. Começou o arrancar da vida. Poucas mais palavras proferiu; foram curtos e quase serenos os paroxismos. Quando pensavam que Sara abria os olhos e lábios para ver e consolar quem a chorava, então foi ela que inclinou a cabeça para o ombro da filha, e expirou.

CAPÍTULO XIII

Leonor manteve a promessa feita à mãe expirante. Pediu que a deixassem despir o luto de órfã para vestir depois as galas de noiva. Era um ano de impaciente esperar; mas deliciosa impaciência para o hebreu. Já ele se não temia da quebra do juramento. E, para cúmulo de felicidade, Leonor dissera-lhe que seria sua, tanto porque prometera, quanto, ou mais ainda, porque o desejava ser.

Morrera, como se esperava, José de Oliveira, pai de Francisco Xavier. O conde de Tarouca, ministro plenipotenciário em Viena de Áustria, elegeu Francisco Xavier de Oliveira para seu secretário. Era esta a mais inquieta ambição do inimigo dos frades: sair de Portugal, ir para onde pudesse desabafar contra os hipócritas, escolher uma religião, ou menosprezá-las todas, sem receio de ser incomodado.

Despediu-se de António José da Silva vaticinando-lhe que nunca mais se veriam, salvo se o judeu procurasse terra, onde sua fantasia pudesse florir ao sol de Deus, aquecer — se ao calor das ideias novas, e não estar sempre a recear-se do calor das fogueiras da fé cristã.

António José da Silva, cego de amor, não teve olhos que vissem lacrimosos a ida do seu primeiro amigo. Sem temor de ofender-lhe a memória, abalanço-me a conjeturar que o judeu folgou de ver sair de Lisboa o homem, cujo nome ainda alvoroçava o peito de Leonor.

Saiu de Portugal Francisco Xavier de Oliveira em 19 de Abril de 1734. Mais tarde, iremos no encalço deste homem que vai indo sob o influxo de funesta estrela.

O contentamento espertou as glórias adormecidas de António José da Silva, as glórias do teatro. A ópera, que ele tinha concluída para ser posta em cena, era a Vida do Grande D. Quixote de Ia Mancha e do Gordo Sancho Pança. A companhia, que então representava no teatro do Bairro Alto, era boa e amestrada pelas lições e exemplo do famoso cómico espanhol António Rodrigues, que em Lisboa vivia lauta vida em galardão da sua eminente habilidade?

Foi D. Quixote para ensaios, que o autor dirigiu, por espaço de dois meses com incalculáveis aflições! O leitor entendido mais ou menos em arte dramática digne-se imaginar que mortificações alancearam o pobre autor, para meter em ordem os seguintes personagens da peça:

Dom Quixote. Sancho Pança.

A sobrinha de D. Quixote.

A ama do mesmo, Teresa Pança, mulher de Sancho. Uma filha do mesmo.

Um tabelião vestido de almocreve. Uma saloia num burro, Sansão Carrasco. O seu criado. Um diabo que vem no carro.

Outro diabo com muitos cascavéis Um homem que vem com o leão Belerma, Montesinos. Um que está na cova.

Caliope que vem na nuvem. Apolo e as musas.

Dois homens que são do moinho. Dois homens do barco. Um fidalgo. Uma fidalga. Um meirinho, Um escrivão, Dois homens que locam rabecas. Um homem que loca rabecão. Um médico, Um cirurgião. Um taverneiro. Uma mulher jovem com manto. Uma mulher velha em corpo. Um escudeiro. A condessa das barbas. Dois rebuçados. Dois homens para a audiência.

Ora, todos estes personagens deviam obedecer mais ou menos ao ensino do poeta, incluindo o burro da saloia, e o leão do homem; porém, as zangas e desalentos de António José da Silva eram incomparavelmente maiores no modo de fazer funcionar a tempo o chamado “aparato de teatro”, peças de magnífico espetáculo, de que acíntemente dou notícia para encovar o orgulho dos maquinistas modernos. Vejam:

Um carro com várias figuras dentro. Uma capoeira sobre um carro, em que irá um ledo, que sai fora ao seu tempo.

Um carro em que vem Dulcineia e várias figuras. Dois cavalos, um de D. Quixote, e outro de Sansão Carrasco. Dois burros, um para Sancho Pança, e outro para uma saloia.

O monte Parnaso com as musas, Apolo, e o cavalo Pégaso. Um barco, Um cavalo que vem pelo ar, e se lhe põe fogo. Uma nuvem. Um porco.

Este último personagem não voltou à cena — digamo-lo de passagem — desde António José da Silva. Supunha-se que o senhor Mendes Leal reabilitasse o porco, aqui há anos, quando povoou de camelos o teatro normal. A ocasião era aquela. Como passou, é de presumir que o porco se não logre de pisar outra vez o palco.

Vontade de ferro e coadjuvação dos primeiros talentos de Lisboa em tramoias teatrais, vingaram que a ópera se mostrasse ao público ansioso na noite de 14 de Outubro de 1733.

A ordem dos camarotes nobres estava adornada com as senhoras de primeira plana, que mal se viam por causa das gelosias.

O camarote dos frades, assim denominado por excelência, estava recheado de bons e devotíssimos teólogos, cujos narizes rúbidos. a custo podiam entrever-se através das rótulas? Na plateia, a pressão era sufocante. Pagavam-se as entradas a moeda de ouro; e, quando se anunciou que entrava em cena um porco e um cavalo que voava, os bilhetes subiriam a peça, se aparecessem vendedores.

As gargalhadas atroavam compactas desde a primeira cena. Riam os frades em contorções de júbilo, espirravam as damas simpáticos frouxos de riso, ria toda a gente, menos os poetas de Lisboa, que se tinham enfileirado, de antemão comprometidos a não acharem graça à comédia do hebreu. Parece que pressagiavam a trovoada eminente, e o raio fulminante da irrisão geral!

Chegou a cena VIII do 1.° acto. Ouvem-se músicas melodiosas.

D. Quixote

Não ouves, Sancho, uma suave harmonia?

Sancho

É verdade!, espere Vossa Senhoria, que lá vem voando o quer que é!

(Desce a musa Caliope numa nuvem, e D. Quixote e Sancho ajoelham. O cavaleiro da triste figura e o gordo pajem reverenciam a musa, que se abre nestes rogos ao donoso socorredor de aflitos.)

Caliope

Valente Dom Quixote de la Mancha, cavaleiro dos leões, eu sou a musa Calíope, a primeira e principal das nove, que assistem no monte Parnaso. Aqui venho aos teus pés enviada pelo meu amo, o senhor Apolo, o qual, como sabe que tens professado a estreita religião da cavalaria andante, e tens de obrigação o desfazer agravos, socorrer aflitos e restaurar honras perdidas, por essa causa te manda pedir encarecidamente queiras ir ao Parnaso, aonde se ele acha, cercado de uns poetas malédicos, que o querem despojar do trono; e juntamente para reformares a poesia, que se acha quase arruinada; para o que eu, da minha parte, como tão interessada neste desempenho, te suplico com o suave das minhas vozes, pois é certo que a música tem virtude para atrair os corações mais duros.

Sancho (À parte)

Aqui nos encaixa uma ária à queima-roupa!

(Caliope, defeito, cantou, enquanto o bravo pensa no modo de galgar ao Parnaso. Põe suas dúvidas à deusa, que lhas corta, arrebatando-o e mais o escudeiro numa nuvem. Aqui estamos já no Parizaso. Começavam a contorcer-se os poetas da plateia, já muita gente os tem de olho, e engatilha a risada para lha desfechar na cara.)

Apolo (Aos poetas)

Esperai, bastardos filhos, que cedo virá quem me vingue das vossas injúrias!

Poetas

Já não te reconhecemos, ó Apolo, por deus da poesia; pois qualquer de nós é Apolo, e cada ideia nossa uma musa.

Apolo

Assim vos atreveis a profanar o decoro que se deve aos meus apolíneos raios?!

(Aparecem D. Quixote, Sancho e Calíope.)

Poetas

Toca a investir ao Parnaso!

Apolo

Em boa hora venhas, valente Dom Quixote, que só a tua espada me pode segurar o trono e o laurel! Vem, vem a vingar-me destes poetazinhos, que sem mais armas que a sua presunção, querem não só competir com o meu plectro, mas ainda intentam despojar-me do Parnaso; e, como as armas e as letras são tão fiéis companheiras, quero-me valer das tuas armas para a restauração da minha ciência; e, como esta violência, que se me faz, não desmerece os empregos da tua cavalaria, peço-te que me socorras.

D. Quixote

Senhor Apolo, eu tomo sobre mim o seu desagravo; e já, desde agora, se pode assentar bem nesse trono que dele ninguém o há de arrancar.

Sancho

Senhor meu amo, penso que estou a sonhar! Que Vossa Senhoria entre no Parnaso, não é muito, porque é louco; porém, eu, que, sendo um ignorante, também cá esteja, é o que mais me admira! E daqui venho agora a concluir que não há tolo que não entre hoje no Parnaso!

D. Quixote

Diga-me, senhor Apolo, e como se chamam os poetas que tanto o perseguem?

Apolo

Essa é a desgraça, Dom Quixote; que os poetas que me perseguem não são de nome; e, contudo, cada um julga que é mais do que eu mesmo.

D. Quixote

Dizei-me, poetas de água doce!... (O ator, que proferia a apóstrofe, fitou os olhos na turba dos vates. A hilaridade mal deixava ouvir os brados retumbantes do esgrouviado cavaleiro.) Dizei-me, rãs que grasnais no charco da Cabalina! Dizei-me, cisnes contrafeitos, que vos banhais no lodo da Hipocrene: com que motivo quereis competir com o deus da poesia?

Poetas

Porque esse Apolo, como não inspira, não merece o nome de Apolo; e assim queremos tornar-lhe o Parnaso e reparti-lo entre nós.

Sancho

Senhor!, não se meta a brigar com os poetas que são piores que gigantes. Veja Vossa Senhoria que eles trazem um exército de dez mil romances, quatro mil sonetos, duzentas décimas, oitenta madrigais, e um esquadrão de sátiras volantes em silva que arranha. Veja bem no que se mete!

O ator, que proferia a apóstrofe, fitou os olhos na turba dos vates. A hilaridade mal deixava ouvir os brados retumbantes do esgrouviado cavaleiro.

D. Quixote

Nada me assombra; porque eu só com esta espada hei de vencer quantos poetas há no mundo. Cerra Espanha! Viva Apolo!, e morram os traidores! (Grande algazarra.)

Apolo

A eles, meu Dom Quixote, que a vitória é nossa!

Sancho

Aqui d’el-rei, que estou passado de parte a parte com um soneto em agudos!

D. Quixote

Já fugiram como mosquitos!

Sancho

Avança!, que com esta gente sou eu gente!...

Felizmente para os poetas, com pouco mais, baixou a cortina do primeiro acto. Alguns saíram e não voltaram a expor-se às brutais risadas daquele selvagem público, de todo desaparelhado dos menores rudimentos de educação. Os mais briosos propunham-se chibatar o ator, e os mais covardes ameaçavam o judeu, em tom comedido que não podia chegar aos ouvidos de António José da Silva.

Correu a comédia sempre vitoriada, tirante os lances em que apareciam diabos em cena, porque então os frades do camarote resmoneavam entre si, dizendo-se:

— Como é que a censura deixou passar estas galhofas, que insultam a religião católica?

— Bem se deixa ver a cauda do judeu por entre as farsadas da sua tramoia!... Queira Deus que o autor não tenha de ir ainda purgar-se destas fezes que lhe sujam o talento!... — observava um leitor de Teologia do Convento de S. Domingos.

Sem embargo, a reputação de António José da Silva estava confirmada pelo delírio da multidão.

>CAPÍTULO XIV

Os bens de fortuna do advogado João Mendes da Silva permitiam largas ao prazer com que o velho preparava casa com excelentes cómodos para receber a esposa do seu filho.

Alugou um espaçoso prédio no Largo do Socorro, trastejou-o com a mobília dourada, que ainda hoje relembra a época de D. João V, alcatifou os pavimentos, pendurou lustres, vestiu de azulejos o pátio e paredes das escadas, limpou e areou os passeios do jardim, murou de vasos os alegretes, plantou trepadeiras para afestoar abóbadas de folhagem; em tudo, com menineira alegria, pensou afanosamente o ancião, pedindo conselhos a Lourença, no tocante aos objetos dos aposentos de Leonor.

A noiva visitou a sua futura casa, com as suas primas, alguns dias antes do casamento; e, como visse o júbilo do venerável João Mendes, de Lourença e do filho, mais feliz e menos expansivo que eles, disse entre si: “Razão tinha minha mãe!... Esta família sente e goza as alegrias das virtudes antigas do povo escolhido.”

O dia da suprema felicidade da família Silva foi o vinte de Abril de 1734. As festas do noivado foram muito gozar na casa de João Mendes, onde apenas se viam os Barros, únicos parentes de Jorge, que cruzavam o limiar de um hebreu. Muitos outros tinham ido suplicantes ao escritório de João Mendes pedir-lhe a sua ciência; e esses mesmos encostavam-se despejadamente ao telónio de qualquer judeu, quando a bolsa lhes pesava menos que a fidalga soberba e os cristianíssimos escrúpulos. É verdade que estes, depois, lançavam lenha à fogueira dos credores, e assim saldavam contas, convictos de que Jesus Cristo, no juízo Final, sairia em defesa deles, contra as objurgatórias do Diabo, e depoimento dos judeus roubados. Santa gente, que não tem menos razão de ser canonizada que Pedro Arbués, do qual dizem que vai rezar o calendário.

Leonor estimava profundamente seu marido: a consciência não a deixava doer-se da falta daquele sentimento. A profunda estima dela valia mais que a superficial paixão de muitas. António José da Silva não sentia necessidade de ser mais amado. Se ele tivesse conhecido carícias doutras, denguices usuais e convencionais, delírios de poesia, que desfecham num insulso prosaísmo ao terceiro mês de vida marital, pode ser que Leonor lhe parecesse fria, fleumática e desamorável; porém, como ela tinha sido a mulher única da sua esperança, e perdida da sua alma a considerara, tudo que a outrem parecera tibieza de afeto, se lhe afigurava a ele amor, juízo, reflexão, e pode ser que um quebranto das amarguras da vida passada.

O hebreu, aporfiando em contribuir com metade das despesas necessárias à decência da sua casa, trabalhava muito e de fervorosa vontade nos negócios forenses, sem, contudo, levar mão das suas composições teatrais.

Poucos dias depois de casado, assistiu ele com Leonor à primeira representação da sua segunda comédia, intitulada: Esopaida ou Vida de Esopo. Nos dias deste nosso século bem criado qualquer marido que escrevesse a Esopaida não levaria sua mulher a vê-la em cena, e menos lha recitaria em família. E, naquele tempo, de tantos frades e virtudes, as coisas e frases que se figuravam e diziam no palco eram tais que hoje a polícia prende nós desbocada que as diz na rua. Aquelas senhoras não tinham nem deviam ter mais melindroso ouvido que a virtuosa e pia corte de D. João IR, à qual medianamente incomodavam as facécias obscenas de Gil Vicente, e o recitativo lúbrico e sórdido do choro de Maria Parda.

A segunda comédia corroborou o triunfo que o judeu alcançara na primeira. Andava — lhe o empresário de mãos postas rogando que lhe não desamparasse o teatro e o público para quem já nenhum outro autor português ousaria escrever, sem plausível susto de ser assobiado.

Em Maio de 1735, novo drama de António José acudiu à ansiedade das turbas, que tinham desamparado o teatro. Chamava-se a ópera: Os Encantos de Medeia. Esqueceram as vitórias das anteriores comédias, deslumbradas pela última. O autor saiu nos braços da melhor gente, que frequentava o teatro da Mouraria. O conde da Ericeira dignou-se visitá-lo no camarote, e chamar-lhe o Aristófanes português.

Em Junho deste ano, morreu João Mendes da Silva com oitenta e um anos de idade, abençoando esposa e filho, e a carinhosa Leonor que lhe colheu a última luz dos olhos embaciados, e se viu espelhada neles através das lágrimas do trespasse. Lourença Coutinho exorou muito a Deus que a levasse então; o juiz incompreensível indeferiu o requerimento.

Em Maio do ano seguinte, apesar do aumento do trabalho de escritório, que a clientela levava ao filho, tão famigerado como o pai, representou-se a quarta ópera de António José, denominada: O Anfitrião.

O hebreu tinha inimigos, não poderosos para o afrontarem barba por barba, mas de sobra infames para o indisporem no conceito dos piedosos. Azou-se-lhes a oportunidade na récita de O Anfitrião: aqui se fala em cárceres, em bárbaros juízes, em patíbulos, em polés. António José não estudara a filosofia do anexim. Não falar de corda em casa do carrasco.”

A palavra polé ia vibrada ao camarote dos frades, que — digamo-lo em honra da arte — estava sempre empilhado deles. No drama, um personagem entre ferros recitava os seguintes versos:

Sorte tirana, estrela rigorosa,

Que maligna influes, com luz opaca,

Rigor tão fero contra um inocente!

Que delito fiz eu para que sinta

O peso desta aspérrima cadeia,

Nos horrores de um cárcere penoso,

Em cuja triste lôbrega morada

Habita a confusão e o susto mora!

Mas ó deuses, se sois deuses

Como assim tiranamente

A este mísero inocente

Chegais hoje a castigar??

Os poetrastos, açoutados no D. Quixote, farejaram impiedade no quarteto; os frades viram clara alusão à injustiça do encarceramento no Santo Ofício.

Estas interpretações chegaram ao conhecimento de Silva. Indignaram-no, e logo protestou não mais escrever para intérpretes estúpidos e malvados.

Protestos de dramaturgo! A paixão era despótica, e tanto que venceu lutando com os rogos de Leonor no sentido de manter inquebrantável o protesto de mais se não expor às insídias de inimigos invejosos.

Tanto assim, que já no mês de Novembro de 1736, apareceu no teatro com o Labirinto de Creta. Estava cheio o teatro e os inimigos a postos para notarem a lápis as frases suspeitas. O autor esmerara-se em não dar brecha à maledicência. Não se vos depara frase ambígua nem expressão bicara no longo drama: os celerados, porém, escavaram, escavaram até poderem mostrar intenção ofensiva e atentatória da religião cristã. Sem embargo, porém, da parcialidade odienta, os aplausos excederam as ovações passadas.

Já se não irritou António José contra os biltres difamadores. Prometeu vingar-se com a fecundidade do seu talento, e preparou duas óperas para o ano seguinte. Apresentou a primeira no Carnaval de 1737, conhecida pelo título de Guerras do Alecrim e Manjerona; e, depôs esta, deu para ensaios as Variedades de Proteu.

— Não quero outra vingança! — dizia ele à esposa — , hei de afastar estes cães dos calcanhares com a nobilíssima arma que eles não merecem. Provar-lhes-ei que fundo o teatro nacional, enquanto eles escavam com as garras a sepultura da sua inutilidade. O conde da Ericeira encarregou-se de dissuadir algum inimigo dos temíveis que tenho. Os outros, os invejosos, hei de esmagá-los debaixo do peso da sua ignominiosa paixão.

CAPÍTULO XV

Devíamos ter feito uma solene e festiva paragem no ano de 1735. Neste ano, aos cinco de Outubro, Leonor foi mãe. Era uma menina, que na pia batismal recebeu nome de Lourença, por chamar-se assim sua avó e madrinha. Diogo de Barros, que já o tinha sido do casamento, foi padrinho da neta do seu sempre chorado Jorge de Barros.

Então se consumou a felicidade de Leonor. Sentiu ela, ao estreitar ao seio a filha, que lá do íntimo se desentranhavam afetos novos, alegrias doidas, consolações inenarráveis. Parece que daquela superabundância de amor, grande parte vertia ela no coração do marido. Agora, sim: amava-o, ternamente o amava, descobria o sacratíssimo mistério do amor de esposa nas delícias da maternidade.

O primeiro aniversário de Lourencinha foi festejado com pompa. António José da Silva abriu as suas salas aos amigos que a sua reputação lhe criara. A sociedade dos dignos homens de letras, que frequentavam o palácio dos Ericeiras, gratamente se curvou a beijar no berço a filhinha do mais festejado e popular talento do país.

Agora, atemos o fio no ponto em que deixámos este ditoso pai planejando instrumentos para afronta e completa vingança dos baixos de traidores.

Neste tempo, recebeu António José da Silva, como em todos os paquetes, carta do seu amigo Francisco Xavier de Oliveira, respondendo na máxima parte às queixas enviadas pelo hebreu das interpretações caluniosas que a gentalha literária dava às suas óperas, no intento de irritarem contra ele o Santo Ofício.

Francisco Xavier dizia-lhe que saísse de Portugal quanto antes; porque se o rastilho da pólvora chegava à Santa Casa, não havia forças de contramina, e a conflagração seria inevitável. Lembrava-lhe Holanda, Itália, Inglaterra como países libérrimos, e alentadores de altos corações e espíritos. Prometia-lhe, se ele a quisesse, posição honrosa na embaixada do ministro conde de Tarouca, homem de boa alma que tinha-o de estimar grandemente. Depois, contava-lhe a realização do seu casamento em Viena com Mademoiselle Eufrosina de Puecbberg e Enzing, menina de virtudes condignas do seu distinto nascimento, bem que desprovida de dote. Relatava muito de espaço e desenfadadamente um episódio que lhe sucedera, quando foi ao consistório prestar juramento de que a sua primeira mulher tinha morrido. Trasladá-lo-ei como ele o reconta no seu Amusement périodique do mês de Julho de 1751. Antes, porém, do extrato, releve-me o autor que por pouco tempo o detenha para me ajudar numa averiguação importante, quando se trata da biografia, mas rápida que seja, de tão celebrado sujeito.

Dizem unanimemente os biógrafos de Francisco Xavier de Oliveira que ele saíra de Lisboa, na qualidade de secretário do conde de Tarouca, para Áustria, em 1734. Uniformes asseveram que ele ia já viúvo da sua primeira mulher, D. Ana Inês de Almeida. O senhor Inocêncio Francisco da Silva, enúnente esquadrinhador dos traços principais da vida dos escritores que biografa no seu valioso e prestantíssimo dicionário, diz com referência a Francisco Xavier de Oliveira, firmado no parecer unânime dos seus antecessores, o seguinte: “achava-se no estado de viúvo, quando por óbito do seu pai foi nomeado para o substituir na qualidade de secretário do conde de Tarouca, então ministro plenipotenciário em Viena de Áustria. Aos 19 de Abril de 1734 saiu a barra de Lisboa, deixando a pátria, para mais não torná-la a ver. “

Ora, se Francisco Xavier saiu viúvo de Lisboa em 1734, e passou as segundas núpcias em Áustria, seria absurdeza irrisória dizer-se que ele casou segunda vez em 1733, isto é, que passou a segundas núpcias antes de viúvo da primeira mulher. E, entretanto, o leitor tem de julgar entre o Cavalheiro de Oliveira e os seus biógrafos, depois de ler as textuais palavras que vou copiar da narrativa propriamente dele: “An 1733, ayant résolu de contracter de secondes noces à Viennel, je fus obligé de prêter en personne serment devant le consistoire de cette ville, que ma première femme était morte, etc. “ É ele pois quem assevera que deliberou matrimoniar-se segunda vez em 1733, um ano antes da sua saída de Portugal, consoante a data assinada pelos biógrafos melhormente informados. Poderá conjeturar-se que a realização do casamento foi posterior alguns anos à deliberação de casar? Não: a hipótese é prejudicada pela afirmativa de que ele saiu de Portugal para Viena em 1734: fora preciso que ele fixasse, ao Menos, este ano, para poder vingar a hipótese da distância temporária entre o intento e a realização. Neste caso, por qual das datas se decide o leitor? Inclina-se a crer que todos os biógrafos se enganaram, por ser Francisco Xavier de Oliveira a autoridade mais verdadeira em coisas que lhe principalmente a ele tocam? Não concordamos. Eu abundo no que está dito e confirmado por biógrafos que deviam examinar competentemente o ano em que Francisco Xavier enviuvou, e o ano em que saiu de Portugal. ao meu juízo, a incongruência destas datas procede de um erro tipográfico na última letra numérica do ano designado no periódico do Cavalheiro de Oliveira. A publicação era feita em Londres, e eu suspeito que o escritor, naquele ano de 1751, tivesse a vista muito debilitada pelo chorar, senão pela fome. Viu mal as provas, falta que muitas vezes nos oferecem estes dois volumes. Se tal suspeita se figura argumento pouquíssimo ou nada sólido, a favor dos errados biógrafos do Cavalheiro de Oliveira, então vejamos se o Cavalheiro de Oliveira se desmente.

Que discussões eram estas do Cavalheiro com o conde?

Escreve Francisco Xavier: “ — A suprema loucura — , me dizia o conde de Claravino, é o casamento, e eu não sei qual seja a estação da vida apropriada a semelhante tolice! O casamento é o pior dos males: é uma escravidão, um inferno! — “Estais em erro, senhor” lhe repliquei. — O casamento, no meu modo de ver, é o mais belo, mais cómodo, feliz e útil estado da vida. Errado andaria eu também se dissesse que em todo casamento se associavam aquelas excelências; mas que há aí casamentos em que elas se conjuntam, isso acreditei-o sempre e acredito ainda. Devo pugnar por tal estado. Aquele em que eu me vejo é tão desgraçado que só a selvagens convém...”

Esta prática ou discussão com o conde de Claravino deu-se em 1735 e ainda em 1736. Não há aí, pois, mais evidente coisa que a impossibilidade de ter o Cavalheiro casado segunda vez em 1733. Aí está, portanto, justificada a afirmativa dos biógrafos enquanto ao ano da ida do Cavalheiro para a Áustria. Parece-me agora de todo aceitável a hipótese do erro tipográfico, porque é inadmissível a leveza da contradição em escritor tão refletido.

Está o leitor enfastiado já destas académicas esgaravatações. Indulte-as àquele râncido achaque dos muitos anos que inclinam os velhos a esta coisa de peneirar a poeira dos séculos; donde resulta sair-se nós com os olhos cegos de pó, sem achar pedra que valha na joeira. De mais disso, a mim custava-me que, se alguém visse a errada data destes livros do Cavalheiro, me arguisse de inventor de anacronismos inculcadamente históricos.

Vamos agora todos melhorar de sorte, assistindo a um lance, com o qual se hão de ensoberbar os atuais cavaleiros da Ordem de Cristo, pelo que já daqui dou os parabéns ao meu barbeiro.

Narrava, pois, Francisco Xavier então a sua ida ao consistório alemão para dar juramento da sua viuvez, e continua agora:

“À entrada do tribunal o porteiro pediu-me a espada. Recusei-me. Deu-se parte ao bispo-presidente da minha recusação. O prelado, que me conhecia, mandou-me dizer por um dos conselheiros, que eu devia submissão às leis do país, e antigos usos do consistório que não permitiam entrar alguém de espada. Redargui que o principal adorno da minha ordem consistia no uso da espada; e que um dos seus maiores privilégios era poder, e até dever trazê-la em todo o tempo, sem exceção do acto religioso da comunhão, a qual me era permitido receber de espada à cinta. Fez-me o bispo saber que o conde de Sinzendorf, poucos dias antes, indo ao consistório, não duvidara deixar a espada em poder do porteiro; que eu bem sabia que ele era cavaleiro do Tosão, e podia contentar-me com tal exemplo, e segui-lo. Retorqui ao conselheiro que a Ordem do Tosão, conquanto ilustre, não fruía os privilégios que os papas e outros príncipes tinham conferido às ordens militares. E, que tendo eu a honra de professar uma destas, não cabia no meu arbítrio despojar-me dela, entregando a espada, da qual nem o rei propriamente podia privar-me, salvo sendo eu culpado de crime de lesa-majestade. Enfim, disse eu gracejando, mais facilmente prescindo passar sem a mulher que sem a espada: uma posso renunciá-la, a outra não.

O conselheiro irritado pelo gracejo, ou cansado de mensagens, me disse de má sombra: — Espanta-me que o senhor pretenda ser preferido ao conde de Sinzendorf, e não distinga entre pessoas! — Respondi: — As distinções não está o senhor conselheiro no caso de as fazer: não é o Cavalheiro de Oliveira que contende com o conde: é a Ordem de Cristo com a do Tosão. Faz-me muito favor se se dignar participar isto ao senhor bispo.

O bispo, depois, mandou-me entrar num quarto, onde estive sozinho uma boa hora. Em seguida, mandou-me ir ao consistório, e prestar juramento, corri a espada à cinta. Desculpou-se do acontecido dizendo que ignorava ou se tinha esquecido de que a Ordem de Cristo era militar...

Desta enfatuada narrativa, passava Francisco Xavier a contar os escandalosos amores de D. Luís da Cunha, ancião de oitenta anos, ministro de Portugal em Paris, o qual se apaixonara na Haia por uma senhora Salvador, judia, pertencente a uma família hebraica estabelecida em Holanda, e a trazia consigo pelo mundo. Conta que estivera ceando com ele e ela, e pasmara do temperamento amoroso do decrépito ministro, quando lhe ele disse: “Sem amor não há vida feliz; a paixão do amor é o mais agradável negócio da vida, e todos os prazeres são enjoativos, se o amor os não aduba.“ E, dito isto, tomara a mão da bela, e exclamara:

Est-i rien de plus beau que Vinnocente flamme,

Qu'un mérite éclatant aflume dans une âme?

Et serait-ce un bonheur de respirer le jour,

Si dentre les mortels on bannissait

Vamour? Non, non, tous lesplaisirs se aôutent à le suivre,

El vivre sans aimer n 'est pas proprement vivre.

E, depois, a Salvador, pela sua vez, tornou a mão do velhinho, e declamou:

Avoir un amant d'un mente achevé,

Et sen voir chèrement aimée;

C'est un bonheur si haut, si relevé,

Que sa grandeur nepeut être exprimée.

Francisco Xavier mostrava-se vivamente compadecido da senil miséria de D. Luís da Cunha, aliás habilíssimo ministro; porém, o que ele não podia perdoar-lhe era o escândalo de conferir a Ordem de Cristo à Salvador, lançando-lhe ao pescoço o cordão e a cruz que ela usava publicamente, denominando-se “cavaleira da Ordem Real de Portugal!

“Como quer que seja”, terminava Francisco Xavier escrevendo a António José da Silva, “sai daí, vem para este grande mundo, onde há ridiculezas deste tamanho; vem gozar a vida, repartindo-a entre a seriedade do estudo, e as brilhantes futilidades, de que nós se pode rir impunemente. Enfardela a trouxa, e parte o mais breve que possas... “

— Que te parece? — perguntou António José a Leonor. — Vamos! — exclamou ela — , mas o tesouro da Bemposta ?

Parte Quarta

CAPÍTULO I

O expediente de vingança, que mais nobre se oferecera ao honrado ânimo de António José da Silva, não dava os esperados efeitos. A guerra, primeiro surda, já rumorejava nas praças, nos conclaves pios e, pior que tudo, nas cavernas do Santo Ofício.

Duarte Cotinel Franco procurou, com magoado aspeito, o seu amigo de infância para lhe recomendar precauções vigilantíssimas, assegurando-lhe que do seu pai, qualificador do Santo Ofício, soubera que uma pavorosa tempestade se estava formando sobre a cabeça do inocente autor das óperas; e, com imenso desgosto, era ele ineficaz a conjurá-la com o raciocínio.

Disse António José a Duarte Cotinel que se dispunha a sair de Portugal, tão depressa liquidasse o valor dos poucos bens que herdara.

— E o tesouro da Bemposta fica? — perguntou Duarte.

— Se fica!... Sei eu, porventura, se tal tesouro existe?! — E o anel não chegaste a vê-lo? — Não há anel nenhum, homem!... — tomou António. — Em horrível anel de ferro me querem cingir e afogar o pescoço estes cafres tonsurados a quem eu não fiz mal nenhum!

E, com palavras desviadas do assunto do anel, o hebreu foi declinando a conversa para esquivar-se a perguntas, e respostas falsas com que se lhe mortificava a consciência.

Duarte deixou-o a pensar no tesouro. — Seria uma doidice — dizia António José a Leonor — sairmos de Portugal, sem ao menos levarmos a certeza de que já foi roubado o cofre do teu pai. A riqueza, se é tanta como diz o rol, dar-nos-ia em toda parte do mundo uma folgada vida. Porque não tinha tua mãe confiança neste Duarte?

— Porque eu lhe disse que a não tivesse — respondeu Lourença Coutinho. — E a ti, filho, conjuro-te que a não tenhas. Vai perguntar a Diogo de Barros que casta de gente é esta dos Cotinéis.

— Mas — tomou António — se eu fizesse as coisas de modo que não pudesse ser logrado por Duarte? Se eu fosse pessoalmente desenterrar o tesouro, e trouxe-osse comigo?

— Acho que ele seria capaz de te matar lá mesmo!

— Ele quem? Duarte?! — Sim, Duarte.

— Ora, minha mãe!, está formando um injusto e ultrajante conceito do homem! Que é dos crimes dele que a autorizam a conceituar assim um rapaz que nunca nos fez mal, e de toda nós recebe provas de estima, e foi elevado pela sua honra ao grande emprego que tem no paço dos infantes!

— António, não te fies nele! Que interesse pode ele ter — replicou Lourença Coutinho — em que tu aches e possuas o tesouro! Se tantas vezes lhe ternos dito que o tesouro é uma fábula, ou, se não é fábula, é coisa perdida, para que anda ele sempre a falar-te no anel do contador-mor?

— É porque se mortifica, pensando que desconfiamos da sua lealdade... E então, Leonor, como entendes tu que procuremos desenganar-nos?

— Eu sei!... A dizer verdade, o tal Duarte não me merece confiança; mas pode ser que todos desacertem, menos tu, António. Dizes que irias tu mesmo buscar o cofre, e trazê-lo para a tua casa. Se assim for, não sei realmente como Duarte possa roubar-to. Pode ser que a ideia dele seja receber uma porção dos objetos. Se for isso, dá-se-lhe alguma coisa, que nos há de ainda ficar muito. Pois que outro intento há de ser o dele? Fugir com o tesouro? Isso não o fazia ele, porque era perder a honra e o bom oficio que tem com esperanças de outro melhor. O que ele quer é que o remuneres, e tu lhe darás o que for da tua vontade, meu amigo. Contudo, não te animo nem desanimo. Faz o que entenderes, sem desfazer nas apreensões da nossa mãe.

António José da Silva andou pensativo muitos dias. Atormentava-o o tesouro! Aquele foco de peçonha que destilara lágrimas, desgraças e ódios, no espaço de quase cinquenta anos, desde o dia em que Luís Pereira de Barros preferira Jorge entre seus irmãos com afagos prometedores da herança do segredo, até àquela hora, para além da qual Lourença agourava novos desastres.

E, ao mesmo tempo, o conde da Ericeira e outros amigos de igual tomo diziam-lhe que saísse de Portugal por alguns anos e voltasse em melhor época. O conde lembrava-lhe que fosse a Paris estudar os grandes mestres da arte cénica, aquecer-se aos átomos luminosos daquele ar todo ciência, todo inspirações, e voltasse depois a continuar a sua primazia no teatro, de teor que pudesse lustrosamente reformar, senão criar, a arte dramática em Portugal.

Abraçava o hebreu alegremente estes conselhos, e retocava a sua ópera chamada o Precipício de Faetonte para a fazer representar como triunfal adeus que ele dava a ingratos, a estúpidos e a celerados malsinadores da sua consciência!

Precipício de Faelonte!, que título tão pressago!... que funestos agouros Leonor aventava daquele título significativo de desastre!

Duarte Cotinel, depois da representação vitoriada das Variedades de Proteu, em Maio daquele ano de 1737, procurou-o para lhe mostrar os relanços e frases da comédia, que, por ordem da censura, a requerimento do inquisidor-geral, tinham sido riscadas.

Algumas frases eram estas: “Amor nos homens é o mesmo que querer bem; nas bestas muares é o mormo, e nos outros animais apetite.“

— Então isto em que ofende a religião ou os bons costumes? — perguntou o hebreu.

— Não sei.

— Provavelmente os censores não querem que o seu amor seja mormo!

— Há de ser isso... — obtemperou o risonho Duarte. — Que mais riscaram?

— Isto: “ Isso é glória do céu da boca “: dizem que metes a riso a glória do céu.

— Menos a deles, que é a bem-aventurança dos parvos. Que mais?

— Dizem que fazes galhofa do inferno, quando escreves isto: “Na glória do amor há sombras do Inferno. “

— Ora!, não os mando para lá por não injuriar o diabo com tais hóspedes. Tu dirás onde os hei de mandar.

— Dizem mais que ultrajas as leis divinas do casamento.

— Aonde?, na minha casa, ou na deles? — Na comédia. Aqui está o escândalo: “ E quem seria o magano que tal lei inventou? (a lei do matrimónio) Foi Apolo em despique do rigor de Dafrie. “

— Basta! — exclamou António José. — Pleníssima liberdade a esses burros de escoucearem a minha comédia! Sujem e risquem à vontade os sevandijas. Não quero ver mais nada. Cafraria hedionda, terra empapada em sangue e lágrimas, não comerás meus ossos!

— Olha mais, António. — Não quero: faz-me nojo tudo isso, nojo e vergonha de ser português! Vou mandar buscar ao teatro o Precipício de Faetonte... Vou queimá-lo...

— Mas não digas nada, meu amigo... Lembra-te que em Portugal não se queimam só óperas. Prudência, prudência, António! Qualquer denúncia pode hoje perder-te.

António José refletiu, abraçou Duarte, e murmurou circunvagando os olhos, como se receasse ter sido escutado:

— Tens razão, Não direi nada... Tratarei em fugir, já que me não querem... O meu amigo, amanhã vou procurar-te, preciso falar contigo a sós. Ao meio-dia.

Lourença Coutinho ouvira as últimas palavras do filho, porque o espiava sempre que Duarte Cotinel estivesse com ele. Assim que o almoxarife saiu, entrou ela, perguntando:

— Que vais fazer amanhã a casa de Duarte?

— Vou lá... preciso lá ir — respondeu de má catadura António.

— Vais descobrir-lhe o segredo?

— Não sei. Que assédio! Que importunação!... A minha mãe quer voltar às masmorras do Santo Ofício? Quer ver como os meus ossos estalam no Campo da Lã?

— Oh, filho!, que desatinos estás dizendo! — exclamou a atribulada mãe.

— Preciso sair de Portugal, entendeu, minha mãe? Quero salvá-la, salvar-me, e a minha mulher, e a minha querida filhinha... compreende bem esta resolução feita, depois de cabalmente informado da sorte que me preparam os algozes, cujos aparelhos de tormento já eu experimentei nestas mãos e nestes braços?

— Pois, sim, meu filho, fujamos.

— Fujamos sim; mas sabe Vossa Senhoria a quem eu devo o aviso da minha futura sorte, se me aqui demorar? É a este excelente rapaz que a minha mãe detesta! É a Duarte Cotinel que me fala com as lágrimas nos olhos e o coração nos lábios! Sou-lhe grato, estimo-o, prezo-o como ao meu irmão. Os outros lisonjeiam-me, e perdem-me; ele, notando as minhas imprudências, manda-me fugir.

— Pois sim... mas vais dizer-lhe onde está o tesouro?

— E que vá? Isso que monta?

— Nada... — balbuciou Lourença Coutinho, como assustada da exasperação do filho.

Leonor aproximou-se da sogra, e disse-lhe afavelmente:

— Deixe-o lá, mãe, deixe-o que ele já tem experiência da vida, e deve conhecer Duarte melhor do que nós...

CAPÍTULO II

Duarte Cotinel esperava em alegre sobressalto o hebreu. Falava em solilóquio, como quem precisa expandir-se, comunicar o seu rejúbilo aos seres inanimados. “Afinal”, dizia ele à sua sombra, ao demónio exultante da sua consciência, “afinal o meu pressentimento não era um sonho. Posso ser rico! “

Às onze horas entrou António José da Silva na casa do almoxarifado da Bemposta. Saiu Duarte a recebê-lo, e disse-lhe com melancólicos esgares:

— Virás tu despedir-te, meu querido amigo?

— Ainda não. Porque mo perguntas? Queres dizer-me que devo sair já? Sabes alguma coisa?

— Nada mais sei, António — respondeu com indecisão Duarte. — E tu soubeste mais do que eu te disse?

— Não.

— O Santo Ofício anda em cata de provas, que até hoje lhe não deste satisfatórias. Bem sabes que esta gente, quando se resolve a vitimar algum assinalado pelo ódio deles, sepulta-o nas masmorras, e depois inquire das provas. E estas também tu sabes que saltam da boca dos torturados, quando há míngua de testemunhas para levar o processo à Relação, Por isso, meu amigo, não descansemos sobre a tua inocência. Fugir enquanto é tempo; todavia, persuado-me que não é apertada a urgência de fugir já. Arranja os teus negócios, vende clandestinamente, se puder ser, os teus bens, que poucos e fáceis de vender, creio que são. Pobre sais de Portugal; mas em Amesterdão acharás hebreus que te socorram; e, se te valeres dos teus irmãos do Rio de Janeiro, que estão ricos, poderás obter casco e fundos para negociar e auferir o que as letras não podem dar a ninguém. Vais pobre, meu caro António! O teu pai, no trastejar a casa em que moras, gastou alguns punhados de ouro, segundo corre; e tu consomes mais do que lucras para manter tua senhora em fidalgas regalias. Não te culpo disso, que ela, além da nobreza do seu pai, tem a nobreza própria que a toma digna de estar em cadeiras de ouro, e servir-se com princesas. A Providência, dando-te aquela menina, indemnizou-te das amarguras que os homens te causam com tanta crueza, que é vergonhoso falar a língua destes bárbaros, que dizem falar a linguagem dos apóstolos... O meu amigo, sabes que eu espreito a borrasca inevitável que te ameaça; por agora os ventos sopram de bom lado; assim que eu vir escurecer-se o céu com as sombras do inferno, aviso-te. Isto já frequentes vezes to disse, António. Agora, se tens algumas ordens a dar-me, aqui estou. Queres talvez que eu me encarregue disfarçadamente da venda das tuas coisas? É isso?

— Não é... Vou abrir-te a minha alma! — disse expansivamente António José.

— Ainda agora? ó ingrato!, pois ainda agora me abres a tua alma?

— Foi forçoso; violentei-me... era necessário. Não queiras que eu te explique a razão de uma reserva indigna de ti e de mim.

— Vais falar-me... — No tesouro escondido nesta quinta. Duarte compôs a custo o rosto que parecia abrasar-se e entumecer-se de alegria. Passados instantes, disse:

— Eu sabia que o tesouro não era fábula. Respeitei a tua reserva, confessando-te que me doía, porque era mais que afrontosa para mim... e também para ti, que me conhecias desde os onze anos.

— Não mo recordes, Duarte. Perdoa-me, e escuta. Presumo que existe o cofre do antigo contador-mor, bisavô da minha mulher. Esta casa e quinta foram revolvidas desde alicerces e raízes; mas o local do tesouro não foi bulido...

— Então era certo existir o anel? — atalhou Duarte. — É certo existir o anel; Leonor é dele depositária, porque eu nunca mostrei leve desejo de ver as letras reveladoras do segredo, enquanto se não facilitasse a oportunidade de exumar o cofre. Dizem as letras...

— Eu não te fiz a pergunta — interrompeu Duarte com veemência — para que me traduzas o que dizem as letras. Não quero saber. Basta que o saiba no momento em que me tu disseres: “É aqui. “

— E porque não hás de sabê-lo já?!

— Porque não quero: são melindres que tu me hás de respeitar.

— Queres que eu assim me corra de não ter sido franco e sincero, quando me interrogavas sobre o tesouro?

— Não é isso, nem te sei ao certo explicar o que é. Vamos ao importante: queres tomar conta do tesouro, não é assim?

— É.

— Quando?... não pode deixar de ser de noite... — Seja de noite, à hora que determinares. — Convém-te hoje? — E a ti? — A mim convinha-me mais amanhã, porque hoje até noite alta não posso deixar de fechar as contas do trimestre que hei de amanhã apresentar aos infantes. Pode ser amanhã à s onze horas da noite?

— Sim, meu amigo, quando menos incómodo te seja.

— Ora diz-me lá, calculas que os valores escondidos te abastem para viveres independente em Paris ou Londres?

— Presumo que sim.

— A quanto monta segundo o teu cálculo?

— Cento e cinquenta mil cruzados, a julgar aproximadamente das verbas designadas numa página escrita pelo punho de Luís Pereira de Barros.

— É muito dinheiro! — exclamou Duarte. — Podes viver vida de príncipe onde quer que te sintas bem. Vai para Roma, que eu aposto que os cardeais vão cear contigo todas as noites, sem te perguntarem por Moisés nem por Cristo!

— Não ambiciono aparatos ostentosos — disse António José. — O que eu queria era sossego e alegria. Tenho aquela filhinha que me está sendo um anjo recompensador, esmola e riqueza do céu. Desejo ser rico para ela. Leonor e eu, e a minha pobre mãe, com pouco viveríamos, e talvez felizes, se o terror da perseguição religiosa nos não tivesse sempre sobressaltados.

— Fazes bem, fazes bem — tomou Duarte. — Foge, assim que te eu disser que fujas. Debaixo de juramento te digo, e juramento te peço para que nunca reveles o que vou dizer — te...

E abaixando muito a voz, e espreitando o corredor contíguo à sala, disse:

— Tens um ótimo espião por ti no Santo Ofício... É meu pai! Vê tu a que extremos chegou a amizade que te tenho. O meu pai, quinze dias antes de se decretar a tua prisão, há de ser avisado, sem que ninguém o avise. Ele entende e lê nos recônditos desígnios daquela gente, que lhe é detestável, porque meu pai, se finge tanta ortodoxia religiosa como eles, é porque os temeu e ainda teme. Compreendes, António, o sagrado desta revelação?

— Compreendo, meu querido Duarte! — exclamou António José da Silva abraçando-o com entusiástico reconhecimento.

— E então já vês — insistiu o almoxarife — que escusas de fugir antes do meu aviso. Pode até ser que a tempestade se desfaça... Tem tu juízo, António. Manda as comédias ao diabo. Não escrevas senão nos autos; e, se te parecer, manda os autos também de presente à alma do Papiano e do Bártolo e do João das Regras que devem de estar no inferno. Amanhã és rico, riquíssimo. Não careces de trabalhar... Sabes lá tu o que é ser rico! O que é ter um coche e mulas lustrosas!, lacaios e mordomos!, poetas a cantarem-te os espirros como agouros de algum grande sucesso que vai felicitar a pátria! Nunca pensaste nas delícias de ser rico! Os homens, os frades, os grandes, a natureza, tudo às tuas ordens! E as mulheres? Não quero falar-te das mulheres, porque tens uma que vale por todas as que abrilhantam este mundo com a sua formosura; mas se tu precisares de um serralho de anjos, pensas que não ias buscá-lo ao empíreo? ó António!, quando estiveres senhor dos teus cento e cinquenta mil cruzados, verás o que é tê-los, vê-los, contá-los, palpá-los, vigiá-los, convertê-los em primaveras infinitas, em deleites intermináveis!... Oh!...

Duarte, no febril afogo do seu entusiasmo, ora torpe, ora lírico, poderia denunciar a voraz cobiça que lhe acendia entranhas e olhos, se ao lado de António José estivesse um terceiro, observador de ânimo frio. O infame temeu-se da incontinência da apologia da riqueza, e desandou numa risada, exclamando:

— Maganão!, estavas a estudar em mim algum Creso avarento de gozos que tencionas pôr no tablado para alegrar o povo com as suas exclamações!

— Não, meu amigo, estava a imaginar que tu, se fosses rico, em vez de cobrires de ouro os caminhos da tua vida, farias com o teu ouro melhorada a sorte de muitos pobres, que se tinham de alegrar mais com a esmola, que tu com a posse das riquezas da Casa de Bragança.

— Pode ser que te não enganasses — volveu gravemente Duarte. — O gozo de ser rico deixa de o ser, quando o ouro não compra as alegrias puras da alma. Tu hás de saber repartir o que até aqui te foi desnecessário. Felizes aqueles que se aproximarem de ti!

Abraçaram-se. António José da Silva despediu-se com os olhos vidrados de lágrimas, murmurando:

— Eu queria não mais separar-me da terra onde tu vivesses, Duarte! Igual a ti só tenho um amigo neste mundo: é Francisco Xavier de Oliveira. Quando eu lá fora o vir, dir-lhe-ei que Duarte Cotinel Franco tem uma alma irmã da sua... São duas almas que Deus formou no mesmo molde.

Dito isto, saiu comovido. Duarte Cotinel sentou-se, como se a carga da infâmia lhe dobrasse os joelhos; pôs as mãos na cabeça, e ouviu este grito da consciência:

— Que atrocidade!... Instantes depois, ergueu-se, estirou os braços, estalejou os dedos das mãos enclavinhadas, e resmoneou surdamente:

— Cento e cinquenta mil cruzados!...

CAPÍTULO III

— Sempre resolveste procurar o cofre, António? — perguntou Leonor.

— Sim, minha querida, resolvi; mas não o digas à mãe. Custa-me a crer que ela seja capaz de julgar tão aviltantemente o nosso amigo Duarte!... Os elogios respeitosos, que ele te faz, Leonor, provam a excelente índole daquele homem...

— Mas — objetou Leonor — não te ouvi eu dizer que ele era bastante estragado de costumes?... Então sonhei...

— Disse-to; mas a desordem dos seus costumes não faz repugnância ao que se chama probidade. Era a libertinagem própria dos vinte anos a que me eu referia. Desde, porém, que se ocupou em mordomizar os rendimentos dos infantes, não sei que ninguém o exceda em morigerada regularidade de vida. Que nos faz a nós, para o nosso intento, que ele extravaganciasse lá na sua juventude? Não goza créditos de honrado Francisco Xavier de Oliveira? E quem foi mais libertino que ele?! Ora queres tu saber? É tão escrupuloso Duarte em pontos de honra que não quis saber onde está o tesouro, e disse que bastava sabê-lo no acto em que eu lhe mostrasse o sítio, e dissesse: “É aqui.“ Há, porventura, sombra de suspeita que nos absolva de desconfiarmos dele?

— Creio que não — respondeu Leonor com indeciso ar meditativo. — Mas...

— Mas quê?!

— Olha, António... As suspeitas da tua mãe pode ser que procedam de antipatia particular que tem com o homem... Será isso, será... Entretanto, o meu coração tem pressentimentos fatais... Eu, quando saí de Amesterdão, adivinhava quantas desgraças sobrevieram; ainda antes de as esperar, a meio caminho de Portugal, estava na Inquisição. A minha mãe, olhava para mim, e exclamava: “Porque não escutei os teus presságios, minha filha! “ Isto vem ao caso de eu, com bem pesar meu, te asseverar que a minha alma está inquieta, e vaticina algum passo horrível por causa daquele tesouro. Tem desgraça aquele dinheiro! Dizia-o meu pai, quando eu era menina, olhando para o anel; dizia-o minha mãe, e Simão de Sã. O meu tio Diogo, sempre que se fala no cofre da Bemposta, recorda-me as aflições dos últimos dias do meu bisavô; a crueldade feriria da minha avó; a perseguição que duas vezes minha mãe sofreu; o risco em que esteve a vida do meu pai. Mil infortúnios!...

— E mil superstições, Leonor. Essa cadeia de desgraças tem a sua lógica e natural explicação. Não é fado nem influição diabólica ligada ao tesouro. Foram ódios motivados pela ambição; mas não se segue daí que tu, legítima senhora dele, hajas de sofrer a continuação dos dissabores que sofreram teus pais.

— Será assim!... — disse ela. — Vai... faz o que quiseres... Praza a Deus que a nossa filhinha não participe de alguma calamidade, se nós a temos sobre as nossas cabeças. Deus preserve a inocentinha! — continuou ela, soluçando com a filha estreitada ao coração.

António José da Silva, bem que forte de espírito e isento de preconceitos, estremeceu quando viu as lágrimas da esposa a derivarem à face de Lourencinha.

— Pelo amor de Deus! — clamou ele — , não me aterres! Tu que tens, Leonor?, que te diz o coração?, tu fazes-me fraco e crendeiro em agouros!... Diz... não queres que fale mais no dinheiro? Não falarei!... não...

Leonor atalhou-o: — Isto não importa nada... Sou mãe. Não faças caso de lágrimas nem de agouros, António. Faz o que quiseres; mas não me consultes.

Depois, fugiu com a filha para o seu quarto, e fechou-se para que o marido a não ouvisse desabafar em altos soluços.

À meia-noite deste dia, 15 de Agosto de 1737, António José da Silva saiu com Duarte Cotinel da casa do almoxarifado, por uma porta de armazém que abria para a quinta. Chegados à cancela de um pomar, disse Duarte com muito recatado som de voz:

— Agora dirás para onde vamos. Dá-me alguma indicação.

— Leva-me a um tanque onde está uma estátua de Neptuno.

— É lá em baixo, no interior do bosque. O sítio é bom, que ninguém nos ouvirá cavar; mas sabes tu se já fariam obras no local?

— Creio... quase tenho a certeza que o local do cofre está intacto.

Caminharam de manso desviando-se das áleas onde o tapete da folhagem acusava os passos.

— É aqui — disse Duarte. — Ali tens o tanque e o Neptuno.

— Está seco? — perguntou António José.

— Está, há muitíssimos anos. Ouvi dizer que a rainha de Inglaterra, quando fez estas obras, mandou levar daqui a água para fontes públicas.

— Bem. Entremos ao tanque.

— Espera... vou acender a lanterna de furta-fogo, que as copas das árvores não deixam entrar raio de lua.

— Não acendas. — Temos que levantar alguma pedra? Então vou ao jardim buscar um ferro de monte que lá pus ao anoitecer.

— Não é necessário — disse António José — , ajuda-me a descer o Neptuno do pedestal.

— Pois é aqui?!

— É.

— Então foi milagre o conservar-se! Quantas vezes os senhores infantes me têm dito que é melhor tirar esta coisa inútil daqui para fora!... Ainda no ano passado!...

Duarte dizia isto com profunda mágoa. O tesouro podia tê-lo encontrado ele, e possuí-lo, sem inquietação de consciência.

Deram um sacão à estátua, que estremeceu; deram-lhe outro, e deslocaram-na. Desceram-na vagarosamente, e pousaram-na sobre o rebordo do tanque.

Ambos a um tempo introduziram as mãos no recipiente da água, e tatearam um corpo liso cingido de braçadeiras de metal.

Ambos unissonamente exclamaram: — Está! Da veemência da exclamação dos dois, não poderia inferir-se qual fosse o dono do tesouro.

Havia espaço entre as paredes da caixa de pedra e as argolas do cofre. Introduziram as mãos, e tiraram fora o pesado caixote.

António José sentou-se. Carecia de ar. Duarte Cotinel não estava menos abafado e arquejante. Não era o cansaço; era num alegria legítima, noutro uma infernal exultação.

— Vamos, Duarte? — disse António e juntou: — Estou a tremer, como se fizesse um roubo.

— Também eu; mas é de contentamento de te ver rico. Vamos. Podes com o cofre?

— Posso. — Então carrega com ele, que é obrigação tua — disse o almoxarife gracejando.

Saíram do bosque; esperaram que se fechassem as janelas da recâmara de um dos infantes, e acolheram-se a casa estugando o passo.

Era uma hora.

— Vou acompanhar-te a casa — disse Duarte. — Estava para te pedir esse favor.

— Não era preciso. Deixa-me ir armar, que há ladrões nas ruas de Lisboa como no pinhal da Azambuja.

Duarte voltou logo, entregou a António José uma pistola de dois canos, e disse-lhe:

— Leva isto.

— Não preciso — disse o hebreu — , vim armado. Foram da Bemposta, sem encontro suspeito, até ao Largo do Socorro.

O almoxarife, à porta de António José, quis despedir-se.

— Não: hás de entrar: quero que assistas à abertura do cofre; quero que vejas se me enganei.

— Amanhã mo dirás, adeus, — Não consinto: hás de sabê-lo agora. Lourença Coutinho e Leonor estavam ainda a pé. Lourença orava ao Deus de Jacob; Leonor orava ao Deus dos aflitos. Oravam ao mesmo Deus, segundo minha fé em divindades.

Quando ouviram bater, desceram ambas ao pátio. Viram António com o caixão sobraçado. Lourença exclamou:

— São e salvo o meu filho!

— E porque não? — disse Duarte, ela não tinha visto.

António José corou até às orelhas, e quase odiou sua mãe.

Voltou-se a Duarte, e disse:

— Minha mãe receava que os ladrões me saíssem nalguma esquina, por isso fui armado.

Leonor aproximou-se do caixão, que o marido pousara sobre um escabelo do pátio, para limpar o suor. Dobrou-se ela sobre o cofre, beijou-o, e disse:

— Neste caixão pôs as mãos o meu virtuoso bisavô!...

— Vamos — disse António, retomando o cofre. E subiram à primeira sala. Duarte quis ainda despedir-se, alegando que naqueles prazeres de família um estranho era coisa impertinente.

— Não consinto! — repetiu António com dissabor.

— Porque não há de tomar um quinhão do nosso contentamento, senhor Duarte? — perguntou Leonor, impedindo a saída. — Os amigos são sempre família...

Pousaram o cofre sobre um bufete. Eram duas as fechaduras de espelhos dourados.

— É preciso arrombar — disse António José. — Dá-me um ferro qualquer, minha mãe?

Lourença Coutinho trouxe o ferro de frisar com que o seu marido costumava encalamistrar a cabeleira nos dias de aniversário natalício das pessoas reais. Quebraram a presilha das fechaduras que prendiam na lingueta, e... levantaram a tampa!

Havia ali coração que se regurgitava como em caso de mortal congestão. A circulação parara no peito de Duarte, ao rangerem as perras e oxidadas dobradiças da tampa.

O primeiro objeto era uma caixa de prata de lavores primorosos, baixa de altura de uma polegada, e larga à medida do âmbito do cofre. Abriram a caixa: eram os pentes de ouro, cravejados de brilhantes, e quinze anéis, enfiados num agulheiro de ouro.

Destas joias dizia o apontamento de Luís Pereira de Barros: “Que foram da minha avó D. Leonor de Barreiros.“

— Que admirável peça! — exclamou Duarte. — E que digna possuidora aqui está! — continuou olhando delicadamente em D. Leonor.

— Agradecida, senhor Duarte. Os meus adornos mais queridos da cabeça são flores.

A um canto daquela caixa estava inclusa outra de veludo carmesim, oblonga e convexa. Abriram-na: continha os vinte e quatro brilhantes dos quais dizia a nota: “Que foram do meu avô Pedro de Barros e Almeida.”

Levantaram a caixa, e descobriram a segunda camada. de uma saca de pelica tirou António José os copos de uma espada, recamados de pedras de diversas cores. Desta riquíssima preciosidade dizia o contador-mor: “Copos da espada que o meu avô materno D. Jorge de Barreiros trouxe do governo da Baía.“

Noutra caixa de ouro encontraram uma miniatura, retrato formosíssimo em marfim, com cercadura de diamantes. Era o retrato de D. Inácia Teles de Meneses, mãe de Luís Pereira de Barros. Leonor lançou mão dele, e não se cansava de o contemplar.

A outra camada e última era dinheiro em rolos: “Vinte e quatro contos de réis em variadas moedas de ouro”, conforme o dizer do apontamento.

— Que te parece Duarte? — perguntou António José.

— Erraria eu muito o cálculo? Isto valerá os cento e cinquenta mil cruzados?

— Vejamos — disse o almoxarife. — Vinte e quatro contos, sessenta mil cruzados, ou mais, porque as moedas antigas são pagas como de mais valor. Os brilhantes, se não valem mais, valerão outro tanto, porque estão aí duas dúzias deles, como eu ainda não vi muitos; e, se quiseres vendê-los, acharás em Londres ou Amesterdão quem te dê vinte e quatro mil cruzados. Os pentes podem valer... que sei eu!... e os copos da espada!... e a cercadura do retrato!... Finalmente, não te enganarias muito no cálculo! O que se segue é que estás riquíssimo, e eu também participo da tua riqueza por poder dar a estas duas damas os mais cordiais e jubilosos emboras, que podem alegrar o coração de um amigo. Agora, deixo-os que está a romper o dia, e já hoje não me deito, porque amanhã tenho jornada ao Ribatejo por causa de aforamentos. As minhas senhoras, adeus.

— Espera! — disse António José, tomando seis dos brilhantes de maior quilate e lume. — Aceita esta memória da noite de quinze de Agosto de mil setecentos e trinta e sete.

— Memória!... — disse Duarte Cotinel rejeitando delicadamente — , a melhor memória é a lembrança de que contribui um pouquinho para a felicidade de uma família. Não instes comigo, que perdes o tempo, e me desgostas.

Saiu.

— E então? — perguntou António José à mãe com gesto de censura — , que lhe parece o homem? Arrepende-se dos seus preconceitos, minha mãe?

— Arrependo, filho: Duarte parece-me homem de bem.

— E os teus agouros, Leonor? — tomou António.

— Ainda não se calaram... — respondeu ela.

CAPÍTULO IV

António e a sua mãe passaram o dia em análise contemplativa das pedras e das moedas antigas; Leonor, no entanto, como estranha ao contentamento dos seus, não se despegava de uma joia formosíssima, santa, e de divinos quilates, que era a filhinha, aqueles vinte e dois meses lindos de celestial meiguice.

Chamada a dar seu parecer sobre o destino que deviam tomar, respondia que estava por tudo que o seu marido e sogra quisessem. O hebreu, a falar verdade, já mal acertava com os seus projetos da véspera: aquele resplandecer das pedras ofuscava-lhe a memória dos planos: era um embevecimento de criança, para não dizer a absorção voracíssima de olhos de avarento cravejados no íman do ouro.

Ao outro dia, Duarte Cotinel, de volta da sua jornada, procurou o hebreu, para lhe dizer que não havia nada no Santo Ofício, para que ele devesse temer e apressar a saída. Lamentou que o seu António não pudesse gozar em Portugal as riquezas, e viver perto do seu mais dedicado amigo, que vinha a ser ele. Aconselhou-o a que não vendesse pedra alguma em Portugal, nem revelasse os seus haveres, porque a Inquisição não perdoava aos judeus opulentos; e, se alguma vez tinha sido piedosa, era com os indigentes, cuja alimentação corria por conta da Santa Casa.

Voltou no dia seguinte, muito rogado por António José, e chegou em ocasião de estar o judeu castigando uma escrava da sua mãe, porque fora surpreendida a roubar das gavetas de um contador algum dinheiro. O castigo era com disciplinas, segundo o direito dos senhores sobre os escravos, que somente vinte anos depois foram libertos por lei do marquês de Pombal.

Duarte pediu o perdão da negra, e conseguiu-o; a escrava, porém, assim que uma entreaberta se lhe ajeitou, fugiu, receosa de que uma busca à sua arca lhe redobrasse o castigo.

Lourença Coutinho teve pena da preta, que comprara criança no Brasil, e trouxera consigo, quando veio presa. Diligenciou encontrá-la; mas não houve notícias dela.

Duarte Cotinel saiu a averiguar, e descobriu que a preta passara o Tejo, e se assoldadara em Almada. Calou-se com o descobrimento, dando a supor que a negra se lançaria ao Tejo, desesperada como outras muitas, que preferiam a morte à servidão.

Note:

Naquele tempo, a vida dos escravos em Lisboa era aflitivo, e os castigos cruéis. A limpeza diária das sentinas domésticas era feita por escravas, que levavam os grandes vasos ao Tejo, desembocando de cada rua em longas caravanas. Que deliciosa e perfumada Lisboa era aquela, à qual Jácome Ratton, com desenfeitado estilo, denomina por excelência a “fedorenta cidade de Lisboa!“ Como D. José declarou livres todos os escravos que entrassem no reino, as pretas eximiram-se do seu escravo de escoadouros. Depois é que Lisboa se tomou limpa... “Então”, diz o citado coevo daqueles olorosos dias, “então os moradores de Lisboa se viram obrigados à fazer os despejos das imundícies nas ruas.”

— Mas a minha escrava não era tratada com rigor, para se matar! — dizia Lourença. — Tenho imensa pena dela!... Ali está ainda a arca fecha da como ela a deixou.

— Era bom ver-se!... — disse o almoxarife com ares familiares de muito amigo.

— Dizes bem! — aprovou António José da Silva. — Vejamos o que ela tem na caixa.

— Farrapos... que há de ela ter? — observou Leonor.

— Sempre é bom ver, senhora Dona Leonor — insistiu Duarte.

— Pois vejam... — condescendeu a contrariada senhora. Arrombada a caixa da escrava, encontraram-se algumas miudezas, por cuja falta as senhoras não tinham dado, coisas de insignificante valor. Concluiu o hebreu que a negra furtava, para as vender, coisas de que ela não podia usar.

— Tal escrava não lhe convinha, senhora Dona Lourença — disse Duarte. — Deixe-a ir, que não se foi boa peça. O valor que ela tinha perdeu-se, é isso verdade; mas esta casa não fica hoje prejudicada com a fuga de uma preta. António José da Silva pode comprar hoje toda a África e os sertões do Brasil.

Festejaram o dito, e divertiram a conversa para outro assunto. Leonor lembrou que a sua Lourencinha fazia anos em 5 de Outubro.

— Faltam cinquenta dias — disse ela. — Onde estaremos nós então?

— Talvez em Paris — disse António.

— Se não puderem estar sossegados em Lisboa — observou Duarte.

— Pois decerto. Se eu pudesse aqui viver sossegado, não trocava país nenhum por este, onde tu vives, meu bom Duarte.

— Eu, não sei porquê — disse Leonor — , desejava festejar o segundo aniversário da minha filha fora de Portugal.

— Ó Duarte — exclamou de golpe o hebreu — queres tu vir passar connosco um ano a Paris? És homem para nos dar esse grande prazer?

— Era homem para o sentir com mil vontades, se fosse livre. Sabes que não posso renunciar à posição que ocupo, nem incumbir ninguém do trabalhoso encargo que promete a minha futura e descansada estabilidade. Depois, meu pai está velho, está rico, segundo penso, e tem mais filhos. Se eu arredar um passo contra vontade dele, vinga-se excluindo — me da herança. Que mais razões queres?

— Mas — tomou o generoso coração do hebreu — faz de conta que és meu irmão; gastas irmãmente comigo, e nunca sentirás precisão da herança do teu pai.

— És ainda muito criança, homem! — redarguiu o almoxarife. — Estes poetas, minhas senhoras, tem absurdos que seriam lamentáveis, se não fossem engraçados! Como este louco imagina que um homem, aplicado a ganhar a sua independência com a fadiga e sacrifício dos melhores anos da juventude, possa aceitar uma oferta que o inutilizaria aos seus próprios olhos!... Antoninho, não sejas sempre rapaz; não vás tu lá por fora arranjar alguns irmãos que fraternalmente te devorem as peças, os brilhantes, e os copos da espada do tresavô da tua senhora e a minha ama. Cuidado com os parasitas, ouviste? Olha que os portugueses, lá por essas nações, gozam fama de valentes; mas também a gozam de estúpidos que se deixam gozar. Sê caritativo; mas não sejas pródigo...

— Pareces um velho a aconselhar! — interrompeu António. — Nem que tu não tivesses trinta e dois anos como eu!

— É verdade; mas há muito que vivo cá em baixo terra a terra; e tu, desde que te conheço, encontro-te sempre nas regiões mitológicas com os Anfitriões e Alcmenas, e Proteus, e Apolos. As tuas comédias fazem crer que tu tens muita imaginação; mas juízo não no inculcam; aliás, em vez de comédias, escreverias versos laudatórios aos reis, aos bispos, aos frades, a quantos magnatas por aí há incapazes de tos perceberem. já fizeste versos a algum destes estafermos?

— Não. Versos a reis, ou a filhos de reis, apenas tenho aquele epicédio que fiz o ano passado à infanta Dona Francisca.

— Depois de morta. Isso de que presta?... Bem me recordo: glosavas os versos do soneto de Camões:

Alma minha gentil que te partiste

Tão cedo desta vida...

— É verdade — acudiu António José com desvanecimento. — Glorio-me de ter levado a primazia entre todos os poemas que saíram a chorar a princesa.

— A chorar!, chorava lá ninguém, homem. Quem é que chora pela senhora Dona Francisca, que Deus haja muitos anos lá sem mim? Os meus patrões, e muito sentimentais infantes, ao outro dia da morte dela, andaram na tapada da Bemposta a matar melros. Choraste-a apenas tu! Ele chorou, senhora Dona Leonor?

— Não me recordo bem... mas parece-me que sim, quando ma recitou.

— Poetas!... Ficaram no lugar das carpideiras que o meu avô ainda na morte do meu bisavô mandou alugar para chorarem vinte e quatro horas...

— Olha que a mim não me deram nada! — interrompeu António. — Por isso estou eu. São capazes de te dar tanto, como àquele Manuel Fernandes Vila Real que defendeu com a pena e com a espada, estando em Paris, os direitos de Dom João quarto à coroa contra Filipe e contra os portugueses acastelhanados; e, depois, como viesse a Portugal, os frades agarraram-no, deram-lhe garrote, e Dom João quarto não lhe acudiu. O António Henriques Gomes e o Manuel do Leão que também escreveram miríficas coisas em favor de Dom João quarto e de Dom Pedro segundo, se caíssem nas aboízes que a Inquisição lhes tinha cá armado, eram irremediavelmente assados. Não faças versos a príncipes mortos nem vivos, António. Gasta o teu dinheiro como quem não tem espírito de que dispor em divertimento dos outros. Queima os livros. Auto-de-fé aos livros, e eu faço de barbeiro do novo Dom Quixote de tramoias. Esquece-te de que tens lá nos escaninhos da cabeça um formigueiro de versos. Deixa ser o mundo bestial à sua vontade, e adeus até depois de amanhã.

CAPÍTULO V

Ao outro dia, Duarte Cotinel passou a Almada, e procurou em casa de um fazendeiro a negra fugitiva. Foi-lhe apresentada a escrava, que tremia enquanto não reconheceu o homem caridoso a quem devia o escapar-se às mãos de António José.

Chamou-a Duarte a um lado, onde os não ouvissem, e deteve-se largo tempo, Começou por lhe incutir medo à perseguição que os seus senhores iam fazer-lhe, persuadidos de que ela os tinha roubado, e vendido os furtos. Fez-lhe sentir que a compaixão o movera a vir ali avisá-la para que mudasse de terra e nome. E, quando a negra, tremente de susto, se debulhava em lágrimas, por não saber para onde fugisse, Duarte, ressalvando habilmente qualquer intenção dupla, disse-lhe em tom de piedade que passasse a Lisboa ao fim da tarde, e fosse ter a casa dele à Bemposta, onde ficaria até se lhe arranjar amos e segurança longe de Lisboa.

Assim o fez alegremente a escrava. O almoxarife recebeu-a com boa sombra, mandou-lhe dar ótima ceia e excelente cama. Ao outro dia, como a negra carecesse de mudar a roupa com que fugira, Duarte proveu-a do necessário, comprando-lhe umas roupinhas e mantéus escarlates, encantadores objetos que tinham sido o sonho dela, nunca realizado. Feliciana, conquanto orçasse por quarenta anos, começava a imaginar, à vista de tantas venturas, que o almoxarife não desgostava dela, e nutria intentos ao seu respeito, Admirava-se, porém, a preta, ao fim de três dias, das delongas não usadas, entre o desejo e a execução, com pessoas da sua laia.

Ao quinto dia de hospedagem, a escrava parecia a filha primogénita de um sova! A carapinha brunida e oleosa encaracolava-se-lhe fantasticamente. O rubi dos beiços incendidos parecia a porta do amoroso inferno que lhe ia nas entranhas do peito. As formas, aliás redondas e anchas, como que, debaixo dos trajes escarlates, entremostravam graças que a natureza, desacompanhada da cor e feitio do jaqué, nunca tivera nela.

Quando Duarte a chamou, em ocasião de estar sozinho, Feliciana entendeu que era chegada a hora de ouvir uma revelação de amor, feita com a delicadeza de que o seu novo amo e senhor a considerava digníssima.

Principiou o almoxarife perguntando-lhe se estava contente, se era bem tratada, se queria viver em companhia dele, ou sair de Lisboa. A preta não tinha expressões com que boquejar uns longes da sua felicidade, e confessava, no auge da sua modéstia, que não merecia o bem que estava gozando.

— Visto que estás satisfeita — disse Duarte — ficarás comigo mais algum tempo; e depois, se eu desconfiar que te perseguem, passarás para uma quinta do meu pai em Torres Novas; mas é necessário que te escondas, se alguma vez aqui vier o senhor Silva, ou criado da casa dele, porque eu não quero indispor-me com esta família. Ora — continuou ele — diz — me cá, Feliciana... Prometes debaixo de juramento responder às perguntas que eu te fizer?

— Prometo, senhor, assim Deus me salve.

— Os teus amos Silvas fazem lá algumas rezas que não sejam à moda e costume dos cristãos?

— Algumas rezas?!...

— Sim: eu vou perguntar-te de modo que tu possas responder a verdade a uma pessoa que te estima e promete fazer-te mais feliz ainda do que és. Ora diz-me: lá em casa era costume acender-se na sexta-feira à tarde, uma hora antes do pôr do Sol, uma lâmpada com quatro torcidas?

— A senhora Lourença fazia isso todas as sextas-feiras.

— E a lâmpada ficava acesa todo o sábado, não é verdade?

— É sim, meu senhor.

— E que fazia a senhora Lourença no sábado?

— Estava lá dentro do seu quarto a ler, nem se penteava nem lavava, nem pegava em agulha, nem cortava ou raspava as unhas, nem bebia vinho, nem comia coisa gordurenta, nem escrevia.

— E sabes se a senhora Lourença rezava de manhã assim que se levantava?

— Não, meu senhor; sem se lavar muito lavada, e mais coisas, não pegava no livro.

— Lembras-te de algumas palavras que ela dissesse? — Uma coisa que ela dizia todos os dias era isto: “Bendito sejas tu que deste ao galo instinto para distinguir entre o dia e noite:”

— Havia algum mês no ano em que a tua ama não jejuava?

— Era no mês de Março. Mudava de cama ou de roupa na véspera dos dias em que jejuava?

Note:

Decidiram os rabinos que se não jejuasse no mês de Março, porque este tempo, como aniversário da saída do povo hebreu do Egipto, deve ser consagrado ao reconhecimento e ao júbilo.)

— Sim, meu senhor; deitava-se num colchão duro com lençóis de estopa, e só comia ao outro dia à noite; e desde dezassete de Junho até dez de Julho não comia senão hortaliças, e punha cinza na cabeça.

— Outra coisa: teu amo doutor também fazia essas coisas?

— O senhor Antoninho?

— sim. — Nada; esse não rezava coisa nenhuma, nem jejuava. — E a senhora Dona Leonor? — Também não. — Então ela e o marido não praticavam acto nenhum de cristãos ?

— Que eu visse, não, meu senhor. Depois de mais algumas perguntas, Duarte Cotinel tirou de uma gaveta um fio de contas de vidro amarelas, e deu-o a Feliciana, dizendo:

— Aí tens para enfeitares o pescoço. Gosto de ti, e quero que estejas contente.

— Ora, se estou, senhor Duarte!... — balbuciou ela sinceramente comovida. — Muito feliz sou na sua casa!

— E serás uma ingrata, se me deixares!...

— Isso só por morte! — clamou ela com entusiasmo. E, como visse que o senhor não tinha mais que lhe dizer, retirou-se.

CAPÍTULO VI

Volvidos poucos dias, Duarte, apenas entrado na sua casa, vestiu de cólera o rosto, e disse à negra:

— O teu amo doutor lá te mandou procurar a Almada por dois esbirros. Se lá estivesses, a esta hora estavas em lençóis de vinagre! São cruéis os tais judeus! Venho agora de lá, disse-lhes que eram duros contigo, que te deixassem, porque saíras quase nua e sem real de casa deles. Provavelmente não tomo lá. Gente com tão ruins entranhas não a quero para amiga. Ora vê tu, pobre mulher, que vontade eles têm de te esfolar!... Queira Deus que eles se não lembrem de suspeitar que estás aqui!...

— O meu senhor não me deixa prender... — exclamou ela, pondo as mãos.

— Não deixo, ainda que tenha de defender a casa com todos os criados dos senhores infantes. O judeu não se atreve a cá vir; podes estar sossegada, Feliciana. Tens em mim um verdadeiro amigo e defensor.

— Nossa Senhora lho pague! Muito meu amigo é, senhor Duarte! Eu não sei porque é tão meu amigo!...

— É porque tive muita pena de ti, e estou convencido de que tu eras incapaz de ser a ladra que eles dizem. Olha; eu confio tanto da tua limpeza de mãos, que te deixo abertas as gavetas, como se te conhecesse há muitos anos. Quando quiseres comprar alguma coisa, compra, que eu gosto muito de te ver asseada e satisfeita. Aqueles malvados!... É assim que te pagam trinta anos de serviços; e não se lembram que tu, se fosses vingativa, os podias perder e desgraçar. Pois não podias, Feliciana?

— Como era?! — perguntou a escrava, como admirada da sua desconhecida generosidade.

— Pois se tu fosses denunciar ao Santo Ofício que os teus amos judaizavam, pensas que eles não eram logo sepultados nas masmorras do Rossio?

— Ah!, sim?... Pois então que me deixem... senão...

— Quem sabe? — tomou Duarte — , pode ser que afinal, se te quiseres ver livre da perseguição, não tenhas remédio senão... Nada... denunciá-los, não. Há de haver muito quem os acuse. Veremos como eles se portam daqui em diante... Eu queria que tu saísses, Feliciana. Custa-me ver-te aqui fechada; mas tenho medo que te prendam lá por fora, e que te castiguem ou entreguem à tua senhora, antes de eu poder valer-te! já me lembrou de te resgatar, comprando-te; porém, o ódio que eles mostram ter-te é tamanho, que, ao meu ver, antes querem matar-te que vender-te. Esperemos alguns dias mais; e, se eles não estiverem quietos, pensaremos no que se há de fazer. Estas barbaridades irritam-me. Os escravos são nossos irmãos e filhos do mesmo Deus. Tomei à minha conta defender-te, e hei de salvar — te das fúrias daquela maldita casta de gente, que está sempre a ver como há de abrir as veias do próximo! Que admira se eles mataram Nosso Senhor Jesus Cristo!

— É verdade! — murmurou compungidamente a negra. — Eu já tenho ouvido dizer isso; e, lá no Brasil, quando prenderam a minha senhora, uns homens que viram-na passar, ficaram dizendo: “Esta é das que mataram Nosso Senhor!“ Eu, depois, contei isto à senhora Lourença, e ela...

— Que respondeu ela? — acudiu pressurosamente Duarte. — Disse que os tais homens eram umas bestas.

— E mais nada?

— Mais nada que me lembre.

— Pois olha: vai recordando todas essas coisas que viste e ouviste, porque pode ser que ainda precises de as dizer, para te livrares de cair nas unhas dos tais matadores de Jesus Cristo.

A sessão terminou, para se continuar no dia seguinte, e nos outros. O almoxarife trazia sempre de fora alguma história urdida para aterrar e enfurecer a negra. A tanto lhe apurou a raiva que já afinal era ela quem pedia licença para ir denunciar os amos ao Santo Oficio.

Num daqueles dias, António José da Silva bateu ao portão da casa de Duarte Cotinel. A negra precavida, assim que viu-o por uma gelosia, correu alvoroçada a prevenir o novo amo.

Duarte foi escondê-la muito longe da sala em que devia receber a visita do amigo.

António José vinha triste, a dar-lhe parte da sua definitiva resolução de retirar-se, porque o conde da Ericeira muito à puridade o avisara da necessidade de sair de Portugal, porque no Santo Ofício se lhe estão forjando desgraças.

— O conde da Ericeira — atalhou Duarte — não pode saber mais do que o meu pai. Os rumores, que lá se passam, muito há te disse eu que se passavam; todavia, por enquanto, não têm sintomas assustadores. Não obstante, se queres ir, vai; se tens lá fora mais tranquilidade, não te demores, que o meu maior prazer é ver-te em segurança. Quando tencionas ir?

— Não é já, porque o conde também me disse que eu poderia sem receio estar uns dias em Lisboa. No dia cinco de Outubro, faz minha filha dois anos, e eu tinha muita vontade de os festejar em companhia de ti e dos Barros.

— Estamos hoje a vinte e quatro de Setembro... Faltam onze dias... Posso asseverar-te que não corre o mínimo sobressalto a tua liberdade nestes onze dias. E a mobília da tua casa que lhe fazes?

— Vinha oferecer-ta. — Não aceito, António, porque não sei que lhe faça. Como vês, esta casa está decentemente mobilada por conta dos infantes, e eu não tenho outra residência. Vende a mobília a quem ela seja necessária; e, se não queres figurar nisso, eu me encarrego.

— Não posso dar trabalho a quem me não recebe o mais leve favor — disse António José. — Encarregarei a venda a algum parente da minha mulher. Diz-me cá: nunca pudeste descobrir que fim levou a desgraçada escrava?

— Não.

— Tenho feito diligências incansáveis! Ninguém me dá notícia alguma. A minha pobre mãe chora por ela, e queixa-se de mim, como causa de a sua Feliciana fugir. Se se matou, fica-me este remorso a trespassar-me o coração!

— Ora adeus!... remorsos de castigar escravos!... Fizeste menos do que fazem os outros senhores deles que lhes despem o couro. Deixa lá a negra, que está por aí a servir, e não pensa em se matar. Assim que saíres de Lisboa, aparece ela.

— Oxalá que assim seja. Hei de deixar-te uma boa esmola para lhe entregares, se a vires.

Saiu António José da Silva. Duarte foi buscar a negra ao esconderijo, e disse-lhe: — O teu amo asseverou-me que tinha a certeza de te haver às mãos antes de oito dias.

— Então fujo de Lisboa? — perguntou ela ansiada. — Não. Sossega. Eu vou sair, e volto daqui a duas horas. — Não me deixe prender, senhor Duarte! — exclamou a escrava de mãos postas.

— Estás pronta a fazer tudo que seja necessário para te salvar?

— Estou, meu senhor!

— Bem. Logo falaremos. Duarte Cotinel saiu; entrou em casa do promotor da Inquisição, e deteve-se meia hora. Dali foi em direitura ao Convento de S. Domingos, e demorou-se com dois conselheiros do Santo Oficio. Era de pronto recebido como familiar. À saída do convento, viu António José da Silva que desembocava das Portas de Santo Antão. Escondeu-se. Não lhe sobrou infâmia para se defrontar com o homem que ele andava apunhalando. Era um remorso dos celerados aquele. Lampejava-lhe uma luz nas trevas da alma; porém, luz do inferno, chama da consciência infernada.

António José da Silva não o vira. Ia abstraído, pensando no modo de brindar o amigo Duarte com um gracioso e ao mesmo tempo rico presente no dia de anos de Lourencinha.

Chegou o almoxarife a casa, esteve-se momentos em recolhimento acerbo, e chegou a pedir sacrilegamente ao diabo que lhe afastasse o cálix da tentação. O diabo conduziu-lhe a negra, que lhe vinha perguntar o que ela devia fazer.

— Eu te chamarei... — disse ele mal encarado.

Feliciana fez pé a trás, espantada da mudança. E o diabo, assim que a preta voltou costas, foi buscar o cofre de António José, e mostrou-lhe peça por peça a caixa dos pentes de ouro cravejados de diamantes, e as vinte e quatro pedras de extraordinário lume e quilate, e os copos da espada recamados de joias, e os vinte e quatro contos em moedas de ouro. Repôs tudo no cofre o expositor infernal, e disse, batendo-lhe com a mão de ferro calcinado no coração:

— Cento e cinquenta mil cruzados! Levantou-se de salto Duarte, e foi dentro chamar a negra. Compôs o gesto, abemolou o tom da voz afogada da rápida respiração, e disse:

— É necessário, se te queres salvar, que vás à Inquisição denunciar teus amos; senão, estás perdida, que eu não posso combater a perseguição que te fazem.

— Pois eu vou... e que hei de dizer?... — perguntou ela, tremendo.

— Tudo que sabes, tudo que viste. Não queres?

— Vou onde Vossa Senhoria me mandar. Pois não hei de ir?

— Porque se não vais és presa, e além disso estás excomungada.

— Excomungada!

— Sim. És obrigada a denunciar dentro de trinta dias teus amos, sob pena de excomunhão. Amanhã, às dez horas, irás à Mesa do Santo Ofício à Casa Santa. Diz ao alcaide que queres falar ao senhor inquisidor; lá te farão as perguntas, e tu responderás; mas olha, Feliciana, se te perguntarem o que fazia teu amo doutor, responde que fazia o mesmo que a sua mãe; senão, fazes prender a mãe, e ele fica livre para te acabar a vida nos ferros do Limoeiro ou nas galés.

A negra foi fazer exame de consciência como quem se prepara para salvar-se das galés.

A furto, lhe caía às vezes na alma uma gota dolorosa como de chumbo candente. A negra dava upas no catre, onde não provou cinco minutos de repouso. Um raio de penetrantíssima angústia lhe atravessava, a espaços, a cabeça, e ao fogo, que lhe acendia, mostrava-lhe os benefícios, afagos e cuidados com que Lourença Coutinho a tratava nas suas moléstias. Quando as lágrimas, ferventes daquele queimar, lhe ressumavam aos olhos cravados nas trevas, chamava ela no seu auxílio a lembrança das vergastadas que sofrera, doutras que a esperavam, e, depois, as gramalheiras da galé.

Lutou assim até ao dia. E, ao mesmo tempo, a noite de Duarte não foi mais repousada. Calculava ele as consequências daquele acto, que ele já, ainda que quisesse, não podia aniquilar. Se a negra, golpeada de remorsos, revelaria nos interrogatórios futuros que fora ele o motor da denúncia? Que pensaria o mundo da riqueza inesperada? Que julgaria da perfídia do homem que perdera uma família? Ocorreu-lhe a ideia valedora de todos os que não receberam ainda nome condigno e significante na perversão moral, que entesta com as raias do inverosímil. Lembrou-se de matar a veneno a escrava à hora em que fosse necessário sepultá-la com o segredo.

A negra não podia ser pálida diante do inquisidor que a interrogava, e do secretário que escrevia o depoimento; mas o tremor da voz dizia o que a escuridão da pele, oleosa de aflito suor, não podia delatar. A desgraçada estava já sentindo em corpo e alma as labaredas que se iam acendendo, a cada palavra dela, em volta da família com quem se criara desde criancinha.

Juramentada, confessada, e intimada para aparecer quando novamente a chamassem, saiu. Apertou o pé caminho da Bemposta, e limpou muitas vezes as lágrimas para ver o caminho.

Ansiosamente a esperava Duarte. Feliciana lançou-se-lhe de joelhos, exclamando:

— Eu fiz que vão matar a minha senhora, e a senhora Dona Leonor que nunca me fez mal nenhum! Não os deixe morrer, senão eu vou atirar-me à cisterna!

— Não morre nenhum, tola! — disse Duarte. — No primeiro auto-de-fé saem todos livres; e entretanto eu tratarei de te arranjar fora de Lisboa um modo de vida em que tu enriqueças. Hei de dar-te um bom dote para casares com um oficial de oficio. Ergue-te, Feliciana. Então respondeste? — Sim, meu senhor; mas eles, às vezes, faziam-me dizer o mesmo de muitas maneiras, e eu estava a tremer de medo daquele senhor da capa e barrete de borla, que tinha cara de meter medo...

— Está bom. Vai jantar, e come bem, que os teus amos não sofrem senão a prisão de algum tempo. já te não lembram aquelas vergastadas?...

CAPÍTULO VII

As pessoas não lidas nas mais repulsivas páginas que temos da história da humanidade; as que não viram ainda nem coraram de ver os irrefutáveis e imorredouros livros de Alexandre Herculano acerca da Inquisição em Portugal, desculpavelmente malsinam de inverosímil o carácter de Duarte Cotinel. Faz-lhes honrosa repugnância tão extremada infâmia, quando o intento e fito dela é aferrar de um cofre recheado de riquezas por cima da torrente de lágrimas e sangue de uma família, por cima de uma fogueira que derrete as carnes e pulveriza os ossos do possuidor do tesouro. Espantam-se, e refutam de boa fé, como desnaturais e insondáveis os abismos de infâmia donde lhes sai o homem que não pode alegar como causa da morte horrendíssima de uma família, senão a necessidade de a roubar, e a descoragem para matá-la a ferro quando ela o recebe no seu grémio confiadamente.

Espantam-se; mas não era mais para assombros Duarte da Paz, aquele hebreu que recebia dos da sua raça ouro a torrentes para os salvar em Roma, e os vendia aos algozes sagrados de D. João III? Não era mais incrível a denúncia do parente, que esperava sonegar ao confisco do Santo Ofício os tesouros do irmão, e às vezes do pai, que expirava amaldiçoando a cega Providência, por não saber quem o chumbara às lajes que o sol não aqueceu nunca?

O melhor e mais alto louvor que pode entoar-se a este século é não haver aí quem já aceite como praticáveis os atrozes lances de um passado, que dista de nós apenas século e meio. Que dias aqueles e que dias os nossos! Como a vida e alma humana eram então desgraçadas! Que deploráveis gerações de infelizes e de celerados rolaram à voragem em correntes de lama ensanguentada! Como o sol de Deus passaria triste no céu, e o que iria no grande Espírito Criador, lá em cima, cortinas adentro destes milhões de estrelas!

É preciso levar o pensamento ao âmago, ao turbilhão daqueles dois séculos nefastos que marcam o nosso opróbrio desde D. João III até ao marquês de Pombal, aurora do melhor dia, aurora manchada ainda de laivos de sangue, mas enfim o alvorecer, o redimir — se o homem, esquecido de Cristo, começou então, neste recanto de heróis piratas, e de apóstolos sanguinários! E a Providência não contava como seus, como obra sua, como filhos da sua eternidade aqueles dois séculos?

A Providência deixava escabujar o hebreu nas correntes da sua masmorra, e deixava aquecer-se o frade às chamas crepitantes dos seus cruentos holocaustos a Jesus.

Mas um dia, a última fogueira devia apagar-se devorando o mais fanático dos tonsurados, o padre que em si compendiava o ascetismo fraudulento, as ilustrações fictícias do alto, os dons falazes de inspirado, as raivas teocráticas, quantos herpes tinham roído e empeçonhado os liames que suavemente enlaçavam a humanidade com a cruz do seu mais divino redentor.

Um dia acendeu-se uma fogueira; e essa fogueira, que foi a última em Portugal, ao apagar-se deixara um sedimento lodoso em que a Providência mandou procurar as carnes, os ossos, e me quer parecer que a alma do padre Gabriel Malagrida.

Aqui está a Providência. Mas quem deu conta dos milhares de famílias, cujas cinzas levaram os quatro ventos do céu?

A Providência não as pediu — acrescenta uma blasfema filosofia.

Pediu. Destes atascadeiros do mundo não podemos desferir o voo lá para onde essas contas se pedem; cremos, porém, com a mais pia racionalidade, que os filhos de S. Domingos e filhos dos santos pontífices foram chamados a contas, e as deram como criminosos de um período do mundo em que a legislação civil não era mais misericordiosa que a eclesiástica.

Eu creio que ninguém tirou uma vida que não respondesse por ela quando o nome do assassinado fosse lido na lista do seu Criador.

E por isso pergunto aos oráculos dos nossos dias se os caprichos dos reis não têm que dizer da sua justiça, quando lhes perguntarem porque alvejam ainda as ossadas nos descampados em que passaram os reis, à frente das suas reses.

Não sei qual razão haja aí que legitime o morrer dos que pelejam; contra uma bandeira; e se deplore sobre a página tarjada dos que caíram nas lutas religiosas, mais ou menos covardemente assassinados.

De cadáver a cadáver não há distinção. É tudo o mesmo açougue.

CAPÍTULO VIII

Chegou o dia 5 de Outubro, segundo aniversário de Lourencinha.

Diogo de Barros, com todos seus filhos e netos, e alguns poucos mais parentes de Jorge, à hora do meio-dia estavam em casa do advogado António José da Silva, depois de previamente remeterem os seus presentes em bandejas de prata cobertas com alvíssimas toalhas à cabeça de escravas, as quais iam acompanhadas por lacaios das casas respetivas.

À uma hora estava o jantar na mesa. Abancaram todos alegremente, excetuado o pai da festejada criancinha, porque meia hora antes recebera um bilhete de Duarte Cotinel Franco, lastimando-se por não poder comparecer na festa, e mais ainda por motivo de não poder desamparar um posto, donde estava observando a tecedura de uma intriga inquisitorial contra o seu amigo, intriga que requeria urgentíssimo remédio.

António José da Silva, terrivelmente surpreendido, escondeu de todos, e até da esposa, o conteúdo do bilhete, para não perturbar a satisfação dos convidados. Julgou ele que a intriga ou seria logo desfiada por esforços do amigo, ou viria a vingar mais tarde: como quer que fosse, absteve-se de sobressaltar a família e os hóspedes, simplesmente anunciando que Duarte Cotinel faltava ao jantar por desculpáveis motivos.

Lourencinha, durante o jantar, andou pelos braços de todos, e o mais do tempo esteve nos do padrinho, Diogo de Barros.

O ancião, já sabedor da breve saída de Leonor, fitava olhos húmidos na afilhada, e dizia-lhe:

— Não chegas a conhecer o teu decrépito amigo. Quando tiveres sete anos, tua mãe te falará de mim, e te dirá quanto quis aos teus avós, aos teus pais e a ti, anjinho do céu.

— Essas lágrimas, meu tio, vêm amargurar a festa da nossa Lourença — disse Leonor. — Quem sabe ainda se nós iremos para fora? Parece-me que vamos já esquecendo...

— Não esquecemos, não... — acudiu António José, reconcentrado e triste.

— Pois que há, António? — perguntou Lourença.

— Nada, minha mãe!... E, tomando da mesa uma alva caneca indiana, exclamou: — Bebamos à saúde de Duarte Cotinel Franco, amigo honrado, amigo dos que a Divina Providência dá aos infelizes que a não denegam nem ofendem! Bebamos à saúde do generoso defensor que faltou nesta festa de família, porque não podia ao mesmo tempo estar aqui e defendê-la das armadilhas dos nossos inimigos! Bebamos à saúde de Duarte!

Bradaram todos, tirante Leonor e Lourença:

— À saúde de Duarte!

— Tu não bebes? — perguntou António à esposa.

— Estava distraída... — respondeu ela; e, pegando da sua taça, disse ela: — À saúde dos sinceros amigos!

Lourença Coutinho bebeu também. António José olhou-as com severidade, e murmurou:

— Sois ingratas!...

— Então, senhor Silva? — exclamou Diogo de Barros. — São isso palavras que se digam?

— Pois que quer Vossa Senhoria? — redarguiu o hebreu. — Ainda não pude provar a estas criaturas que Duarte é um homem de bem!...

— Nem a mim — atalhou Diogo.

— Pois quê?!... — volveu António José com muito espanto — , nem a Vossa Senhoria!

— Não; mas não debatamos hoje essa questão, senhor doutor. Falemos linguagem amorosa, que a nossa criancinha entenda. Chegai-me cá essa bandeja de confeitos para a beira da minha afilhada...

Fez-se um forte estrondo na porta da escada e calaram-se todos. Antes que entrasse criado a dar aviso, apareceu Duarte Cotinel, com a vista esgazeada e descomposto rosto.

— Que é? — perguntaram muitas vozes.

— Vem cá, António!... depressa... depressa... Todos se levantaram, e só o judeu passou com ele à próxima sala.

— Vais ser preso — disse ofegante o almoxarife.

— Preso?, já?...

— Já os familiares e meirinhos estavam à boca da rua. Sei que a ordem também se entende com a tua mãe e mulher. O meu pai já não pode salvar-te; mas arrancar-te-á brevemente da prisão... Não percas agora a cabeça, António! Vem cá!...

O judeu corria de um lado para o outro apertando vertiginosamente as fontes.

— Vem cá... escuta-me...

— Que é? — disse António com espasmo de idiota.

— É preciso salvar o teu tesouro das garras da Inquisição. Bem sabes que os hebreus ricos, se podem salvar-se do fogo, saem mendigando do cárcere.

— Sei... e então! — De quem confias as tuas riquezas? — De quem?... de ti, de ti... Duarte!... — E já!, então deve ser já, antes que os familiares arrestem o que estiver de portas adentro. Leva-me onde está o tesouro, que eu desço com ele para os baixos do pátio, e fujo depois que os familiares entrarem.

António correu à sua câmara: abriu o gavetão de um contador, e entregou-lhe o cofre, e mal articulou estas vozes:

— Não nos desampares, não nos desampares... Duarte desceu pressurosamente ao pátio, e escondeu-se no quarto dos criados.

Instantes depois, entraram dois familiares do Santo Oficio e dois meirinhos.

Quando chegaram ao topo da escada, ouviram grande alarido de gritos, Bateram.

Saiu-lhes Diogo de Barros, que devia conhecer os familiares: eram duas pessoas nobilíssimas, nascidas em duas das mais distintas casas da monarquia?

Note:

Os primeiros fidalgos de Portugal honravam-se grandemente com apresilharem no ombro a insígnia de quadrilheiros da Inquisição. Era uma medalha de ouro com as armas do Santo Ofício gravadas.

Diogo de Barros, com as faces cobertas de lágrimas, proferiu palavras suplicantes, compungentes, e todavia inúteis.

Um dos familiares disse:

— Vossa Senhoria sabe quais são as minhas obrigações, porque, na qualidade de familiar do Santo Ofício, sabe cabalmente quais são as suas.

— Uma das presas tem uma filhinha de dois anos... — disse Diogo — , como há de ser isto?

— Como é costume — respondeu o enviado da Inquisição as crianças ficam no poder de quem as quer aceitar.

Os brados redobravam interiormente, porque Leonor tinha ouvido dizer ao familiar: “As crianças ficam.”

Foi dentro Diogo, e os quadrilheiros seguiram-no. Leonor girava em volta dos hóspedes, como para fugir-lhes, temerosa de que lhe arrancassem a filha. António José, a um canto da sala, encarava, num letargo de brutificação dolorosa, os movimentos frenéticos da mulher. Ninguém sabia nem podia ali consolar: choravam todos.

Os familiares, com braços cruzados, esperavam o quebrar daquela tormenta, e mediam de alto a baixo dois filhos de Diogo de Barros que, num instante de indiscreta ira, tinham posto as mãos nas guardas dos fains.

António José da Silva saiu do seu estupor, e caminhou com presença de alma a encontrar a mulher numa das suas irrequietas arremetidas.

— Leonor! — disse ele — , isto é irremediável. Entrega a nossa filha ao senhor Diogo de Barros.

As damas rodearam Leonor, e ampararam-na. A criança expedia altos gritos. A mãe largou-a, ou por julgar que a estava estrangulando no apertar dos braços, ou porque os sentidos lhe faltaram. Uma das senhoras passou a outra sala com a menina.

Diogo de Barros pediu aos seus colegas do Santo Oficio a graça de concederem que Leonor e a sua mãe fossem transportadas de liteira à Santa Casa.

Responderam: — Não temos alçada. Pediu-lhes que o esperassem enquanto ele ia falar ao cardeal inquisidor. Responderam que não podiam esperar mais tempo.

Leonor e Lourença cobriram as mantilhas, e desceram encostadas às espáduas de António José.

Um dos meirinhos fechou as portas, depois de ordenar da parte do Santo Ofício que saíssem todos os escravos e criados.

Assim terminou o dia 5 de Outubro de 1737, segundo aniversário natalício da filhinha de António José da Silva.

CAPÍTULO IX

A Inquisição tinha diariamente dois conselhos, chamados ordinários. Um das oito às onze horas; outro do meio-dia às quatro.

Quando os presos chegaram à Santa Casa, já os inquisidores e secretário tinham saído da Mesa do Santo Ofício.

O alcaide conduziu-os a um vasto salão, já iluminado com lampadários pendentes do teto esfumado, e mandou-os esperar, recomendando a Leonor, que soluçava, completo silêncio.

Um guarda, ou chaveiro, ficou encostado ao batente da alterosa porta.

António José sentou-se num tamborete de pau entre sua esposa e mãe. Apertou nas suas as mãos de ambas, e murmurou:

— Não desanimem, que Duarte asseverou-me a nossa próxima saída.

Lourença soltou um gemido, e apenas balbuciou:

— Duarte!... Creio que estamos perdidas!... — Não estão... não estão... Tens coragem, Leonor?

— Tenho... que sou mãe... — exclamou ela, levantando a voz.

O guarda pronunciou um longo sio. Às cinco horas voltou o alcaide, e disse às presas que o seguissem.

— Adeus! — disse Leonor ao marido, inclinando-lhe ao peito a face.

Lourença Coutinho beijou o rosto do filho, e disse-lhe ao ouvido:

— Até Deus, meu amado filho! António José abraçou-as a um tempo, e caiu sobre os joelhos com elas.

— Venham, mulheres! — disse o alcaide carregando o aspeito.

Levantaram-se: Deus viu-os levantar-se, e separarem-se. Viu-os, porque Deus está em tudo e vê tudo.

Enquanto o alcaide não voltou, o hebreu esteve de joelhos, com o rosto sobre o tamborete. Ouviu os sonoros passos do chefe dos carcereiros; levantou-se, e perguntou — lhe:

— Pode por piedade dizer-me se a minhamulher e a minha mãe ficarão juntas?

— Ficarão juntas até amanhã. Siga-me. António foi levado ao cubículo quadrado de dez palmos em que estivera onze anos antes: era o cárcere número seis do corredor meio novo. O alcaide deteve-se alguns segundos para lhe mostrar a enxerga e a manta, o pote da água e o púcaro; depois saiu com a lâmpada, rodou a chave, e fez as trevas profundas daquele ergástulo, por ordem dos levitas de um Senhor, que tinha feito a luz universal, num dia de boa feição, antes de fazer os levitas num dia de rancor às suas criaturas. Não sei se o hebreu ficou a pensar nisto: o blasfemar, naquela situação, seria não vulgar virtude.

Domingos de Gusmão, se está nalguma parte, e conserva a memória dos favores que fez ao género humano, deve saber contar como foi aquela noite de António José da Silva, de Leonor e de Lourença Coutinho, e daquela criancinha sem ver sorriso ou lágrimas de pessoa conhecida.

Às seis horas e meia abriu-se a porta do cárcere número seis: o guarda depôs ao lado da enxerga do hebreu um prato de arroz com uma posta de peixe, e saiu?

Note:

A alimentação dos encarcerados, com alguma diferença, nas horas de lha ministrarem, era a mesma em todas as prisões inquisitoriais do território português. O autor da Inquisição de Goa, o qual, como se disse, foi muito tempo ludíbrio dela, no tocante aos alimentos, diz o seguinte: “Os presos são bem tratados; comem três vezes ao dia; almoço às seis horas da manhã, jantar às dez, e ceia às quatro horas da tarde. Aos pretos dão-lhes canja de arroz: chama-lhe o francês cange, ao almoço; ao jantar e ceia dão-lhes peixe e arroz Os brancos passam melhor: de manhã dão-lhes um pão fresco de três onças, e peixe frito, fruta, e uma linguiça, se é domingo ou quinta-feira; e nestes dias, ao jantar, dão-lhes carne, um pão como o do almoço, e um prato de arroz e algum guisado com farto molho, para adubar o arroz, que é cozido simplesmente com sal; nos demais dias o jantar é sempre de peixe; e à noite dão peixe frito, pão, arroz, e guisado; carne é que nunca lá se come à noite.” Presume o desconhecido autor que a abstinência da carne leva em vista evitar indigestões. Aqueles higiénicos sujeitos poupavam os corpos salutarmente, no intento de lhes purificar as almas no fogo. Em Lisboa prevalecia a mesma piedade.

António José deteve-se a olhar na chama da lanterna, que o chaveiro pusera ao lado do prato. Voltou o guarda, e disse-lhe que comesse.

— Não posso — respondeu o preso.

O guarda saiu com a luz, e correu os ferrolhos da porta. Ao romper da manhã, António José tinha os olhos cravados na alta fresta, por onde entrava o dia através das grades. Assim que o cubículo se aclarou, olhou em redor de si: reconheceu aquelas paredes. Viu um objeto novo: era uma cruz, feita com sangue, à cabeceira da enxerga. Algum desgraçado ali deixara aquele testemunho da sua religião, traçado com o sangue furtado ao constritor das torturas. Às seis horas, levaram-lhe o almoço. António José, como tivesse orado, cobrou alento. Orar a quem? Não se sabe; mas as testemunhas juradas contra ele disseram que, através das escutas da prisão, viram-no algumas vezes orar de joelhos. Orava a Deus.

O certo é que se lhe fez luz de esperança. Aceitou o almoço, e comeu porque esperava resgatar-se, depois de alguma flagelação. Deram-lhe uma vassoura para a limpeza do calabouço, um pote para determinado fim, e uma celha, que servia de cobertura ao pote, e de recetáculo de lixo. Depois, cortaram-lhe o cabelo, vestiram-no com o traje da casa, e despojaram-no de tudo que levava vestido.

O hebreu, onze anos antes, tinha deixado ali um alcaide que o tratava com menos crueza, bem que nunca lhe concedesse um livro? O novo oficial, que substituíra o outro, denotava a ferocidade ordinária daqueles funcionários da Santa Casa, e pode ser que extraordinária ferocidade com ele.

Leonor e Lourença tinham passado a noite juntas. Não nos arrojamos a bosquejar muito em sombra as presumíveis angústias das duas mulheres. A pena mais afeita a escrevê-las, ainda entre os dedos de Lorente e de Alexandre Herculano, cai desanimada. Esta ineficácia e incapacidade para descrições de agonias inenarráveis faz honra ao coração do homem.

Ao outro dia, por volta de onze horas, um guarda separou as presas. Abraçaram-se. Lourença disse à esposa do filho:

— Se vivermos... até ao auto-de-fé. Leonor, quando se viu sozinha, ajoelhou, e disse: — Meu Deus, graças te dou, porque me levaste minha mãe e o meu pai! Deus de misericórdia, leva-me a minha filhinha, se eu não hei de mais vê-la... leva-ma, ó Senhor, para eu poder acabar resignada!

Ao mesmo tempo, um oficial do Santo Ofício entrava à prisão do hebreu exortando — o a que declarasse exatamente os seus haveres, acrescentando:

— Da parte de Jesus Cristo vos digo que, se estiverdes inocente, vos será entregado tudo que o vosso for; e, se alguma coisa sonegardes, qualquer que seja a vossa inocência depois reconhecida, tudo perdereis.

António José respondeu que tudo que possuíra deixara na sua casa no Largo do Socorro; juntou que pouco herdara do seu pai, e a pequena herança a empregara em adornos da sua casa.

À uma hora da tarde, o alcaide e um guarda conduziram-no à Mesa do Santo Ofício, ocupada por três inquisidores e um secretário. Mandaram-no sentar em tamborete raso, único objeto desprezível no meio de ricas poltronas, tapetes, e guadamecins que exornavam o espaçoso recinto. Os inquisidores ocupavam parte das poltronas laterais à mesa. O secretário sentava-se rente ao topo da banca, voltando as costas a um grande Cristo que se alevantava até à abóbada. Começou o interrogatório, depois que ele foi ajuramentado com um missal. Perguntaram-lhe se sabia porque fora preso. Respondeu que não. Pediram-lhe “pelas entranhas misericordiosas do nossoSenhor Jesus Cristo!”, (Eram os termos sacramentais com que pediam tudo.) que confessasse para mais depressa experimentar a bondade e misericórdia daquele tribunal com os sinceramente arrependidos.

Disse o hebreu que se julgava vítima de odientos intriguistas, que tinham querido ver nas suas comédias alguns rebuçados insultos à religião católica. Instaram os inquisidores pela continuação das suas conjeturas. António José respondeu que não tinha outras.

Leram-lhe o que ele tinha dito, e mandaram-no assinar. Ao toque de campainha, entrou o alcaide, o secretário fez um gesto de cabeça, e o hebreu saiu.

António José quis ler no rosto dos inquisidores uma boa nova. Figuraram-se-lhe afáveis no trato e comovidos nos termos do interrogatório. Lembrava-se da aspereza dos outros que, da primeira vez, e logo às primeiras perguntas, o ameaçaram com a tortura. Saiu animado: enviou aos corações da esposa, da mãe e da filhinha um sorriso de esperança.

CAPÍTULO X

Neste dia, Duarte Cotinel, a horas descostumadas, estava ainda fechado no seu quarto. A noite passou-a na vigília de um suplício atroz, com intermitentes de infernal alegria. Tinha ali o tesouro de António José da Silva. Abrira-o, remexera-o, contara as joias, contara os brilhantes: estava tudo, e mais um anel, que ele nunca vira, o anel do contador-mor, a prenda que D. João de Bragança dera ao seu destro caçador na tapada de Vila Viçosa. Mas assim que ele despregava os olhos das flamejantes pedras, assim que descia a tampa do cofre, ressaltavam outras chamas de dentro dele, e iluminavam-lhe três pessoas em contorcimentos horrentes, amarradas a três postes, e as labaredas a subirem, e a serpejarem por elas, e a fumarada negra a subir em coluna dentre as camadas de lenha e as faíscas a lampejarem pela cerração do fumo, e os gritos estrídulos a retinirem por sobre o crepitar da fogueira.

Assim que o almoxarife se afez àquela visão, e achou que o segredo mágico de a desvanecer estava no abrir do cofre e na deleitação de tirar e repor as preciosas camadas, conseguiu conciliar o sono. Ora, a placidez, com que ele dormia às onze horas da manhã era tal que ninguém poderia estremá-la da placidez com que dorme um justo.

Às onze horas, porém, foi espertado por estrondoso empuxar à porta. Saltou do leito, e abriu as janelas para convencer-se de que havia sol, ar e luz para ele, como para qualquer justo, que se ergue do seu catre duro de penitente para louvar a luz, o ar e o sol de Deus.

Ouviu o gritar convulso de Feliciana; vestiu-se à pressa, e abriu.

A negra ia dar-lhe parte de que estava no pátio um familiar e um meirinho do Santo Oficio, em procura dela.

— Olhe se me esconde, pelas cinco chagas! — exclamava ela.

— Se te escondo?! Para quê? — disse ele sossegadamente. — Pois tu julgas que vais presa?

— Pois então?

— Não vais presa, bruta; vais ser outra vez perguntada a respeito do que já disseste; entendes, mulher?

— Perguntada outra vez? — disse ela.

— Diante da minha senhora?

— Não: tornam a perguntar o que já disseste, e mandam-te embora, que é o costume. Pois tu pensas que as testemunhas também são metidas na prisão? Está aí o familiar, porque é sempre assim; é ele que vai buscar as testemunhas.

A escrava, não obstante as explicações confortadoras de Duarte, pensou em fugir pela quinta; mas o familiar e meirinho anteciparam-se a intimar perentoriamente o almoxarife, por maneira que faltou à negra tempo e ocasião de fugir.

Depôs ela saiu Duarte, caminho do tribunal. A preta foi conduzida à audiência; o almoxarife da Bemposta entrou no aposento do alcaide, onde se demorou meia hora em prática muito recôndita.

Ao capelão dos infantes, pai de Duarte, devia o alcaide a sua investidura naquele exercício bem remunerado. O almoxarife sabia que naquele homem tinha um auxiliar poderoso e de confiança para qualquer intento, sem despender-se na compra da alma bastante abjeta para vender-se cara. A prática entre os dois terminou depressa porque as ocupações do alcaide eram muitas e pouco intervaladas de repouso, mormente naquele mês de Outubro, em que regularmente se celebravam os autos-de-fé — por cair então a primeira dominga do Advento — e serem mais frequentes os interrogatórios e torturas dos presos.

Assim mesmo no breve tempo que praticaram, os pontos essenciais, respetivamente à negra, foram combinados, e as consequências más previstas e remediadas.

Feliciana, depois de interrogada, ouviu o seu depoimento, e assinou de cruz. Mandaram-na sair; e quando ela endireitava pelo caminho do pátio, um guarda mudou-lhe a direção, dizendo-lhe:

— Por aqui. Apavorou-se a negra, e perguntou em ânsias: — Eu fico presa? — Não: ficas ali em baixo num quarto até ver.

Fecharam-na. Começou logo ela a dar gritos e a revolver-se no pavimento.

Acudiram os guardas com vergastas e ameaçaram-na. Foi chamado o alcaide, para aquietá-la. Queria ele ficar a sós com a negra para acalmá-la com razões consoladoras, que assim convinha; mas, proibindo os estatutos da Inquisição que algum oficial do serviço dos cárceres estivesse com o preso sem o testemunho doutro empregado, o alcaide valeu-se do terror para aquietá-la.

Ao outro dia, o guarda avisou o alcaide de que a negra estava clamando que jurara falso, e queria ir desdizer-se à presença dos inquisidores, e contar o que se passara com a pessoa que a fizera jurar.

O alcaide avisou Duarte Cotinel, que sem mais demora que a necessária para prover — se de um frasco, foi à Santa Casa, e pouco se deteve com o confidente.

A negra não cessava de exclamar e pedir que a ouvissem. Pouco antes da hora do jantar, o alcaide, com o pretexto de a castigar, entrou sozinho à prisão, e tão brandamente falou à negra, tão breve lhe figurou a sua saída do Santo Oficio, que a desgraçada aplacou — se, e prometeu comer e sossegar até ao outro dia na esperança de sair então.

Feliciana jantou com algum apetite; não achou travor sensível no molho da caldeirada do peixe: comeu bem, com tenção de dormir melhor para aligeirar o tempo. Meia hora depois, quando pensava em adormecer, saltou da enxerga em gritos e ânsias, bradando por socorro. Acudiram os chaveiros. Feliciana queixava-se de ter dores infernais no ventre; rolava-se no soalho, e levantava-se de salto remetendo contra a porta para fugir. Numa destas investidas que os guardas repeliam, a negra caiu, estrebuchou, estirou as pernas em convulsões, retorceu boca e olhos horrendamente, e morreu.

José Maria da Costa e Silva, o menos imperfeito biógrafo de António José, diz o seguinte acerca desta escrava:

“Lourença Coutinho, mãe do poeta, tinha uma escrava preta, porque nesse tempo havia ainda escravos neste reino, e aquela escrava era desonesta e dissoluta, como todas elas, e como o são quase todas as criadas.

António José da Silva a castigou, e é natural que com rigor aproximado ao que em tais casos se usa no Brasil: a negra era vingativa como quase todos os negros, e ou por malignidade própria, ou por sugestões de pessoa ou pessoas a quem se queixou, apresentou contra ele no Santo Oficio uma notícia de judaizante e relapso...

Porém, a justiça de Deus não quis que esta perversa mulher continuasse a ajudar a ruína do seu senhor, nem gozasse da sua vingança tão traidoramente procurada; pois apenas a negra entrou no cárcere possuiu-se de tais terrores que dentro em breves dias terminou a sua existência.“

Eu inclino-me a crer muito mais nos efeitos do veneno de Duarte Cotinel que nos pavores e remorsos da negra.

CAPÍTULO XI

Estavam em campo os poucos amigos e os muitos inimigos de António José da Silva.

Inimigos eram os homens de letras, que se julgavam compreendidos na alegoria daqueles que D. Quixote e Sancho Pança levaram a pontapés para fora do Parnaso; eram os ouvintes piedosos das suas comédias que riam muito das facécias indecentes e censuravam a licença desbragada do judeu; eram os frades, que através da gelosia do seu camarote, se tinham doído das frechadas que o judeu nunca lhes apontara.

Amigos tinha dois dedicados e diligentes: eram Diogo de Barros e o conde da Ericeira; mas o amigo que ele em maior conta e préstimo tinha era Duarte Cotinel.

O conde, desde logo, anteviu o desastre, inferindo-o do sobrecenho com que o inquisidor-geral, e parente seu, D. Nuno da Cunha o desatendia em rogos pertinentes ao judeu. Diogo de Barros, pela sua parte, achava de bronze o peito dos membros do Supremo Conselho. Todos, à uma, professavam ódio entranhado ao judeu que pudera salvar-se do justo castigo, para reincidir na mesma culpa; e demais disso atentar contra os bons costumes expondo ao povo os quadros irreligiosos e desonestos das suas óperas, recheadas de gentilidades, heresias e chascos à piedade.

Diogo de Barros, confiando no olhar suplicante da menina que tinha na sua casa, ia com ela aos inquisidores, levava-a nos braços, e ensinava a criancinha a dizer “piedade” àqueles homens severos que lhe faziam medo.

Alguns, tocando na face da menina, diziam-lhe: “Deus te afaste dos pais que tinham de perder a tua alma. “

Outros, voltavam-lhe as costas, e respondiam azedamente ao solicitador da liberdade de três relapsos, que tão mal pagaram à misericórdia das entranhas do nossoSenhor Jesus Cristo.

No entanto, António José espantava-se de não ser chamado a novo interrogatório, decorridos vinte dias de prisão. O mês de Outubro tinha passado: para ele era já ponto decidido que ainda estaria preso um ano, até ao primeiro auto-de-fé, a não dar-se algum extraordinário e raríssimas vezes sucedido caso de sair livre sem o cerimonial daquele espetáculo de morte para uns e de perdão para outros — espetáculo de “justiça e misericórdia“ como dizia a tarja que circundava o painel do fundador do Santo Oficio, arvorado na procissão, aquele S. Domingos que numa das mãos empunhava um ramo de oliveira, e noutra uma espada nua.

O processo estava, porém, instaurado, e o inquérito das testemunhas continuava. Quais testemunhas?

Aqui é o ponto de colher os panos à imaginação, e encostar-se o romancista ao pouco de que pode amparar-se para não escorregar no plano inclinado das hipóteses impróprias do assunto.

O processo de António José da Silva está no Arquivo Nacional da Torre do Tombo: para ali foi nos cartórios das Inquisições em 1821. Alguns curiosos possuem cópia do processo; eu não vi-a, nem estou ao alcance de poder ainda consultar as peças principais, que mereciam a publicidade, usurpada por farragens inutilíssimas que pejam as livrarias.

Costa e Silva viu o processo, ou o principal dele; todavia, um sujeito que se prezava de ser futilmente prolixo em numerosas páginas a propósito de nada, foi mais que omisso na biografia importantíssima de tão assinalado escritor, e desassisado nalgum dos esclarecimentos que levianamente dá. Outro bibliógrafo de maior tomo, o senhor Inocêncio Francisco da Silva, não obstante a breve e sucinta notícia com que antecede a relação das óperas do judeu, pensa em corrigir de passagem os graves erros do seus antecessores, e restaura lucidamente a verdade de alguns essencialíssimos factos. Como quer que seja, pelo que respeita ao processo, é judicioso atermo-nos ao que estiver escrito por pessoa que o haja examinado. Nesta parte, irei trasladando o pouco de Costa e Silva. Diz ele:

“Sepultado o suposto réu no cárcere número seis, do chamado corredor meio novo, deu-se obra ao seu processo, e como faltavam provas, e culpas articuladas, e definidas, pois todas se reduziam às acusações vagas, tais quais as podia dar uma negra boçal de Cabo Verde, quiseram os seus juízes, ou seus algozes, sair da dificuldade criando-as na mesma prisão.

Do seu processo... consta que os guardas foram incumbidos de o espionar pelas escutas ou buracos, que existiam nos cantos dos tetos dos cárceres daquele terrível tribunal, dispostos de maneira que se pudesse ver e ouvir quanto neles se passava, como eu notei visitando grande parte daquelas masmorras, quando se patentearam ao público em 1821. Que os ditos guardas quase, todos depuseram que muitas vezes viram-no ajoelhar, persignar-se, e recitar devotamente as orações cristãs; acrescentando somente alguns que ele alguns dias não tocava na comida, naturalmente (diziam eles) por satisfazer aos jejuns da lei de Moisés...

Consta igualmente do mesmo processo que o poeta protestou sempre pela sua inocência; que produziu na sua defesa muitas testemunhas, e entre elas religiosos graves de diferentes ordens, até da dominicana, e que todos eles afiançaram o seu zelo religioso, a sua exação no cumprimento dos preceitos da Igreja... “

Quais testemunhas, pois, depuseram contra António José? Os guardas dos cárceres, os oficiais subalternos e sujeitos ao alcaide, a quem incumbia a diretoria interna das prisões. Contra o testemunho dos guardas e o depoimento da escrava assassinada baldaram-se os esforços mais ou menos conscienciosos dos frades das diferentes ordens, com quem o hebreu industriosamente mantivera sempre boas relações, pensando que assim preparava patronos para a crise que sempre se lhe antolhara. Duarte Cotinel levara aos antros da Santa Casa o valor do mínimo daqueles brilhantes, e corrompera as sete consciências necessárias para fazerem prova de que o preso, algumas vezes, não comia, nem, nos interrogatórios subsequentes, confessava a razão que o fazia abster-se de alimentos.

Lourença Coutinho e Leonor, levadas à confissão na tortura, ignoramos quais revelações fizessem, arrancadas pela mortificação. É natural que Lourença, esperançada no perdão, se acusasse de judaizante, e que Leonor, compelida por igual esperança, mentisse aos verdugos para que em nome do Deus misericordioso lhes perdoassem a culpa.

Correram dezassete meses. O processo dos presos fechou-se em II de Março de 1739. A sentença de morte de António José da Silva, a requerimento do promotor, foi lavrada naquele dia, e logo relaxada ao braço secular. O acórdão da condenação não transpirou. já aquela vida estava irremissivelmente condenada ao fogo, e tanto o réu com grande número do seus amigos esperavam a absolvição no auto-de-fé do próximo Outubro.

Decorreram ainda sete meses. Neste período, o mais concorrido espetáculo do teatro da Mouraria era a ópera do judeu, o Precipício de Faetonte, que entrara em cena, quando o autor já sofria o terceiro mês de cárcere, em Janeiro de 1738. O público vitoriava o infeliz, sem ousar maldizer a justiça que matava lentamente o seu mais festivo e popular autor.

Os frades lá estavam casquinando no seu camarote; as famílias dos inquisidores concorriam à festa do talento do hebreu, que, àquelas horas, ajoelhava pedindo à Providência um testemunho do seu poder.

Avizinhou-se o mês de Outubro. António José, como nos últimos meses o não chamassem a perguntas, duas conjeturas devia de fazer: uma a da sentença já relaxada de morte; outra a do perdão, mediante o abjurar no auto-de-fé. Não se demorou a pensar na mais pavorosa das hipóteses: fiava na sua inocência, no valimento dos amigos, na fraternal amizade do seu Duarte, e, mais que tudo, na justiça de Deus.

Desde o primeiro dia do fatal mês de Outubro, o coração do hebreu pulava-lhe no peito de cada vez que se corriam os ferrolhos do seu quarto. Fitava o rosto do alcaide, que nunca se lhe voltou de frente, nas raras ocasiões que entrava à prisão; pedia aos chaveiros que lhe dissessem alguma coisa do seu destino; pedia notícias da sua mãe e de Leonor; rogava que ao menos lhe dissessem se elas viviam. Não lhe respondiam, cumprindo rigorosamente as prescrições do Santo Ofício, concientes de que a morte era o castigo da infração.

Às três horas da tarde do dia 16 de Outubro, ouviu António José da Silva rumor de passos ao longo do corredor; colou o ouvido ao tabuado, e sentiu que se vizinhavam da sua prisão. Abriu-se a porta, e logo assomou o promotor da Inquisição, e um meirinho da justiça secular.

O promotor, sem encarar no preso, leu a sentença pausadamente: “Relaxado em carne, morto, queimado, como convicto, negativo e relapso.“

Lida a sentença, o meirinho lançou em volta das mãos do preso um baraço, como sinal de que tomava posse do réu que a justiça eclesiástica abandonara.

António José da Silva morreu naquela hora. Estava em pé, tinha os olhos iluminados, respirava, ouvia, via, e entendia; mas estava morto.

À beira dele, depois que o promotor e o meirinho saíram, ficou um homem, chorando. Era um jesuíta de S. Roque, o padre Francisco Lopes, a quem incumbiram conduzir o padecente ao oratório.

O hebreu deixou-se levar. Entrou no santuário, com os olhos postos na imagem de Cristo, que lhe antepunha o padre. Ajoelhou, caiu, quando aos seus pés se fez um vácuo, um súbito aluir-se o pavimento por abismos em que ele se despenhava com o peito congelado do frio das entranhas mortas.

Fechou-se a porta do oratório. Num caso análogo de inexprimível tormento, perguntava Feréal, historiador da Inquisição de Espanha: “Quem pode sondar os mistérios da agonia e da morte, daquela suprema luta entre a forma terrestre e o homem imaterial? “

CAPÍTULO XII

Ao aclarar a manhã do dia 18 de Outubro de 1739, abriu-se a majestosa Igreja de S. Domingos, já decorada para a celebração do auto-de-fé. Estava pomposa. Era o leão coberto de grinaldas e laçarias, enfeitado e vistoso, com as fauces abertas à espera do bodo daquele seu dia de festa, do seu almejado domingo do Advento.

O altar-mor, bem que negrejasse de crepe, resplendia com os seus doze candelabros de prata, e doze alvíssimos círios em argentinas tocheiras. Dois tronos se erguiam laterais ao altar: o da direita pertencia ao inquisidor-geral e Supremo Conselho; o da esquerda à casa real.

Abaixo do arco da capela-mor, entre as naves, estava outro altar, sobre o qual se viam dez missais abertos com as suas capas de couro, relevos dourados, e fechos de prata. Daqui até à porta do templo, construíram uma galeria abalaustrada de ambos os lados, com passagem pelo centro, e bancadas no interior: eram os lugares destinados aos presos e aos padrinhos. Panos de seda adamascada franjados de ouro e prata pendiam dos tetos e frontispícios das capelas, em que sobressaíam a meio relevo “figuras de boa marcenaria e todas cosidas em ouro sem se ver outra coisa”, como conta frei Luís de Sousa na luxuosa descrição desta igreja, a qual não é já a que o leitor conhece.

Às oito horas já o grande espaço da vasta igreja estava ocupado por parte das mais lustrosas famílias de Lisboa e fidalgos provincianos, que iam gozar-se daquele espetáculo, superior em aparato ao das outras Inquisições do reino.

Às nove horas e meia subiu ao seu magnífico camarote o cardeal inquisidor-mor D. Nuno da Cunha, e os conselheiros. O palanquim real conservou corridas as cortinas durante aquele primeiro acto do sanguinário drama ao divino.

Assim que o inquisidor-mor apareceu no adro do templo, dobraram os sinos, e logo a procissão do auto-de-fé saiu da Santa Casa, e a breves passos assomou no limiar do templo o estandarte do Santo Oficio com um longo séquito de dominicanos. O fundador da ordem, estampado num riquíssimo panal, com a lampejante espada em punho, era a insígnia do estandarte, perante o qual o povo ajoelhava e batia nos peitos. Em seguida aos frades inquisidores, caminhavam três mulheres sem hábito; uma, com os olhos no chão, e braços pendidos, andava com firmeza: era Leonor; outra, que dois esbirros amparavam desfalecida, era Lourença Coutinho. Cada presa levava na mão direita um círio amarelo. Seguiam-se os condenados a abjurarem com penitência, ou a prisão indefinida ou galés.

Entre estes e outros mais desgraçados hasteava-se um grande crucifixo, com a face voltada para os que entraram primeiro no templo. Depôs a cruz, iam três estátuas de hebreus ausentes, condenados ao fogo, dois caixotes de ossos doutros que tinham morrido por efeito da tortura, e três penitentes de carocha e samarra ou sambenito pintado de demónios e fogueiras com fogo revolto. Um destes era António José da Silva: diziam que era, dizia-o a sentença escrita na orla da samarra: mas depois de dois anos e onze dias de lágrimas e trevas difícil seria individuar-lhe as feições antigas. O povo, o povo que se rejubilava nas óperas daquele mártir, contemplou-o, e não chorou uma lágrima!... Oh!, o povo!, a canalha de todos os tempos e costumes!

António José da Silva não abrira os olhos, durante o trânsito da Inquisição à igreja. Encostado ao ombro do padre Francisco Lopes, levemente lhe acenava quando o pálido jesuíta lhe perguntava algum artigo essencial para a sua salvação.

O banco da galeria em que António José se assentou era dos últimos. Lá estava entre ele e as suas mãe e esposa a imagem do Cristo, voltando-lhe as costas, como no dia do Juízo Final, consoante rezava o evangelho do Advento.

Fez-se profundo silêncio. Um frade arrábido subiu ao púlpito, e pregou. Num dos períodos mais levantados da sua oração, exclamava ele:

“É a Santa Inquisição como a arca de Noé; porém, amados irmãos, quão grande diferença vai de uma à outra! Os animais que entraram na arca, abaixadas as águas do Dilúvio, saíram animais da natureza que tinham; ao passo que a Santa Inquisição por tal maneira muda os entes que em si encerra, que é digno de ver-se como saem cordeiros os que tinham entrado cruelíssimos lobos e ferocíssimos leões.“

Terminou o sermão. Subiram dois promotores ao púlpito para lerem as sentenças. Cada penitente ouvia ler o seu processo e condenação em pé , no meio da galeria, com a tocha em punho, e o alcaide à sua beira. Depois, levavam-no à banca dos missais, ajoelhava, punha a mão sobre o sagrado livro, e esperava nesta postura que os condenados fossem tantos como os missais. Depois, acompanhavam o promotor recitando com ele um acto de fé.

Findas as cerimónias com os presos que não tinham sentença de morte, vieram os outros, os relaxados em carne. Eram três homens e duas mulheres.

António José foi transportado em braços. Já não ouviu o processo. Tinha perdido o alento, quando viu Leonor a debater-se soluçante nos braços de dois meirinhos, que lhe abafavam os gritos.

Lidas as sentenças, a Inquisição, ao entregá-los à justiça secular, pedia encarecidamente às leis e aos juízes que se tivessem clemência e piedade daqueles miseráveis, e se lhes impusessem pena capital, fosse, ao menos, sem efusão de sangue.

A história das ferocidades religiosas não conta maior infâmia!

Acabou este acto do drama.

Leonor e Lourença foram transferidas em braços para a Santa Casa.

António José da Silva ainda esperou, depois que o levaram da Relação, sem consciência de vida, a aurora do dia seguinte.

Quando chegou ao Campo da Lã ardiam já as achas resinosas da fogueira.

O mártir não viu-as. Devia ir quase morto, porque escassamente viram-no estrebuchar.

Seio do Altíssimo!, se te não abrisses àquela alma, criada ao bafejo da tua, que serias tu, Deus?, que serias tu, palavra?

Naqueles dias publicou-se um impresso, que o senhor Inocêncio Francisco da Silva traslada na biografia do Aristófanes português.

Reza assim o extrato:

Lista das pessoas que saíram condenadas no auto público da fé, que se celebrou na igreja do Convento de S. Domingos de Lisboa no domingo 18 de Outubro de 1739, sendo inquisidor-geral o cardeal Nuno da Cunha.

Pessoas relaxadas em carne: N., 7. Idade 34 anos. António José da Silva, x. n, (cristão-novo), advogado, natural da cidade do Rio de Janeiro, e morador nesta de Lisboa ocidental, reconciliado que foi por culpas de judaísmo, no auto público da fé, que se celebrou na igreja do Convento de S. Domingos desta mesma cidade em 13 de Outubro de 1726. Convicto, negativo e relapso.

Pessoas que não abjuram nem levam hábito: N.º 5. Anos de idade 27. Leonor Maria de Carvalho, x. n., casada com António José da Silva, advogado, que vai na lista, natural da vila da Covilhã, bispado da Guarda, e moradora nesta cidade de Lisboa ocidental, reconciliada que foi por culpas de judaísmo no auto público da fé , que se celebrou na Igreja de S. Pedro da cidade de Valhadolide, reino de Castela, em 26 de Janeiro de 1727. — presa segunda vez por relapsia das mesmas culpas, Pena: cárcere a arbítrio.

N.º 6. Anos de idade 61. Lourença Coutinho, x. n., viúva de João Mendes da Silva, que foi advogado, natural da cidade do Rio de Janeiro, e moradora nesta de Lisboa ocidental; reconciliada que foi por culpas de judaísmo no auto público da fé, que se celebrou no Rossio desta mesma cidade em 9 de Julho de 1713; presa terceira vez por relapsia das mesmas culpas. Pena: cárcere a arbítrio.

CAPÍTULO XIII

No dia seguinte ao do suplício de António José da Silva, um padre vestido com a roupeta da Companhia de Jesus, bateu à porta de Duarte Cotinel Franco. Disseram-lhe que o almoxarife estava doente de cama. Instou o padre fazendo saber a Duarte que o procurava o indigno ministro do Senhor que assistira ao finado António José da Silva nos três dias do oratório.

Duarte sentou-se no leito, e pediu ao pai que o deixasse a sós com o padre. O capelão espantou-se do resguardo do filho; todavia, retirou-se, no intento de escutar a misteriosa prática.

Entrou o padre Francisco Lopes, e disse: — Senhor Duarte, compreendo a sua enfermidade. A desgraça do nosso infeliz amigo pesou-lhe dolorosamente.

— Aniquilou-me, senhor!... — disse Duarte, reconhecendo no jesuíta um dos muitos sábios e dos poucos virtuosos da Companhia.

O padre prosseguiu, enxugando as lágrimas:

— António José fez-me confidente de um segredo que apenas era sabido da sua família. Achou-me digno de confiança. Recomendou-me que lhe desse um abraço, e um adeus até ao reino do céu, onde eu piamente creio que entrou a alma purificada do nosso pobre amigo. Depois, me disse que em poder de Vossa Senhoria está um tesouro, que lhe ele entregara pouco antes de ser preso. É isto verdade? Não pode deixar de ser...

— É verdade... — balbuciou Duarte. — Se eu não tomasse conta do tesouro, sabe Vossa Reverência que a Inquisição...

— Sei, sei que ficaria a mendigar aquela pobre família, se Deus permitir que ainda se lhe abram as portas do cárcere. Se os grandes haveres de António José não puderem servir à esposa e à mãe, lá está a filhinha em poder de Diogo de Barros, varão de Deus que a Providência escolheu como amparo da inocente. A incumbência, que o desgraçado me fez, foi que viesse eu dizer a Vossa Senhoria que entregasse o cofre a Diogo de Barros, vendo ele que o encargo de guardar os objetos e dinheiro contidos nele, há de ser causa a mortificações do senhor Duarte.

— Prontamente... tartamudeou Duarte Cotinel. — Se o cofre estivesse no meu poder, passá-lo-ia já às mãos do senhor padre Francisco Lopes. Careço de sair a recebê-lo de terceira pessoa a quem o confiei, não o querendo no meu poder, porque era tido em conta de amigo do judeu, e receava das pesquisas do Santo Ofício...

— Foi prudência!... — atalhou o sincero padre. — Amanhã trato disso, e amanhã mesmo, ou muito tardar depois, irei entregar o tesouro do meu chorado amigo ao senhor Diogo de Barros, com todo o segredo para que a filha não seja ainda privada do seu grandíssimo dote.

— Cumpri a minha missão, senhor Duarte. Deus lhe fecunde os seus nobres sentimentos em alegrias puras e duradouras. Fique-se com Jesus Cristo; e receba o abraço de António José da Silva, cujas lágrimas ainda me queimam as faces.

Saiu o padre, e entrou o pai de Duarte.

— Que tesouro é esse que tinhas no teu poder? — perguntou o capelão.

— Eram os haveres do Silva, que mos confiou. — E não me confiaste o segredo a mim?

— Porque fiz juramento de o não confiar a ninguém. — E se eu delatasse ao Santo Ofício a existência desse dinheiro que virtualmente está confiscado?

— Fazia a desgraça de uma família, a troco de quatrocentos mil réis que tanto valerá o que me foi confiado.

— Quatrocentos mil réis! — replicou o delegado do Santo Oficio — , mas tu falaste aí no “grande dote“ da filha do judeu.

— Grande lhe chamei comparativamente à indigência em que ela ficou.

O capelão ficou satisfeito com a resposta explicativa. Neste mesmo dia, Duarte Cotinel, como o receio de perder o roubo, ganhado com tamanha perversidade, lhe botasse o gume dos remorsos que o anavalhavam, saiu da cama, e remexeu todo o dia no interior do seu quarto, acondicionando num vasto cinturão de couro os objetos contidos no cofre, que tirou de um falso por ele aberto debaixo do catre.

Ao anoitecer saiu da Bemposta, e recolheu-se numa estalagem contígua ao Terreiro do Paço, onde desvelou a noite esperando o repontar da manhã. Assim que os barqueiros saíram ao cais a encavilhar os remos nos seus botes, Duarte saltou no mais próximo do embarcadouro, e mandou remar para o Barreiro; aqui alugou carruagem, e seguiu o seu destino.

O capelão, afeito às longas ausências do filho, não se admirou da demora, ao fim de três dias. No entanto, o padre Francisco Lopes, preocupado com a recomendação do seu pobre padecente, procurou Diogo de Barros para saber se o tesouro estava na sua mão. O velho abriu um triste sorriso, e disse:

— Crê Vossa Reverência que tal tesouro seja restituído? — Creio, sim! Pois não ouvi eu a honrada e pronta confissão do possuidor?! Não me disse ele que antes de ontem, o mais tardar, viria restituí-lo?!

— Mas não veio, senhor padre Francisco Lopes!...

— É que se lhe agravou a enfermidade. Lá vou já daqui... Roubá-lo ele? É impossível! Um homem de quem António José me disse tão excelentes coisas e com tantos louvores do seu desprendimento!...

— Senhor padre Francisco!... — disse Diogo, e susteve-se. Depois, feita uma pausa reflexiva, continuou: — Não direi por enquanto o que sinto, o que senti e previ sempre... Vá, vá, e volte por aqui Vossa Reverência, se lhe não custar.

O jesuíta perguntou por Duarte. Saiu a falar-lhe o capelão, dizendo que o seu filho, no mesmo dia em que ele o procurara, saíra e não aparecera mais em casa.

— Então!... — exclamou o padre vencendo a sufocante surpresa — então é certo...

— O quê? — acudiu o deputado do Santo Ofício. — Que se fez um roubo...

— Um roubo?

— De valores de cento e cinquenta mil cruzados de que o seu filho era depositário.

— Quatrocentos mil réis, me dizia ele!... — redarguiu o capelão.

— Cento e cinquenta mil cruzados digo-lhe eu, senhor! — disse o jesuíta.

— Seja a quantia qual for, o ladrão fugiu. Que fuja!... os olhos de Deus hão de segui — lo... a justiça dos homens o alcançará!...

CAPÍTULO XIV

Lourença Coutinho, quando entrou no cárcere, depois de ter visto o filho ajoelhado para ouvir a sentença, ia moribunda. Os médicos da Santa Casa aconselharam os socorros espirituais. Um frade domínico foi assentar-se ao lado da enxerga de Lourença. A mãe do condenado que, àquela hora, saía do oratório para a fogueira, ouviu o gemer dos sinos, que pediam orações por alma dos supliciados. Estrebuchou, e conseguiu encostar-se à parede do seu antro. Fitou em rosto o frade que a chamava à meditação das misericórdias divinas. Estirou os braços, rangeu ferozmente os dentes, esbugalhou os olhos que espirravam sangue da congestão cerebral, fez um arremesso contra o filho de S. Domingos, e neste desesperado esforço, que o frade rebatia com exorcismos, arrancou da vida, batendo com a face no pavimento.

Frei João do Souto, que assim era chamado o confessor dos presos moribundos, contou com pavorosos gestos em reunião capitular que vira uma legião de demónios, quando a judia morrera, tomar-lhe posse da abria, e que o fedor sulfúreo era insuportável no calabouço. Os bons e judiciosos cronistas da Ordem Dominicana já tinham passado. Se o facto acontecesse cem anos antes, o leitor havia de lê-lo com as galas de linguagem do padre Cácegas ou daquele ilustre e degenerado visionário, chamado Manuel de Sousa Coutinho, que os frades tolheram.

O padre Francisco Lopes e Diogo de Barros divulgaram o roubo praticado por Duarte Cotinel. O Conselho Supremo do Santo Ofício gemeu, como se a Inquisição fosse a roubada. Os amigos de António José levaram à compreensão do inquisidor-geral a intriga tramada por Duarte no intento de roubar o homem que lhe confiara os seus haveres. Nuno da Cunha avocou a si o processo, examinou-o, e viu a crueza da sentença, e a probabilidade da urdídura. O alcaide, principal testemunha contra o hebreu, confessou na tortura que Duarte Cotinel se empenhava na perdição de António José. O alcaide foi açoutado pelos algozes do Santo Ofício, e expulso por grande misericórdia e bons serviços que tinha prestado à Santa Casa.

Este providencial sucesso abriu as portas da Inquisição a Leonor, dois meses depois do assassínio do seu marido. Diogo de Barros e Lourencinha foram esperá-la no pátio da Santa Casa. A menina já não tinha vaga lembrança da sua mãe. Chorou de medo daquela cadavérica mulher que lhe chamava filha. Leonor aqueceu as faces mortas nas da sua formosa criança, que tinha então quatro anos e dois meses incompletos.

Cobradas forças em companhia dos Barros, a viúva de António José, já sabedora do roubo daquela amaldiçoada riqueza, pediu ao tio do seu pai que lhe desse uma esmola para se passar com a sua filha para Amesterdão. Diogo prontificou-lhe sobejos recursos para a viagem, e uma regular mesada para sua sustentação. Quis ele ainda, para lhe aumentar o pecúlio, haver da Inquisição o valor da rica mobília confiscada e vendida em almoeda. O Supremo Conselho indeferiu o requerimento, sem, embargo da injusta condenação do possuidor dos haveres confiscados.

Embarcaram Leonor e Lourença. Em Amesterdão era já notória a morte de António José. Da família Sã ninguém esperava que a filha de Jorge de Barros volvesse à luz do Sol. O aparecimento de uma senhora com uma menina ao colo em casa dos filhos de Simão de Sã fez estranheza. Quando ela disse quem era, ergueu-se um grande choro em volta das duas infelizes, choro de compaixão de verem tão avelhada a peregrina Leonor, e de alegria por lhe poderem outra vez abrir o seio carinhoso. Leonor perguntou por Simão. Disseram — lhe que tinha morrido; mas que todos os seus lhe tinham herdado o coração.

Refloriram ainda algumas graças do belo rosto da filha de Sara, Tinha vinte e sete anos. As tristezas, por mais devoradoras que fossem, não podiam combater a força reanimadora dos afagos de Lourença. Onde ela assentava os seus lábios reviçavam as fibras amortecidas e requeimadas de lágrimas.

Leonor aos trinta anos dava ideias da beleza dos dezoito. Poderia ser amada e esposa, se o quisesse ser, de um rico hebreu também viúvo. Respondeu ela à proposta que não podia senão ser mãe e educadora da sua filha. Pediu que a deixassem enriquecê-la de virtudes e conhecimento antecipado das desgraças desta vida, para ter que lhe deixar, quando Deus a levasse.

Correram-lhe, senão felizes, tranquilos os anos.

A maior pena, que ainda lá a salteou, causou-lha um homem que passava, um dia debaixo das suas janelas, mal entrajado, com amargurado rosto.

Perguntou Leonor:

— Quem será este homem?! Não sei quem me parece!...

— É um português — disse uma senhora — ; já lhe ouvi o nome; mas esqueceu-me. Um dos manos conhece-o de vista, e foi quem me disse o nome dele.

Leonor foi ter com Levi de Sã, e perguntou-lhe quem era um português muito encorpado com barbas grandes, e vestido ordinariamente.

— É um homem que abjurou a religião cristã, e perdeu tudo o que tinha em Portugal.

— Como se chama?

— Francisco Xavier.

— De Oliveira! — acudiu Leonor.

— Justamente, de Oliveira. Há três anos que anda por Holanda, e vive com alguns israelitas que o favorecem.

— Pois ele está assim necessitado?... Oh, meu Deus!, não poder eu socorrer o primeiro amigo do meu infeliz António!...

E Leonor recordou-se daquele jovial e gentil mancebo que vira no adro da igreja de Valhadolide; recordou a paixão da sua juventude, que lhe crestara flores de coração que nunca mais enverdeceram. Chorava, como nos dias em que o amara, como naquela noite em que ele anunciara no salão de Diogo de Barros o seu casamento com D. Ana de Almeida. Este chorar tinha em si o travor doce das saudades. Era triste aquele encontro! Ver assim quebrantado e pobre o homem em volta de quem radiavam todos os prazeres deste mundo, desde a riqueza até ao culto das mulheres formosas e dos homens respeitáveis!...

Leonor pediu instantemente a Levi de Sã que fizesse saber a Francisco Xavier de Oliveira o muito desejo que tinha de o ver a viúva de António José da Silva.

Saiu Sã em demanda do português, e só no outro dia pôde saber que ele tinha saído para Londres.

Aqui vem de molde historiar-se o restante da vida, muito longa ainda, do Cavalheiro de Oliveira.

Em Novembro de 1739, chegou a Viena de Áustria a nova do suplício de António José.

Francisco Xavier, ferido no coração de sincero amigo, rompeu em brados contra a infame barbaridade dos inquisidores, sem poupar a religião divina do Cristo, que não tinha que ver com a protérvia dos seus sacrílegos sacerdotes. Raivou contra o pontífice, e não foi mais comedido nos insultos que vociferou contra o hipócrita e boçal rei D. João V. O ministro conde de Tarouca mandou-o calar-se, e respeitar o sucessor de S. Pedro, e o ungido do Senhor. Xavier retorquiu asperamente, aceitando satisfatoriamente a ameaça da demissão da secretária.

Dias depois, sobreveio um caso que determinou o completo rompimento das ligações do secretário com o ministro.

Andava em Viena um arquiteto milanês, chamado Inácio Maure Valmagíní, muito da privança do embaixador português. Dizia Valmagini que o rei de Portugal recompensava os biltres e vadios dos seus estados com o hábito de Cristo. O conde de Tarouca sabia-o, e dissimulava, não obstante ser um estrénuo propugnador das honras daquela ordem. Francisco Xavier, como ouvisse as costumadas insolências do arquiteto na presença do ministro propriamente, ameaçou-o de o atirar pela janela à rua.

O conde saiu em defesa do seu valido e Francisco Xavier separou-se do indigno embaixador e do serviço de Portugal?

Em Holanda, escasso de recursos, deu-se à vida de escritor.

O seu primeiro livro, impresso em 1741, eram as Memórias das suas Altezas, No mesmo ano, publicou um volume de Cartas Familiares, em Amesterdão, e o segundo das cartas em Haia. Sobre este livro, em que ele atacava o celibato dos padres, caiu a fulminante censura do inquisidor frei Manuel do Rosário, que taxou de herético o livro. Logo em Portugal foram queimados os livros do Cavalheiro de Oliveira, e defesa a entrada dos que ele de futuro publicasse. “O roubo que eles me fizeram, in nomine Domini, e sem mínimo escrúpulo, causou-me grande perda”, diz Francisco Xavier.

Fechadas as carairas de Portugal aos livros do herege, as condições vitais do escritor pioraram grandemente. Do seu país e até do seus parentes já nada tinha que haver nem esperar. O Santo Oficio espiava as migalhas que algum temerário amigo tentasse enviar-lhe.

Por 1744, ano em que Leonor o vira pobremente vestido, apesar da publicação doutros livros, saiu com a sua mulher para Londres no intento de revalidar com público instrumento a sua já feita apostasia da religião católica. De feito, abraçou o protestantismo; e para logo escreveu rijamente contra os papas, com o fervor congenial de todos os prosélitos assim das boas que das más causas.

O afeto de infância e de saudade que o prendera à vida e à memória de António José sugeria-lhe ainda enérgicos escritos em favor da raça hebreia. Em 1740, imprimira ele na Haia uma carta ao israelita Isaac de Sousa Brito, com a relação dos Privilégios Concedidos em Nápoles e Sicília à Nação hebreia, Traduzidos do Original Ralizão.

Em Londres, estreou-se o Cavalheiro com um livrinho recreativo intitulado Viagem à Ilha do Amor, Escrita a Filandro.

Escrevia sempre; mas publicava pouquíssimos dos seus escritos, à míngua de subscritores. Amparavam-no as esmolas dos seus correligionários, entre os quais o fidalgo português curava de esconder a sua origem e as insígnias nobilitantes. Acerca do hábito de Cristo, dizia ele: “Me trouvant aujourd'hui à Londres je n'y fais guère voir mon ordre. Cette marque rendrait ma pauvreté plus honteuse. Le peuple anglais aime l'argent, et préfère une riche roture à une noblesse indigente.”

A mesma página, vertida para português, faz ver quão grande era a tristeza da sua resignação: “Dizem que os grandes deste país consideram em muito as pessoas nobres e beneméritas em pobreza. Gozam tanto renome de ricos que de benfeitores. A minha natural timidez me não deixa avizinhá-los: não tenho a honra de os conhecer bastantemente. Vivo restringido ao meu quarto: apenas vou fora a visitar um diminutíssimo número de pessoas honradas que usam a generosidade de me estimarem e amarem. Dizem-no, e provam-no com os favores que me fazem. Assaz sabem eles que a mim nada me faz nem lisonjeia ser fidalgo... “

Que vida tão arrastada!, que paciência tão vencedora de aviltamentos devia de ser a do soberbo, e todavia generoso coração de Francisco Xavier de Oliveira! Que demorados e sempre iguais e amargurados anos até que os cabelos lhe branquearam!

Em 1751, já chegado aos cinquenta, criou o seu periódico mensal, tantas vezes citado nestes livros. Durou apenas oito meses. Não há número em que ele não advogue a causa, a liberdade dos hebreus. E, todavia, os perseguidos, que Francisco Xavier queria resgatar das presas do fanatismo estúpido, não lhe liam o periódico. Faz lástima ouvi-lo assim queixar — se: “Prova de que a ignorância dos judeus reina em Inglaterra como em toda a parte, é que eu apenas tenho quatro subscritores desta nação: o doutor Castro Sarmento, o Sr. Rebelo de Mendonça, o Sr. Abraão Viana, e Mr. Ratton. Atendendo aos esforços que eu nestes escritos tenho feito para acabar a injusta e cruel perseguição que se exercita em Portugal contra os judeus, não é bastante claro que eles não conhecem seus interesses, nem a candura e boa-fé com que eu lhes advogo a causa? ó tempos!, ó usanças! Há cinquenta anos que a minha obra não precisaria de mais alentos que o favor desta nação em que então abundavam homens assim ilustrados que generosos!

Mais deplorável ainda é este amargurado queixar-se, quando a vida já lhe pesa, e ainda os anos não chegam aos cinquenta: “Minha vida pode e deve comparar-se a um rosário, cada conta do qual é uma desgraça... Idade avançada, saúde achacosa, indigência indigna do meu nascimento; mil dissabores urdidos pela calúnia e indiferença de uns que eu noutro tempo considerei amigos: tudo isto reunido ao perdimento de pátria e bens de fortuna, por isso que abracei a religião protestante?, me desvaneceu toda a esperança de ainda ver entreluzir-me alguma alternativa neste mundo... “

Noutro lanço, diz o escritor com profundo desalento: “Naturalmente amo a vida, confesso. Deveria desejá-la muito duradoura; mas não, que o mesmo seria querer premeditadamente prolongar as mágoas do meu espírito e mortificações do corpo. Ainda assim, desejos de morte e fraqueza de suicida, tenham-nos os loucos e os covardes desesperados: assaz me contenta saber que sem desejar a morte, me não temo dela que queria eu hoje possuir? Uma saúde robusta? Ah!, a minha vigorosa saúde foi uma das principais causas dos desvarios da minha vida, e de certo modo a motora das desgraças presentes...“

O desventurado conta com a benquerença de cinco amigos; porém tão pouco dadivosos deviam eles ser, que Francisco Xavier inveja o carvão que inutilmente arde na deserta sala de um lorde, carvão que lhe chegaria a ele para se aquecer um mês. “E está sempre a fumegar aquela chaminé”, diz ele, “para aquentar um cão, por louca vaidade do dono!“

Pobre Cavalheiro de Oliveira, já o destino dos cães ingleses te arranca invejas daquele tão opulento e magnânimo peito!

Já, neste tempo, a sua segunda esposa teria voado a melhor inundo, ou voltaria a pedir um quinhão de alimento na mesa da sua ilustre família em Viena de Áustria? Não o diz ele nem os seus biógrafos.

Em 1755, escreveu Xavier de Oliveira alguns folhetos incitando os portugueses a conjurarem contra as doutrinas dos bonzos, contra os papas, contra as superstições cediças do catolicismo. A Inquisição lançou a garra aos escritos. Processou o autor, condenou-o como herege, revel convicto e relaxado à justiça secular. Queimaram-no em estátua, ao mesmo tempo que as carnes do padre Gabriel Malagrida se torravam na fogueira vizinha, no auto-de-fé de 20 de Setembro de 1761.

O original da estátua devia de rir-se, lamentando que ao clima glacial de Londres, naquele mês, lhe não chegasse um pouquinho do calor da estátua assamarrada e encarochada com fogo revolto e danças macabras de demónios comígeros e caudatos!

Então, muito de assento e com o riso nos lábios, escreveu ele: O Cavalheiro de Oliveira Queimado em Estátua por Herege; como e Porquê? Anedotas e Reflexões sobre Este Assunto, Dadas ao Público por Ele Próprio.

Desde que o queimaram até ao dia em que morreu interpuseram-se ainda vinte e dois anos.

Escreveu nesse largo espaço muitos livros, uns que ficaram impressos, outros manuscritos, e muitos perdidos.

Quando aquele homem chegou aos oitenta e um anos como olharia ele para as primaveras sobre as quais gearam trinta invernos aspérrimos de infortúnios?

Que reminiscências lhe iriam ao coração congestionado de lágrimas da mulher que a Inquisição lhe estrangulou; da Antónia Clara que o pároco dos Anjos lhe queria negociar; e da Joana Vitorina, aquela fatal cigana, de quem ele escrevia como da mulher que ele mais amara, sem exceção das duas virtuosas esposas?

Deus lhe perdoaria tantas levezas da alma em desconto das muitíssimas dores de corpo com que o purificou na decrepidez mais desamparada e cortada de penúrias!

CAPÍTULO XV
Conclusão

Em meado do ano de 1753 desembarcou em Lisboa de um navio das Antilhas espanholas um sujeito que dizia chamar-se D. Pablo de Burgos, comerciante que tinha sido em Porto Rico.

Figurava cinquenta anos com o vigor dos trinta. As longas barbas, raiadas de branco, desciam-lhe a meio peito. O olhar ensombrado por densas e longas pestanas afuzilava de sob a convexidade das pálpebras, como o fitar oblíquo e espavorido do celerado que receia ser conhecido apesar dos anos corridos e da boa compostura do disfarce.

O cônsul espanhol em Lisboa recebeu da mão deste forasteiro carta do governador das Antilhas, apresentando-lhe D. Pablo de Burgos, que ele encontrara ricamente estabelecido em Porto Rico, desde 1741, e agora, volvidos doze anos, se resolvera a voltar à Europa, e residir em Portugal, com preferência às províncias vascongadas donde era filho.

O cônsul francês acolheu-o atenciosamente, hospedou-o na sua casa, e fê-lo conhecido dos ricos negociantes franceses que demoravam na capital, os quais lhe andaram mostrando as coisas notáveis de Lisboa, incluindo nestas o palácio da Bemposta, onde o espanhol empregou mais reparos que na Capela de S. Roque e no Aqueduto das Águas Livres.

D. Pablo mostrou-se muito agradado da situação e clima de Lisboa. Achou admirável a Rua do Alecrim para ali edificar uma casa torreada com vistas sobre o Tejo. Animaram — no à empresa os amigos, e o mesmo foi negociar-se a compra do terreno, e apenar os melhores alvenéis, sob a direção do arquiteto João Pedro Ludovici, para, no mais breve tempo, levantarem edifício tão majestoso e aformoseado, quanto setenta a oitenta mil cruzados permitissem.

Divulgou-se a nova em Lisboa, e já D. Pablo de Burgos não passava despercebido pelos coches dos magnatas, que fitavam com certa veneração as barbas do espanhol e aquela gentil compostura de velho que indiciava origem ilustre, por qualquer misterioso motivo ocultada.

D. Pablo saiu um dia de passeio na sua liteira, e mandou guiar para os sítios da Bemposta. Ali apeou e pediu licença para dar umas voltas no magnífico árvoredo da quinta.

Saiu a recebê-lo o almoxarife, com extremada cortesia; e, posto que o visitante o dispensasse, quis o serviçal indivíduo acompanhá-lo.

Residia então na Bemposta o infante D. Pedro que depois foi rei. Os filhos de Pedro II tinham morrido alguns anos antes. Disse o almoxarife que tinha entrado na mordomia daquela casa em 1740; e então lhe saiu de feição contar que o seu antecessor, chamado Duarte Cotinel Franco, fugira com um enorme roubo feito à família do célebre autor de comédias António José da Silva que a Santa Inquisição condenara ao fogo em 1739.

— Vossa Senhoria há de conhecer de nome este grande autor português.

— Não me lembro — respondeu serenamente D. Pablo.

O almoxarife continuou: — Fugiu o tal ladrão assim que o padre confessor do condenado se lhe apresentou a pedir-lhe que passasse o grande caixote de riquezas ao poder de um fidalgo, que morreu, há anos, em companhia do qual estava uma filhinha do judeu...

— Agora me recordo — atalhou o ricaço espanhol — de ter ouvido falar nisso... Esse tal judeu não tinha mulher, ou mãe, ou não sei quem também presas na Inquisição?...

— Sim, senhor: tinha mulher e mãe. A mãe morreu na prisão pouco depois que ele foi queimado, e a mulher conseguiu livrar-se, porque a justiça soube que a cobiça do tal ladrão fora a causa da morte injustíssima do grande poeta. Depois de livre, foi-se embora, e não sei que feito é dela.

— E que fim teve esse Duarte? — perguntou a indignada curiosidade do visitante.

— Sabe-o Deus! Nunca mais se tiveram notícias dele. Eu ainda vi morrer aqui nesta casa o pai dele, que não era boa rês, e chegara a ser capelão-mor dos senhores infantes, e deputado do Santo Oficio. Pois, apesar de ele ser de má casta, a ladroeira do filho buliu tanto com ele que o homem nunca mais saiu de casa com vergonha de aparecer ao público. Ainda ele era vivo quando eu entrei; mas pouco viveu. Há bons doze anos que o come a terra. coisa singular, meu senhor! Aqui, há seis anos, andando eu a fazer obras num quarto, que tinha sido do tal ladrão, fui topar com um falso, onde achei um caixote de pau — santo com laçadeiras de bronze, e duas fechaduras de prata, coisa riquíssima! ao meu ver aquele caixote foi o cofre donde o Cotinel levou o roubo se Vossa Senhoria o quiser ver, tenho muito gosto nisso...

— Não, se me dispensa, que tenho algumas voltas que dar — respondeu D. Pablo no mais correto castelhano. E despediu-se muito agradecido.

A fábrica do edifício da Rua do Alecrim progredia espantosamente. A generosa paga duplicava os braços dos obreiros.

Ludovici aprimorava-se voluptuosamente nas graças da sua obra. Afestoava as colunas e pilares e grinaldas; florões e laçarias caíam das cornijas formando em descendentes ramagens os adornos laterais das janelas. A menor peça fazia consonância à majestade do portal e espaçoso pátio, circundado de arcarias assentes em colunelos de primoroso lavor. As janelas eram frestas ogivais que a tempo deviam ser vestidas de vidros variegados. O telhado queria-o D. Pablo lajeado à volta, com cercadura de vasos e estátuas do melhor mármore e alabastro. O arquiteto incansavelmente expedia ordens a mandar vir da Itália peças que os seus alvanéis e escultores não sabiam dignamente emoldurar e arrancar das pedreiras de Mafra. Era ali naquele local um continuado pasmar das turbas, posto que D. João V as habituasse às obras magníficas. A cada palmo que o edifício se alevantava, Ludovici, o arquiteto ou continuador dos Arcos das Águas Livres, esmerava-se em exceder as maravilhas com que enfeitara a fachada do seu palacete em frente da Torre de S. Roque?

E enquanto a prodigiosa casa se andava construindo, D. Pablo de Burgos ora viajava por França e Itália, ora se ia a Sintra e às quintas suburbanas de Lisboa, onde seus donos o recebiam como a sujeito que o conde de Oeiras se não dedignava de convidar para grandes empresas industriais, visto que ele adotava Portugal como pátria e nela mandava fabricar tão grandiosa vivenda.

Em Agosto de 1755 estava concluído o palácio. As alfaias tinham já vindo do estrangeiro. Vestiu-se o interno do palacete com magnificência condigna da riqueza exterior. Franquearam-se as portas à admiração pública. As primeiras damas honraram as alcatifas chinesas de D. Pablo, e miraram-se nos alterosos espelhos de Veneza, cosidos a ouro, que pendiam dos tetos sobre tremós cujo feitio deslumbrava o áureo esplendor, que vestia os torneados. Vasos etruscos, imitados nos alabastros napolitanos, dos ângulos das salas cativavam a atenção logo cativa de mais ricos adornos. Para que mais encómios se todo o encarecimento vem curto? Aquilo era um encanto de olhos, e um quebrar corações de invejas.

D. Pablo aceitava os agradecimentos do seus hóspedes com uns ares de modéstia, última demão que faltava ao esplendor de tantas maravilhas. W, as damas até as apostólicas barbas lhe achavam encantadoras. Concertavam-se todas as probabilidades em favor dos que pressagiavam o breve matrimoniamento do espanhol com alguma das muito fidalgas e esbeltas meninas, cujos pais se honravam de hospedar o maduro ricaço.

Deliberou D. Pablo oferecer um banquete de príncipe aos seus amigos, que já eram numerosíssimos, em todas as jerarquias, e mareou o dia primeiro de Novembro nos convites antecipados quinze dias. Contratou os mais famigerados cozinheiros, vestiu de limiste os criados que deviam servir à mesa, tirou das prateleiras riquíssima baixela de prata em competência de valor com as mais preciosas louças do Japão, compradas aos netos empobrecidos dos antigos vizo-reis da Itália.

Desde o romper de alva do dia primeiro de Novembro, uma chusma de criados, uns encarregados do adorno da longa mesa, outros auxiliares dos inventivos cozinheiros, não tinha mãos a medir. Era um redemoinhar de gente afanosa como em casa dos imortais glutões da Roma imperatória, predecessores beneméritos da Roma cardinalícia.

Às nove horas e meia da manhã, D. Pablo de Burgos acabava de sair do leito e apresilhar um farto gibão de seda, no intento de deitar uma vista de olhos aos preparativos confiados aos servos e escravos. No momento em que transpunha o limiar da antecâmara, sentiu vibrar-lhe a casa debaixo dos pés, e logo um soturno estrondo, o tremer convulso dos móveis, o baquear das estátuas e jarrões depostos sobre os bufetes, o alto clamor dos criados, o estridor de louças partidas, o tropel dos servos que fugiam, e o estampido longo de um como ruir de paredes. Era o primeiro empuxão do assolador terramoto daquele dia.

D. Pablo correu desnorteado primeiro contra a escada para ganhar a rua; depois, voltou sobre si, impelido por um demónio que lhe disse: “Olha que deixas na tua recâmara riquezas que vão ser soterradas ou roubadas.” Entrou na recâmara, e não pôde ter-se em pé, resistindo ao impulso de um alteroso guarda-roupa de pau preto que ao voltar-se lhe roçou num ombro. Levantou-se. Abriu muitas gavetas de um contador, e amontoou numa toalha promiscuamente sacos de ouro e mãos-cheias de brilhantes.

Ao sair do quarto, ouviu o gritar aflito da vizinhança. Chegou a uma janela, e viu, através de cerrada nuvem de poeira, o interior das casas vizinhas, aluídas as carairas, e os moradores em desesperadas evoluções, com os braços estendidos ao céu sereno e límpido, como em manhã de Agosto. Fez pé a trás espavorido, e foi à escada no intento de a descer. Olha ao fundo do primeiro mainel e vê um lanço de parede fendida, e os tijolos a despegarem-se, A um terceiro tremor mais rijo, foge subindo para o terraço construído à roda do zimbório. Apenas relanceia os olhos em volta por sobre o centro da sumptuosa Lisboa, a custo e escassamente lhe deixa a densa poeira dos edifícios aluídos, descobrir um acervo de ruínas, e aqui e além multidões de fugitivos, uns que serpenteiam por entre o entulho buscando a margem do Tejo, outros que retrocedem espavoridos, porque o mar subia levantado em furioso vagalhão alagando a cidade baixa.

D. Pablo, naquele conflito, raciocinou. Era homem para discutir com a morte até ao fim, se necessário fosse. De si consigo disse ele que a sua casa, construída sobre rijos e fundos alicerces, devia resistir aos solavancos do terramoto mais que as outras meio derrubadas e enfraquecidas pela velhice. Alentado pela hipótese judiciosa, desceu do terraço, e com prudente vagar espreitou o estado das paredes. As fendas não eram assustadoras. Foi descendo e chamando os criados: ninguém lhe respondeu. Abriu uma janela do primeiro andar, olhou, e viu alguns acervos de cadáveres meios enterrados nas ruínas, e algumas aflitas mães, que procuravam os filhos, enquanto os maridos as empuxavam pelos cabelos, no propósito de salvá-las.

Os abalos, posto que menores, continuavam com breves intervalos. D. Pablo atentava a orelha: já não ouvia o estrupido do desmoronamento. A grande destruição fez-se em sete minutos.

O que ressoava formidavelmente era o estridente alarido de milhares de pessoas às portas dos templos, cujas abóbadas abateram sobre milhares de devotos, que os enchiam, ouvindo missas, naquele solene dia funeral de Todos os Santos.

D. Pablo raciocinava ainda. Bem que o sólido edifício estivesse de pé sobre os profundos cimentos, podia acontecer que ulteriores abalos o derribassem. Determinou sair com algumas preciosidades, e seguir as turbas, que fugiam na direção de S. Roque para o alto chamado então as obras do conde de Tarouca, e depois da Cotovia, e mais tarde a Patriarcal. Quis guardar em si a pedraria e ouro amoedado que ensacava; mas o peso privava-o do movimento. Não tinha criado ou escravo que o ajudasse. Repôs os sacos do ouro nas gavetas do toucador, e meteu às algibeiras as bocetas aveludadas das pedras preciosas como prevenção para o caso de algum desastre no edifício, enquanto ele ia providenciar a mudança da baixela.

Fechou o portão e saiu, caminho de Santo Amaro, onde morava o seu particular amigo o embaixador francês, Encontrou-o passado do terror, e tratando em fugir com as suas bagagens para o Lumiar.

O espanhol dispunha-se a acompanhá-lo, quando correu brado de estar em chamas a cidade baixa. Outra nova igualmente aterradora sobreveio àquela. Dizia-se que ferozes joldas de ladrões assaltavam e roubavam as casas desertas, e matavam os inquilinos que, no apuro das suas angústias, ainda tinham de defender as relíquias dos seus haveres. O espanhol, sem consultar o amigo, correu à Rua do Alecrim, e presenciou logo à entrada a luta a punhal dos ladrões entre si ou contra os mais aferrados defensores das suas ruínas. Este quadro horrífico era um escabujar de demónios entre labaredas e fumarada negra: o Inferno devia de ser, na fantasia do seus imaginadores, uma pálida imitação daquela atroz realidade. Às poucas janelas dos primeiros andares que, para assim dizer, tinham engolido os sobrados superiores, dardejavam línguas de fogo, que se cruzavam com as das janelas carairas. A estreita rua, atravancada de entulho, de madeiras incendidas e cadáveres, dificultava o trânsito. O espanhol saltou por sobre brasas e entre chamas. Ao avizinhar-se do seu palacete, viu rolos de fumo negro a romperem das janelas cujos vidros tinham estalado. Atirou-se aflito contra o portão, e viu-o aberto a machado.

— Estou roubado! — exclamou ele. Galgou ao terceiro andar. Quando subiu ao primeiro mainel, viu de relance alguns marinheiros que se disputavam o espólio das opulentas salas. No segundo andar, outra horda de marujos e homens andrajosos sobraçavam as taças, bandejas, castiçais, faqueiros e mais baixela que os criados, três horas antes, começavam a dispor na mesa do banquete. Subiu ao terceiro andaime, por onde lavrava intenso o incêndio, e foi, cegado pelo fumo, até à recâmara onde tinha os contadores. Arrancou dos sacos aceleradamente, e correu para uma sala, onde as labaredas não tinham ainda chegado. Aqui foram cruelíssimas as ânsias do homem, cruelíssimo o dilema: se saía às escadas, os ladrões lançariam mão dele, e nem vida nem ouro lhe deixariam: se ficava na sala, esperando que os salteadores desalojassem, o incêndio já se fazia ouvir com o seu horrífico estalejar de madeiras e desabar de vigamentos. Esta segunda ponta do dilema traspassava-lhe mais o peito que a outra.

Abriu uma janela e gritou por socorro.

Quem havia de ouvi-lo, se todos gritavam, e os mais dignos de compaixão, se houvesse ali compadecidos, seriam os que gritavam entalados nas soleiras das portas, e esmagados pelas traves fumegantes?

A resolução era urgentíssima, que já a sala estava escura de fumo. Lançou-se às escadas, desceu até ao segundo mainel, por entre os ladrões que se esfaqueavam na disputada posse de um jarro de ouro. A meio da escada do primeiro andar, sentiu-se agarrado por três homens que o seguiam a saltos de tigre.

— Deixa ver o que levas! — disse um, apontando-lhe a navalha à garganta. — Larga, ou reparte connosco, patife!

— Este é o ricaço! — bradou outro. — Cá leva o fardel! Larga, se não morres, castelhano!, cão danado!

D. Pablo reconheceu um dos três sicários, pelo rosto e pela voz; lançou-lhe o braço livre à volta do pescoço com brando jeito, e disse-lhe ao ouvido o quer que fosse.

— Tu! — exclamou o ladrão, com os olhos esbugalhados pois és tu!... és tu aquele...

O espanhol sentiu cair-lhe o coração, quando viu tão contrário o efeito que ele esperava do segredo posto no ouvido daquele homem.

E o salteador prosseguiu:

— Ó diabo!, tu não sabes que eu pela tua causa fui vergalhado na Santa Casa, que ainda tenho as costuras nos lombos! Não sabes que me prometeste mundos e fundos se eu jurasse contra o António José da Silva, que tu roubaste, alma de Satanás, e não repartiste nada comigo! Não sabes, cão, que eu ando há dezasseis anos sem ter quem me dê uma sede de água, porque ninguém me quer dar que fazer, e todos sabem que eu jurei falso contra o António José, e fiz jurar os guardas que todos andam a pedir ou a roubar?

— Pois eu reparto convosco, e deixai-me fugir... Aí tendes tudo... ficai com tudo... e não me mateis!

Duarte Cotinel Franco arremessou aos pés dos salteadores a toalha em que levava os sacos do ouro, por saber que os brilhantes escondidos nas algibeiras excediam o valor dos sacos, Feito o arremesso, ia fugir; mas o antigo alcaide da Inquisição da altura de três degraus caiu-lhe sobre as costas com uma faca apontada e com tanta força e ímpeto que mais não pôde arrancar-lha dentre as costelas retorcidas.

Duarte Cotinel gargarejou um arranco debaixo dos punhais que lhe cortaram o segundo na garganta.

À volta daquele cadáver travou-se uma briga de peito a peito, um cortar de ferros e ressaltar de sangue que espirrava à face do morto: eram os três assassinos a defenderem o espólio das presas de uns que subiam, e doutros que desciam acossados pelas chamas. Depois, seguiu-se o estampido do travejamento dos tetos e abóbadas que se despenhava por entre os sólidos e alterosos muros. Uns ladrões premiram-se contra o portão, escoando-se pela brecha que os machados abriram; outros, como descobrissem o cinturão cingindo o cadáver, curavam de arrancar-lho e espedaçá-lo a golpes de navalha, quando as lajes do firmamento do pátio lhes esmagaram os crânios contra os degraus marmóreos da escada. Um destes crânios era o do antigo alcaide do Santo Ofício.

Nas escavações feitas nas ruínas do palacete de D. Pablo de Burgos, quatro cadáveres se encontraram tão próximos que pareciam família muito entreamada que num abraçado grupo arrancara da vida. Esta hipótese desvaneceu-a a boa crítica; porque os mortos, debruçados sobre o cadáver vestido de lemiste, tresandavam o bafio dos seus andrajos. A putrefação permitia ainda examinar as chagas do pescoço de D. Pablo, que debaixo deste nome o lastimavam amigos e a boa sociedade de Lisboa. O conde de Oeiras sentia dolorosamente não ter mandado arvorar forcas nas ruas, como duas horas depois mandou para pendurar ladrões onde quer que a justiça os encontrasse. já se não podia valer à perda de um homem que tanto prometia às empresas industriosas de Portugal! Em compensação, responsar-lhe-iam a alma com magníficos funerais, pagos com pouquíssimo do muito e rico espólio que os cavadores desentranharam do entulho. Para a entrega da valiosa herança, pediram-se informações para Espanha e Antilhas. Ninguém saiu aos reclamos como herdeiro de D. Pablo de Burgos. Todavia, se, por um eventual acaso, se descobrisse que o assassinado era um Duarte Cotinel Franco, celerado ladrão, cujo nome era em Lisboa ainda o provérbio da suprema perversidade humana, a mim me quer parecer que os herdeiros se tinham de acotovelar em volta daquele cadáver, provando a primazia no grau do parentesco.

CAPÍTULO XVI
Epílogo

Volvidos vinte anos, o leão de S. Domingos já recebia resignadamente as ferroadas dos insetos. As fogueiras do Santo Ofício, como se disse, tinham sido apagadas, desde 1761, com o sangue do padre Malagrida. A estátua de Francisco Xavier de Oliveira foi o último personagem de gesso e papelão que figurou irrisoriamente de par com as agonias de um homem queimado em vida.

Alguns hebreus voltaram à pátria do seus país, não a pedirem os bens confiscados, mas a beijarem a terra que era cinza do seus avós.

Em 1775, algumas famílias, refugiadas em Holanda, aportavam a Portugal. Entre estas, a mais numerosa era a dos Sãs, repartida noutras, que se restabeleceram em diversos pontos do país.

Um neto de Simão de Sã, com uma senhora sexagenária, que era sua sogra, e outra senhora de quarenta anos, que era sua esposa, e uma roda de mancebos e meninas que eram seus filhos, foram procurar os descendentes de Diogo de Barros à Rua da Madalena. Encontraram uma casa de cinco andares no local onde a mais velha daquelas senhoras, D. Leonor Maria de Carva — lho, asseverava que tinha existido um palacete de quinze janelas num andar único. Pediram informações explicativas às pessoas antigas do local. Breves e tristes lhes foram dadas. A maior parte da família Barros tinha morrido nas ruínas da sua casa por ocasião do terramoto de 1755. Dois netos de Diogo de Barros que, no dia da grande desgraça, andavam caçando no Alentejo com o duque de Aveiro, tinham desaparecido em 1757, e era pública voz que o marquês de Pombal os fizera morrer nas masmorras da Junqueira.

D. Leonor, lavada em lágrimas, disse à filha:

— Vês, Lourença?... morreu tudo... tudo, meu Deus!... Porque me conserva neste mundo a divina vontade?

— Para fazer a felicidade da sua filha... — E dos seus netos... — juntaram duas meninas, que se abraçaram na viúva de António José da Silva.

A divina vontade não a quis muitos mais anos conceder ao amor de filha e netos.

Leonor morreu aos sessenta e seis anos, na terra onde nascera, na Covilhã, local único em que o terramoto lhe deixou algumas vivas memórias da sua infância. 

Lourença ainda vivia no princípio deste século. Os netos de António José da Silva abrem hoje, porventura, os livros denominados ÓPERAS DO JUDEU, e não sabem que são do seu avô, o mais desventurado e talentoso homem que a religião de S. Domingos matou em Portugal.

FIM
CC BY-SA 4.0