INTRODUÇÃO

A Alma portuguesa carateriza-se pelas manifestações seculares persistentes do tipo antropológico e étnico, que se mantêm desde as incursões dos Celtas e lutas contra a conquista dos Romanos até à resistência diante das invasões da orgia militar napoleónica. São as suas feições:

A tenacidade e indomável coragem perante as maiores calamidades, com a fácil adaptação a todos os meios cósmicos, pondo em evidencia o seu génio e ação colonizadora;

Uma profunda sentimentalidade, obedecendo aos impulsos que a levam ás aventuras heroicas, e à idealização afetiva, em que o Amor é sempre um caso de vida ou de morte;

Capacidade especulativa pronta para a aperceção de todas as doutrinas científicas e filosóficas, como o revela Pedro Julião (Hispano), na Idade Média, Francico Sanches, Garcia da Orta, Pedro Nunes e os Gouveias, na Renascença;

Um génio estético, sintetizando o ideal moderno da Civilização ocidental, como em Camões, reconhecido por Alexandre de Humboldt como o Homero das línguas vivas.

O cantor das grandes Navegações foi quem teve a mais alta compreensão do génio nacional; a alma Portuguesa achou no seu Poema a incarnação completa. Quando Camões descreve nos Lusíadas, geográfica e historicamente Portugal, referindo-se à tradição da antiga Lusitânia, relembra o vulto que simboliza a sua vitalidade resistente, diante da incorporação romana da península hispânica:

Eis aqui, quase cume da cabeça
Da Europa toda, o reino Lusitano,
Onde a terra se acaba, e o Mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.
Esta é a ditosa Pátria minha amada,
Esta foi Lusitânia.
Desta o PASTOR nasceu, que no seu nome
Se vê que de homem forte os feitos teve;
Cuja fama ninguém virá que dome,
Pois a grande de Roma não se atreve.
(Cant. III, st. XX a XXII.)
Deixo... atrás a fama antiga
Que com a Gente de Rómulo alcançaram,
Quando com VIRIATO na inimiga
Guerra romana tanto se afamaram.
Também deixo a memória, que os obriga
A grande nome, quando a levantaram
Por um seu Capitão, que, peregrino,
Fingiu na Cerva espirito divino.
(Cant. I, st. XXVI.)

No tempo do grande épico ainda se não tinha perdido o conhecimento da relação de continuidade histórica entre Portugal e a antiga Lusitânia, mais vasta e por isso mais violentamente retalhada pela administração imperial romana. Esse conhecimento, embora confundido com as lendas sincréticas dos falsos Cronicões, influiu na consciência do nosso individualismo étnico e nacional. O esforço de desnacionalização de Portugal pela política da unificação ibérica, veio até refletir-se nos próprios historiadores pátrios, levando-os a considerar Portugal uma formação recente, adventícia, sem individualidade, e a Lusitânia quase como uma ficção banal dos eruditos da Renascença! Mas o carater persistente do tipo português, a resistência tenaz contra todos os conflitos da natureza e pressões da vida, que tanto o distingue entre os povos modernos, é a prova manifesta da raça lusitana como a descreveram os geógrafos gregos e romanos. Nas lutas pela liberdade territorial a Lusitânia deixou nos historiadores greco-latinos o eco da sua resistência indomável, sobretudo no Ciclo das Guerras viriatinas, que se reacenderam ainda sob o comando de Sertório.

Pela sua genial intuição teve Garrett a compreensão deste carater resistente e sofredor da nossa raça lusitana: «Os Portugueses são naturalmente sofredores e pacientes: muito arrochada há de ser a corda com que de mãos e pés os atam seus opressores, antes que rompam num só gemido os desgraçados. Um murmúrio, uma queixa... nem talvez no cadafalso a soltarão! Vendem-nos os desleais pegureiros de quem nos deixamos governar; vendem-nos, enxotam-nos para a feira a cajado e a latido e mordedela dos seus mastins; e nós vamos e nem gememos. Se um clamor de queixumes, se uma voz de desconfiança acaso surde, aqui os clamores de rebeldes, os alcunhas de demagogos... e a nação (o rebanho, direi antes) que se resigna e sofre, e continua a caminhar para o exício! Tal é, com as diferenças de variados nomes e datas, a história de Portugal quase desde que a revolução ou restauração (restauração seria?) de 1640 fez da nação portuguesa o património de meia dúzia de famílias privilegiadas e dos seus satélites e parasitos.» (Carta de M. Cévola, 1830.)

Simbolizamos esta resistência, vivificando o tipo de VIRIATO, reconstruindo poeticamente as situações lacónicas referidas nos historiadores clássicos; representamos artisticamente essa fibra que ainda hoje pulsa em nós, e pela qual, perante a marcha da Civilização se afirma através dos cataclismos políticos a ALMA PORTUGUESA.

Assuetum malo Ligurem , disse Virgílio (Georg., II, 102) dessa poderosa raça, de que o Lusitano foi um dos ramos mais ativos; as terríveis desgraças que nos têm acompanhado desde a romanização da península até à subserviência inglesa, como acostumados ao mal, não nos têm alquebrado: não apagaram a constituição da Nacionalidade, não embaraçaram as iniciativas dos Descobrimentos marítimos; não abafaram a expressão das altas capacidades estéticas. Pela expressão artística se fixou a língua portuguesa, órgão reconhecido da nacionalidade, cujo sentimento se manteve pela idealização poética, em Camões. Seja ainda esse recurso poético o meio de acordar a consciência do passado de um Povo, no qual estão implícitos a sua razão de ser presente, e o ideal do seu destino futuro.

Um dos fins da Arte moderna é a representação da vida dos povos e dos aspetos da natureza dos países longínquos, e também a evocação das idades passadas, vencendo por este exotismo o apagamento das impressões de tudo quanto nos cerca; assim se inicia a fase estética construtiva. Pela evocação da Raça penetra-se o sentir da fibra nacional, e por esta o drama das lutas das Instituições que se fundaram, o vínculo das Tradições, que foram germes e impulsos da missão histórica e das criações artísticas que refletiram a consciência da coletividade.

Teófilo Braga

CAPÍTULO I

No ano de DCIII da era da fundação da Cidade de Roma, sendo Cônsules L. Licínio Luculo e A. Postúmio Albino, acontecimento inopinado suscitou nos espíritos um extraordinário alvoroço: O Senado fora convocado repentinamente, com urgência, sem ser pela fórmula usual de um Edito, mas pela perentória chamada nominal ordenada pelo velho e integérrimo Catão, denominado o Censor.

A gravidade do acontecimento forçara por certo o venerando presidente do Senado a simplificar essa fórmula da convocação? Algum grande crime perturbava ou ameaçava o governo da Republica! A curiosidade era imensa, e antecipadamente sabia-se que a voz austera de Marco Catão, o Censor, se ergueria no Senado contra o patrício o mais opulento dos romanos, que dispunha de riquezas bastantes para corromperem os juízes aos quais se confiasse o seu julgamento.

Galba! era este o nome que soava de boca em boca, mais com inveja do que hostilidade, desde que o Tribuno do Povo Aulo Cribonio o citara para comparecer em justiça pelas depredações e carnificinas que praticara contra as Tribus e cidades tributarias da Lusitânia, que como Província senatorial estava sob a égide da lealdade romana.

Era de um crime contra a majestade do Povo romano, que versava a acusação do Procônsul Servio Sulpicio Galba, ao qual fora confiado o governo e administração da Hispânia Ulterior, essa parte ocidental da península em que se compreendia a vasta Lusitânia. Ninguém se atrevia a pôr em dúvida a valentia do tribuno militar, que fora à Hispânia com a missão especial de combater e submeter os Celtiberos; mas, sendo conhecida no mundo a glória do Senado, que, vai para quatro seculos, dirige com um tino incomparável as guerras de incorporação dos povos bárbaros, como poderá consentir que no exercício dessa missão civilizadora lhe infamem a inviolável autoridade?

A voz de Catão ergueu-se no meio de um religioso silêncio com a acuidade de um látego de fogo:

— Como velho octogenário, ninguém compreende como eu o poder dos Costumes dos Antepassados representados hoje no Senado, como um tribunal permanente, de ação executiva, e com consciência das necessidades públicas expostas pela palavra em discussão aberta. É desses Costumes dos Antepassados que deriva a Soberania com que nós todos aqui presentes, dando forma à opinião pública, intervimos no organismo social de Roma. Diante de mim, e entre os trezentos membros aqui reunidos, vejo ainda os antigos chefes da Família romana, os Patres, que pela idade foram os Seniores, os quais deram o nome a este Tribunal sacrossanto de Senado; também vejo os Concripti, que a pouco e pouco foram chamados a completarem o número, que a morte ou a extinção das famílias ia diminuindo. Em fim, aqui estamos constituídos tanto a Ordem senatorial como a Equestre, para deliberarmos sobre o que interessa à Republica. Dentro de vós, uns exercem um poder temporário, e outros são inamovíveis desde que se reconheceram os seus serviços, e pela sua vida incorruptível são proclamados Censores. É pois no exercício desta dignidade que eu falo e conto ser ouvido, porque foi confiada à proteção da minha vigilância essa ubérrima província da Hispânia. Tendo eu, como Censor, cooperado sempre, todos os cinco anos, pela confeção do registo do Censo, na nomeação dos Senadores tirados dos antigos magistrados, raro será aqui o Senador que não deva à minha confiança a honra dessa escolha confiada a Senadores consulares, a Senadores pretorianos, segundo as magistraturas, e cargos curuis, em que se dignificaram. E tendo eu exercido este direito supremo dos Censores, compete-nos mais um, que é o da exclusão dos indignos do Senado...

Sentiu-se um vago rumor entre os trezentos membros da assembleia; Catão, quase sem notar que o seu longo exordio já fatigava a atenção, prosseguiu:

— É esse direito, que hoje me traz aqui, apoiado pela própria consciência e pelo meu juramento. Eu bem sei que as atribuições dos Censores são constantemente diminuídas, e que virá tempo em que desaparecendo esta magistratura, irromperão as guerras civis. Deixemos o futuro, e perdoai as digressões próprias da provecta idade. Em gravíssimas circunstancias, sabidas por nós todos, foi Servio Sulpicio Galba mandado à Hispânia como Pretor. E se a situação difícil reclamava todas as virtudes militares para a majestade de Roma se manter ilesa, mais necessário era o espirito de uma inteligente politica, para perpetuar por bons tratados o que a espada nem sempre conseguiu. Galba deu primeiramente uma prova deplorável de militar incompleto, quando invadindo a Lusitânia, perdeu sete mil e quinhentos legionários, indo refugiar-se numa situação ignóbil em Carmona. Destemido, mas inconsiderado, é este homem por isso perigoso para a Republica. E ainda mais: é de um carater falso, violando com decoro a palavra de um Tribuno, que vale tanto como um tratado escrito, rebaixando perante o mundo o poder romano sempre inquebrantável, quando se trata de um dever moral. É certo que as trinta e seis cidades tributárias da Lusitânia, sempre irrequietas e lutando pela sua autonomia e independência local, também violaram o tratado concluído com Atílio, infestando as Colonias romanas, e as Cidades federadas e imunes, favorecidas com o regímen municipal. Nesta angústia, em que Roma tinha de impor a sua autoridade, bem compreendera que já não devia empregar o sistema da devastação; mas Galba, desgraçadamente não compreendeu este pensamento governativo! Mandado à Hispânia, aí chegou com um exército cansado e exausto; em vez de limitar-se à defesa imediata dos súbditos romanos, encetou logo combates contra as tribos lusitanas, que nas suas embocadas contínuas, em assaltos repentinos o foram estafando e enfraquecendo até encontrarem o momento azado em que se atreveram a dar-lhe uma batalha campal, em que ficaram trucidados sete mil legionários. Os corajosos de Galba ficaram diminuídos perante a estupenda calamidade; Galba teve de colocar-se na defensiva, aproveitando a época das grandes invernias para se fechar cautelosamente nos quarteis de Conistorgis! As Aguias romanas, como bem diria aí qualquer poeta satírico, estavam fechadas na capoeira.

O Senado permaneceu imperturbável diante da ironia cáustica do orador, que continuou no mesmo espirito:

— E de facto Galba, durante essa inação, chocava uma tremenda infâmia! Logo no princípio da primavera do ano DCIII da fundação da Cidade eterna, que ficará afrontosamente assinalado nos Fastos Consulares, Galba pôs-se em marcha para a Lusitânia, devastando inconsideradamente Cidades imunes ou federadas, estipendiarias ou contributos daquela opulenta região, donde Roma tem haurido montanhas de prata. Esses povos da Lusitânia, embora tenazes e inquebrantáveis, pelo natural bom senso reconheceram que era melhor gozarem os privilégios que Roma lhes concedia, do que envolverem-se numa guerra interminável, que com certeza visaria à sua destruição. Resolveram mandar a Galba enviados com a declaração, que se confessavam arrependidos da revolta a que tinham sido arrastados, e prontos a cumprirem integralmente o tratado firmado com Atílio. A uma tal proposta, Galba manifestando-se benevolente, ele mesmo respondeu aos enviados das tribos lusitanas: «Que era o primeiro a reconhecer a força das circunstâncias, que os obrigara pela tremenda crise da fome e da miséria a quebrantarem a lei romana, e a entregarem-se por vezes a incursões e rapinas em lugares que gozavam quase os direitos da metrópole. Mas, em vez de tomar diretamente a responsabilidade desses actos, e sabendo a causa intima que os motiva, eu farei que finde a situação violenta das Cidades estipendiarias, acabando com os tributos pesadíssimos que as oneram, eximindo-as dos pagamentos ás legiões romanas e ás provisões de víveres fornecidos ás tropas em passagem. Para se efetuar isto, passareis à categoria de Cidades municipais, com o vosso território livre, sem pagamento de tributos, com magistrados eleitos livremente, e fora da jurisdição do governador da Província.» Diante desta perspetiva, Galba, traiçoeiramente apontou as terras que lhes reservava, e que dividia em três cantões, e tratou de convocar para um determinado dia na margem direita do Tejo as tribos lusitanas, exigindo como prova da mútua confiança que se apresentassem desarmadas, para que em Roma se não dissesse, que a generosa concessão do Jus italicum era extorquida.

Catão, como que vencendo uma opressão de momento, salientou o facto monstruoso:

— Á convocação feita por Galba concorreram os povos confiados na palavra que representava o poder romano; e logo que Galba apanhou as tribos desmembradas e desarmadas na planície para onde as convocara, envolveu-as nas Legiões que subitamente se apresentaram fortificando a linha dos Hastatos e Triários com toda a Cavalaria, que atropelando a multidão inerme, fez passar ao fio da espada para mais de trinta mil pessoas, entre homens validos, velhos e crianças, e até mulheres! Nada mais execrando, porque esta traição vilíssima deslustra as vitórias romanas! E se este instinto traiçoeiro é a base da sua tática de guerra, é igualmente a feição do seu carater no tempo de paz; e com tais recursos se defenderá da justiça implacável, perante a qual seja chamado a responder, porque no meio de tantas carnificinas e depredações, Galba apoderou-se de assombrosas riquezas, com que de certo conta eximir-se de toda a pena. Mas a desonra do individuo, ou o seu castigo, não ressarce os males da Pátria! O poder de Roma está neste momento abalado na Lusitânia, que se debate num levantamento geral contra uma tão inaudita monstruosidade. E se eu, como Censor, acuso o homem indigno, e defendo os meus clientes de Hispânia contra o sanguinário e iniquo prevaricador, perante o Senado também reclamo que um General inteligente com novas tropas vá prontamente restabelecer a paz e o direito ás povoações alvoroçadas da Lusitânia.

A voz de Catão, o Censor, fora escutada com assombro. Ele tinha aliado à veneração devida aos seus oitenta e cinco anos de idade uma longa vida intemerata, que triunfara brilhantemente de todas as calúnias, com que por vezes procuraram minar o seu ascendente moral.

Nesta mesma sessão memoranda do Senado resolveu-se que imediatamente fosse mandado a Hispânia o Pretor Caio Vetílio com novas Legiões e Cavalaria para reforçar o exército provincial. Determinou mais o Senado, que Servio Sulpicio Galba e o Cônsul Lúcio Licínio Luculo regressassem a Roma para prestarem contas estritas pelos seus roubos, expolições e crueldades afrontosas.

CAPÍTULO II

O Tribuno da plebe Aulo Cribonio, estimulado pela acusação de Galba no Senado, convocou o povo de Roma para o Fórum, para pedir-lhe o julgamento do Procônsul pelo crime de infanda traição. O concurso foi enorme, tanto mais que desde muitos anos a competência judiciária dos Concílios estava cerceada pela delegação desses poderes a um júri ou Conselho perpetuo.

O Tribuno falou à multidão, com nitidez e segurança:

— Sabeis que ao Senado, como corpo dirigente da Republica, pertencem os poderes sobre o Culto, sobre a administração das riquezas do Estado e principalmente a administração das Províncias. Competia-lhe por isto a iniciativa da acusação de Galba; mas é obrigação do Tribuno impulsionar a ação pública, sobretudo quando se trata do crime de alta traição, como agora, em que é réu Servio Galba! Eis o facto na sua espantosa crueza: numerosas cidades da Lusitânia, que estavam na situação angustiosa de estipendiarias, vexadas pelos pesados impostos extorquidos pelos magistrados romanos, tinham requerido ao Senado para lhes ser concedida em prémio da sua fidelidade a situação de confederadas ou imunes, podendo assim governar-se pelas suas leis consuetudinárias, pelas suas magistraturas locais, sem contudo aspirarem ao gozo dos direitos políticos de cidadãos romanos. Era a base da pacificação da Lusitânia! O Procônsul Galba servindo-se da majestade do povo romano garantindo esse pedido, convocou as povoações desarmadas para lhes comunicar o Edito do Senado que o legislava, e envolvendo-as nas suas legiões trucidou traiçoeiramente para mais de trinta mil pessoas, em que a par dos homens validos estavam velhos, crianças e até mulheres!

O povo permaneceu mudo, sem mostrar comoção alguma pelo quadro da horrenda carnificina. O advogado Fúlvio Nobilior, que fora encarregado da defesa de Galba, notou esta circunstância da insensibilidade moral da plebe. O Tribuno continuou:

— Para o julgamento deste atentado contra a majestade do Povo romano, bem sei, é preciso um exame dos factos, e por felicidade das nossas instituições sempre perfectíveis, o processo de Galba será formado pelos Questores, que apresentarão ao Concilio da plebe os seus quesitos, sobre os quais efetuareis a votação. O que outrora fora um motivo de discórdia entre o Povo e o Senado é hoje uma harmonia social, porque se reconhece, que assim como os negócios judiciais carecem de ciência jurídica para serem tratados, os assuntos de jurisdição criminal não podem ser sentenciados senão muito refletidamente. E se a lei tribunícia Calpúrnia avocou estas questões a um júri perpétuo, o Povo sem perder a sua prerrogativa delegou este poder judiciário aos Questores. Que Servio Sulpicio Galba seja processado pelo Conselho dos Questores, sendo as suas conclusões apresentadas à vossa deliberação no mais breve lapso de tempo.

Depois de se ter calado o Tribuno, apresentou-se à frente do povo, que enchia o Fórum, o advogado Fúlvio Nobilior, conhecido pela sua extrema argucia, por um espirito sarcástico, que chegava a tocar as raias do cinismo. O seu poder nos tribunais consistia em fazer desvairar as opiniões, em atuar nas consciências suscitando a dissolução moral, tornando ridículos os sentimentos de piedade ou de humanidade. Era sempre ouvido com interesse; a multidão compreendia-o. Quando veio à barra, um rumor surdo foi o prenúncio de um grande silêncio; o seu discurso ficou memorável:

— É acusado o Procônsul Servio Galba de latrocínios na Hispânia Ulterior, nessa região, que assenta sobre jazigos de ouro e prata, a Lusitânia! O que tem a fazer um homem culto entre gente barbara, senão levantar do chão as joias que vê calcadas inconscientemente? Também da Hispânia Citerior, acabado o seu governo de dois anos, regressa a Roma o Cônsul Lúcio Licínio Luculo, carregado de assombrosas riquezas, e não foi acusado de latrocínio, nem de rapinas ou extorsões. E porquê, tendo os dois magistrados seguido os mesmos processos administrativos? A razão é evidente. É porque Luculo soube captar as simpatias, compartilhando o seu ouro e prata, e gemas preciosas com os patrícios influentes, que aí têm assento no Senado; e para desviar a ideia dos roubos, teve o pensamento de edificar um Templo à Deusa Felicidade, a quem atribuiu a posse de tantas riquezas! Servio Galba só cometeu um erro: quis tudo para si, dando apenas algumas migalhas aos legionários, que o acompanharam nas depredações! Daí o odio dos Tribunos da Plebe. Mas, para que despender aqui o tempo com uma moral especulativa, se esses pretendidos roubos ou concussões fazem que Roma regurgite em riquezas espantosas, trazidas dessa Hispânia inesgotável à avidez do estrangeiro? Só lembrarei, que quando Roma se viu assaltada pelos Gauleses, difícil foi juntar mil libras de ouro para pagar a imposição de guerra! E desde que fomos a Hispânia, sete anos antes da terceira Guerra púnica, 16:800 libras de ouro já se achavam no fundo do tesouro romano! E no começo da Guerra social, o Erário regurgitava com 1:620$829 libras de ouro! Quem não compreende que a riqueza de Roma não lhe vinha do trabalho agrícola e fabril, mas da guerra em países ricos? Foi esta sempre a nossa política. Combater, vencer, para civilizar, pagando-nos por nossas mãos deste beneficio. Desde que as Legiões romanas pisaram o solo da Lusitânia, conheceu-se que o ouro nativo aí abundava em assombrosos filões, e em palhetas nas areias do Tejo! Nada mais claro para um Governo inteligente: submeter esse povo a trabalhar ao serviço de Roma na exploração das minas de ouro e prata, e de convertermos esses metais em ornatos pessoais, baixelas, e sobretudo em moedas, que facilitam o comércio do mundo! Evidentemente Roma é a civilizadora do orbe! Quando Cipião Africano veio receber em Roma a apoteose pelas suas vitórias sobre os Cartagineses e Iberos, entregou ao Erário de Roma trezentas e dez arrobas de prata lavrada, pilhada em oitenta vilas e cidades da Ibéria! Mas não rezam os Anais romanos da que o general reservou para si. E o seu sucessor, Lúcio Cornélio Lêntulo? Também depositou no Erário mil e trezentas arrobas de prata lavrada. É incalculável a quantidade de arrobas de prata que os Cônsules e Pretores, que administraram as duas Hispânias, transferiram das suas prezas para Roma. E os celebrados dinheiros de Oca? Porém, essa riqueza só chegava ao Povo romano em alguma festa pública de apoteose; pelo processo moderno, o povo é mais favorecido, porque essas riquezas pilhadas na Ibéria e na Lusitânia são despendidas em Roma pelos seus detentores na vida faustosa com que tornam a Cidade a capital da Civilização do mundo. E depois, de quem tomou Galba as riquezas que está espalhando em Roma? De ladrões desprezíveis e abjetos, que ocupam o solo da Lusitânia, raça de escravos, impando de ignorância e orgulho, indignos do belo céu que os cobre. Eis aí o crime. Roubar ladrões, do que possuem estolidamente, e enriquecer Roma, que mais será preciso para a apoteose? Galba bem merece do Povo. Fique ao Senado a glória de condenar o valente e magnânimo Procônsul pela afetada questão de humanidade, da qual nada consta nos sublimes Anais das nossas glórias militares, que serão sempre o assombro do mundo! E, que justiça é esta, que acusa Galba, e deixa no doce olvido o Cônsul Lúcio Licínio Luculo, que passou também à Lusitânia, trucidando os Vaceos a título de vingar os Carpetanos, e mandando a um sinal dado passar a fio de espada todos os habitantes da cidade de Caucia? Se, como dizem os nossos jurisprudentes, a Justiça é só uma, os historiadores também proclamam, que há uma só glória militar: Vencer! Se hesitarmos nos meios... Roma perderá o império do mundo.

O Povo compreendeu as cínicas palavras de Fúlvio Nobilior; e até o próprio Tribuno, cumprido o dever do seu cargo, concordava no foro intimo com essa doutrina, reveladora de uma crise da consciência nacional, em que se preparava para futuro não remoto a transformação das instituições sociais e políticas de Roma.

CAPÍTULO III

O Cônsul Vetílio partira a toda a pressa para a Hispânia Ulterior, a reforçar o exército provincial; temorosas notícias corriam pela Cidade, de um levantamento geral das cidades da Lusitânia, que visava a sacudir o jugo de Roma, tornado odioso e incomportável pela traição execranda de Galba. O Senado confiava na valentia e inteligência estratégica de Caio Vetílio, sem desconhecer a resistente tenacidade inquebrantável das tribos lusitanas, que apoiavam a sua independência individual num território livre, tendo por grito de guerra:

— Vencer ou morrer!

Pressentimentos aziagos se espalhavam sobre o êxito da expedição de Vetílio.

E enquanto espantosos sucessos se estariam passando longe, muito longe, na parte ocidental da Hispânia, no incendio da insurreição, o detestável Servio Sulpicio Galba vinha compelido à barra do Senado apresentar a defesa dos crimes de que fora acusado por Catão o Censor. Ele bem sabia que deslustrara pela má-fé a dignidade do Povo romano, mas confiava no poder da sua eloquência prestigiosa.

Galba receou por um momento a condenação, e preparou a defesa espalhando pelos Senadores e funcionários de Roma os blocos de prata e ouro em barra, que trouxera das minas da Península, onde tinha para mais de quarenta mil homens entregues ao trabalho forçado da exploração desses jazigos, que rendiam vinte mil dracmas argênteas por dia. E como se não bastassem as riquezas que espalhou com profusão pelos juízes, dirigiu-se-lhes ao sentimento, apresentando-se no tribunal com os seus dois filhos. Lida a acusação, foi-lhe concedida a palavra, escutada atentamente. Era um dos casos mais emocionantes de Roma. Será condenado? será absolvido? Faziam-se apostas, aproveitando esse lance para um jogo descarado. A palavra eloquente de Galba era conhecida e admirada.

Perorando:

— Todos vós estais bem lembrados, que sob o consulado de Licínio Luculo e de Aulo Postúmio, um terror excessivo se apoderou dos Romanos por causa das tremendas derrotas dos nossos legionários na Hispânia, derrotas infligidas pelos Celtiberos, por forma, que não havia togados, nem pretorianos que se inscrevessem para acudir à remota região em que fraquejava o Poder de Roma. Cipião Africano revoltou-se contra tanta covardia, oferecendo-se para ir combater e subjugar essas populações indómitas, que lutavam pela independência da sua terra. Passada a aparente pacificação, fui mandado como Pretor à Hispânia. Eu mesmo então vencido pelos Lusitanos numa batalha campal, consegui salvar-me com um troço de cavaleiros entre penhascos! Ah, foi ali, nessa extrema angústia que jurei, que prometi à glória dos Quirites o extermínio dos Lusitanos, dessas tribos irrequietas, que são hoje o único embaraço para que a soberania de Roma se estenda imperturbável sobre toda a riquíssima península da Hispânia. Lúcio Minutius veio a toda a pressa acudir à minha situação desesperada. Bem sabeis com que altivez e soberbia os Lusitanos e Celtiberos falam contra o poder de Roma; e a todos os Procônsules, que vão ás guerras da Hispânia Citerior e Ulterior, tem sido recomendado que a tantas bravatas estólidas se deve responder com castigos tremendos e inolvidáveis; e sobretudo que os Lusitanos aprendam à sua custa, que as Aguias romanas não sofrem ameaças da vil preza. Não fiz mais do que seguir a política traçada. Dirão que me excedi na ação repressiva? Respondo, e ouça-me a história: Enquanto existir sobre o território da Hispânia esse povo Lusitano, há de aí manter-se sempre vigoroso o instinto e o sentimento da autonomia. Roma nunca aí sustentará o seu império tranquilo, porque as tribos lusitanas sonham com uma Pátria livre! Por mais que as nossas divisões administrativas retalhem o seu território, desmembrando-o, mais os Lusitanos compreendem a necessidade da Confederação das raças peninsulares como condição para repelirem o jugo estrangeiro e afirmarem a sua independência! E se essa Confederação se chega a organizar, Roma terá no extremo ocidente um inimigo mais terrível do que Cartago, e as guerras contra os Lusitanos serão mais sangrentas do que as Guerras púnicas. Foi para destruir estes germes de Confederação, que eu convoquei à falsa fé os Lusitanos para tratar das liberdades que Roma lhes concedia, e passei à espada uns sete mil dentro deles? Sim, parecerá cruel? Mas, do mal o menos; sabei, que a Lusitânia tende a unificar numa mesma pátria os Carpetanos, os Vetões, os Vaceos e os Calaicos. Do Anas ao Mar Cantábrico tudo é lusitano; e do Anas ao Cabo Sacrum, e também grande parte da Betica, ou Tartessida, são regiões ocupadas pelos Lusitanos, o Povo mais poderoso da Hispânia, como notam os geógrafos. Aí veríamos formada uma forte nação, cujo território terminava ao nascente dos Asturios e Celtiberos, e compreendendo a Calaecia, com todos os territórios do Minio, do Durio até ao Tago, e mesmo a região transmontana. Do Cabo Sacrum até ao Mar Cantábrico, toda esta parte ocidental da Hispânia constituindo a Lusitânia! compreendeis agora o perigo que nos ameaça, e de que eu consegui salvar o poder de Roma. Nós erradamente damos o nome de Celtiberos a povos que são lusitanos de raça; julgamo-lo desunidos, e aparentemente se mostram, até à hora do perigo. Se os Lusitanos chegarem um dia a estabelecer uma Confederação, serão invencíveis e derrotarão os invasores estrangeiros que tocarem o solo da amada Pátria. É isto que importa ter sempre presente à consideração dos políticos, que tentarem dominar a Hispânia, e governa-la enfraquecida para a exploração das suas incalculáveis riquezas. Que o dito de Catão, Delenda Cartago, se converta agora em Finis Lusitaniae! Mas, não quero acabar com uma frase de efeito; a retórica não entra aqui para nada. Importa manter a Hispânia dividida; não é em Citerior nem Ulterior, mas em LUSITANOS e IBEROS. Esses dois povos são incompatíveis entre si; o Ibero admira a autoridade, a força, e quer exerce-la impetuosamente, ao passo que o Luso ama a independência sem ruido nem aparatos. O Ibero é incapaz de se unir para a defesa, e obedece passivamente a qualquer poder físico ou moral que se lhe imponha; o Lusitano liga-se facilmente para a defesa, em revolta contra todo o poder. Conheci pela experiencia estas diferenças, e reconheci de que forma poderia fundar na Hispânia o Poder indestrutível de Roma: acabar com a Lusitânia, e estender as populações ibéricas. Chamado a Roma, por causa dos sete mil trucidados, que outros aumentam até trinta mil, ficou truncado o meu plano; mas estou convencido, que Roma, se não hoje, um dia me fará justiça.

No seu discurso Galba concluía por ser preciso incendiar as principais cidades da Lusitânia; passar à espada as povoações que se revoltaram; transplantar os povos lusos, substituindo-os por tribos propriamente ibéricas; vender como escravos nos principais mercados essas tribos inteiras, que pelo seu orgulho embaraçam a ação do Poder romano na Hispânia; arrasar os burgos e as citânias; estabelecer a pilhagem sistemática dos campos; decapitar todas as cabeças de motim, logo que sejam agarrados ou pela força ou pela traição, e não bastando isto ainda, retalhar a Lusitânia pelo menos em três troços: ao norte, constituindo em corpo à parte a CALAECIA, ao centro a TARRACONIA, e a sudeste a BETICA: logo que fique a LUSITÂNIA reduzida ao limite do Durio ao Anas, numa miserável faixa de terreno, tapada pelo mar, nunca mais terá resistência, e mesmo chegará até a esquecer-se da pretendida autonomia.

O discurso foi ouvido com assombro, não já como defesa, mas como um plano de futuro governo para a incorporação completa da Península hispânica.

Quando estava para ser proferida a sentença sobre as responsabilidades de Servio Galba, ecoaram por toda Roma as desoladoras notícias vindas da Lusitânia: a derrota formidanda de Vetílio! a morte ignominiosa do general romano! O exército reduzido a seis mil homens, refugiado na cidade de Carpesso! E o poder de Roma ameaçado por um cabecilha, dizem que outrora Pastor, outros afirmam que Salteador de estradas, outros que é uma aparição maravilhosa desse Viriato, que há setenta e dois anos acompanhara Aníbal à Itália, e que combatendo em Canas fora morto por Paulo Emílio!

Todas estas vozes corriam em Roma, e avolumavam-se, aumentando o terror, e o prestígio do Cabecilha. É de crer que influíram na sentença, que absolveu a Servio Sulpicio Galba da inaudita carnificina dos trinta mil lusitanos desarmados. E também se conta, que a morte inesperada de Catão, o Censor, se explicava pelo desgosto de ver a justiça avergada à iniquidade triunfante, e diminuída a glória de Roma ultrajada nos anais humanos.

CAPÍTULO IV

Em Roma não se formava uma ideia clara das monstruosidades praticadas por Galba. Diante destes planos de forte administração, e pelas doutrinas da política de interesse, o quadro da mortandade de trinta mil indivíduos desarmados, convocados juridicamente pela autoridade do Pretor, e chacinados traiçoeiramente, pouca impressão fazia na alma do povo romano: a falta de sensibilidade moral preparava a sua marcha decadente para a servidão. Mas o crime de Galba era daqueles que fazem levantar as pedras! Dos montões de cadáveres, meio incinerados e cobertos de pedregulhos, quando a noite viera pôr termo à carnificina, levantaram-se cautelosamente algumas das raras vítimas, que a casualidade resguardara dos golpes sucessivos que esmagavam aquela multidão inerme; e esses desgraçados, fugindo por entre as trevas cerradas, espalharam-se pelas montanhas e vales, e foram, de povoação em povoação, de cidade em cidade, clamando, bradando, a narrativa da tremenda catástrofe com que os romanos invasores queriam extinguir os Povos Lusitanos.

Esses foragidos, ainda cobertos de sangue e de lama tábida, rôtos e estropeados, levados num desvario de quem perdeu a razão pela enormidade do terror, dispersaram-se pelos campos e foram dar ás grandes cidades municipais como Olissipo, aos Conventos jurídicos como Calabis e Jerabriga, narrando o espantoso sucesso. Por aldeias, por casais e vilares, por citânias no alto dos montes, por toda a parte correu o rumor sinistro da mortandade atrocíssima e iniqua, e não houve folego vivo que se não estorcesse em ímpetos de cólera impotente, em revolta moral contra o maior atentado que à luz do sol se tinha praticado contra a lei humana. O grito delirante dos foragidos, que iam de terra em terra repetindo a trágica narração, tornava-se contagioso, e acordava um profundo instinto de revolta, que ia crescendo como uma onda até rebentar numa convulsão irreprimível. Os Arevacos, os Tites e os Beli, povos que andavam sempre em mortais conflitos, agora achavam-se unidos no mesmo protesto. Rugidos de cólera irrefreável irrompiam entre os Asturios, Calaicos, Vaceos e Carpetanos; estes olhavam com ansiedade quem daria começo a uma luta, para a qual nada estava preparado, a não ser um temperamento sempre resistente. Para o sul os Oretanos, Bastitanos e Edetanos ardiam num rancor exacerbado pela inqualificável traição de Galba, legitimo representante da fé romana. Já soavam no ar Cantigas de guerra, que levantavam as almas; e até por essas povoações remotas e mal conhecidas, como Lubara, Aritium, Elbocoris, Araducta, Verurio, Velade, Arabriga, Tacubis, cujos nomes os geógrafos romanos e naturalistas não queriam repetir por considera-lo bárbaros, por onde quer que passaram os foragidos que escaparam casualmente da horrifica matança, já se formavam troços de gente armada com hozes, ou fateixas de arremesso, catanas grossas, pelo instinto natural da defesa dos seus lares.

Esses poucos foragidos levavam na palavra o incendio, que se espalhava de cidade em cidade, de povoado em povoado, narrando desenfeitadamente o crime do governo de Roma. É certo que a população lusitana estava cansada das recentes e ineficazes lutas; as cidades confederadas e estipendiarias queriam o sossego da sua vida laboriosa, suportando sacrifícios da liberdade. Nas cidades dos Turdetanos, como Balsa, Salacia, Cetobriga ecoara imprevistamente o caso nefando da carnificina, e lamentavam não existirem chefes que organizassem a resistência contra o brutal e monstruoso atentado. E se esta impotência, ao menos, assegurasse alguns anos de tranquilidade para o sul da Península! Outro Pretor que venha, perante a impunidade deste, até onde levará as depredações e os morticínios!

Os povos que gozavam das garantias de Município romano não queriam mover-se para não decaírem dos privilégios que fruíam concedidos pelo conquistador; os povos que participavam dos direitos do antigo Lácio obedeciam à mesma tendência egoísta. Somente entre os povos na situação de tributários poderia surgir um impulsivo instinto, mas impotente de revolta. Nas cidades dos povos denominados Célticos e Iberos havia um certo ciúme contra a aspiração hegemónica dos Lusitanos; mas nem por isso se ligou menos interesse ás narrativas dos foragidos da matança de Galba. Os seus gritos repetidos de terra em terra chegaram a Laucobriga, a Castraleuco, Arandis, Mirebriga, e os trabalhadores do campo interrompiam as bessadas para escutarem esse caso estupendo; as festas religiosas e as nupciais suspendiam-se à chegada dessas figuras sangrentas, que pareciam fantasmas ressurgidos do campo da matança para virem reclamar a eterna vindicta.

Ouvireis o que bradavam esses foragidos, quase em delírio, alguns deles caindo no chão esgotados de sangue que ainda vertiam das feridas, outros borbotando sangue pela boca, aos gritos convulsivos com que narravam o caso da mortandade.

— «O Pretor Servio Sulpicio Galba convocou para uma assembleia nas campinas da margem direita do rio Tagus, os três Conventos da Lusitânia Emeritense, Pacense e Calabitano com as trinta e seis Cidades estipendiarias, recomendando que viessem sem armas, porque se tratava da distribuição de terras, do estabelecimento de novas Colonias, e de elevar alguns Povos tributários aos privilégios de Cidades Confederadas, de Município romano e do antigo Lácio.

«Confiados nas palavras do Edito do Pretor, concorreram ao local que lhes fora aprazado, muitos povos, interrompendo as suas lavouras; e como se fosse para uma festa de paz e congratulação levaram consigo suas mulheres e filhos, e os anciãos mais venerandos das tribos, como arreféns do seu ânimo pacífico.

«O Pretor ordenou que se juntassem na campina em que tinha mandado plantar uma árvore de Maio, junto da qual se devia assignar o pacto perpétuo da concórdia com as Tribus lusitanas.

«Enquanto se esperava o Pretor cercado da sua Corte, começaram a aparecer quatro Legiões, que se formaram em orbis, estendendo em ordem de batalha as suas três fileiras, e envolvendo como numa grande muralha toda aquela multidão inerme! Ninguém suspeitava o intuito do súbito envolvimento.

«Os manípulos da Legião, com as suas bandeirolas foram marcando os lugares, que à frente de todos ocuparam os Hastários; por traz destes ficaram os Príncipes dispostos de modo a por entre eles poderem recuar os que lhe estavam em frente; na terceira linha estendiam-se os Triários, como barreira de resistência.

«Depois disto apareceu a Cavalaria, correspondendo quinhentos Cavaleiros a cada Legião, armados com o gládio hispânico de dois gumes. Foi então que um gélido terror se apoderou daquele povo indefenso. As lanças e chuços dos Hastários colocaram-se por um movimento repentino em riste, como formando uma muralha cerrada de espetos.

«O Pretor Galba não aparecia! Um pressentimento de morte se estampou na lividez de todos os rostos, quando viram por detrás dos triários moverem-se torres de madeira, catapultas e balistas.

«Com certeza Galba planeara uma infamíssima traição! Como fugir-lhe? As mulheres, em lamentos atroadores, abraçavam os filhos, sem perceberem ainda o perigo. Os velhos aconselhavam prudência, esperando serenos as ordens do Pretor.

«Neste momento de angústia pesados calhaus foram de longe arremessados por catapultas contra aquela multidão compacta, esmagando ali algumas centenas de lusitanos. O grito de espanto parecia uma tempestade; os que tentavam fugir foram espetar-se e morrer nas fileiras cerradas dos Hastários; os que se estreitavam uns aos outros num pânico inconsiderado abafavam-se.

«E enquanto iam chovendo os grandes calhaus arrojados pelas catapultas, caíam sobre a multidão as Falaricas ou lanças incendiarias, que os Romanos tinham tomado dos costumes hispanos, e outros engenhos arremessavam panelas de pez e estopa ardendo, que os Cestrofendones faziam cair no meio da assembleia.

«E como se não bastasse tudo isto para destruir aquela gente desarmada, os Fundibulários baleares mantinham um chuveiro de pedras sempre certeiras, coadjuvados pelos Arcubalistas.

«A multidão ainda se movia, embora não oferecesse resistência alguma; mas Galba, querendo terminar a sua hediondíssima traição e vendo que o sol já declinava, resolveu o final extermínio antes do descer da noite.

Os Cavaleiros recusavam-se à fadiga de passar à espada tantíssima gente inerme que ainda sobrevivia. Foi então que Galba se lembrou de como na guerra de Macedónia, Paulo Emílio deveu a vitória decisiva ao emprego da tática dos Elefantes; e deu logo ordem a que os dez Elefantes oferecidos por Masinissa aos Romanos para servirem nas guerras contra os Celtiberos, se empregassem agora para acabarem de esmagar os temerosos rebeldes Lusitanos.

«Os Elefantes couraçados com chapas guarnecidas de espadas foram conduzidos para aquele montão de gente, cuja carne e sangue formava com a terra recalcada uma massa horrenda. De baixo das patas dos dez Elefantes sentiam-se fracassar os ossos das vítimas, e o sangue respingava-lhes até aos peitos, prendendo-se-lhe nas pernas as tripas que eram casualmente arrancadas na sua passagem.

«A noite vinha descendo caliginosa e um vapor espesso se erguia dos vales fundos. Foi então, que ainda dos montão dos cadáveres se ergueu um vulto sorrateiramente, e saltando ao pescoço de um Elefante, o pesado animal caiu redondamente morto em terra! As trevas iam-se engrossando, e o vulto ágil e escorreito foi assim saltando sobre cada um dos Elefantes, que pelo seu turno iam caindo mortos! Quem seria esse vulto extraordinário, que sabia o segredo de dar a morte instantânea a tão poderosos animais, em cuja pele não penetravam os mais pujantes dardos? Quem quer que fosse, ele sabia o segredo aprendido nas Guerras púnicas: de que a mais leve picadela no bolbo pela vertebra que toca no crânio do Elefante fazia-o cair fulminado instantaneamente. Assim foram mortos os dez Elefantes.

«A noite era já cerrada; e enquanto Galba mandara lançar fogo ao montão dos cadáveres entre os quais foram encontrados os dez Elefantes de Masinissa, desses cadáveres escaparam-se alguns indivíduos que se tinham ocultado debaixo dos corpos exânimes, e que se fingiram mortos: são esses os que andam de cidade em cidade da Lusitânia e da Turdetânia pedindo vingança! Vingança! Vingança!»

Por vales e serras, e ressoando de monte a monte, entoava-se um Canto de guerra, que fazia referver o sangue nas veias, exaltando os espíritos ainda os mais acabrunhados. O Canto podia mais do que a reflexão, e cada povo acrescentava-lhe uma nova estrofe, como a aspiração do resgate. A palavra poética é alada, o pelo prestígio da tradição transpõe as idades repercutindo-se na alma dos vindouros.

GRITO de guerra
Terra da Lusitânia,
Ensopada de sangue
Por horrendo baldão!
Chamou-nos o Romano
Para a aliança de paz,
Mata-nos à traição!
Vírus de iniquidade,
Desse fermento de odio
Brote a destruição.
Que a lança dos Quirites
Se quebre, e na nossa frente
Não se erga Legião!
Quem sobrevive ao crime,
E escuta estes lamentos
Da atroz desolação;
Quem perdeu lá seus filhos,
Os pães, entes queridos,
O esposo, o irmão;
Que se revoltem todos,
Peitos sejam escudos,
Lanças raios na mão!
Sofrimento e opróbrio,
A morte e a vingança
Forçam à união!
Vós, Povos da Calaecia,
De Oretania, Beturia,
Cinesia região;
Robustos Carpetanos,
Tartéssios, desmembrados
Da Lusonia nação!
Que o mesmo odio nos una,
Vingai mortos, e os vivos
Salvai da escravidão!
Reviva a Lusitânia,
Ensopada no sangue
Da romana traição.

CAPÍTULO V

De todas aquelas povoações até onde chegara o rumor da horrente catástrofe, partiram homens audaciosos, movidos pela curiosidade para observarem com os seus olhos os despojos que restavam; alguns não voltaram mais aos seus lares, porque iam engrossando uma onda dos revoltados contra tamanha traição. Os que regressavam espavoridos contavam o assombro que lhes causara o ver uma ampla campina coberta de cadáveres incompletamente carbonizados, em volta dos quais uivavam lobos em numerosas alcateias, e aguias e abutres que esvoaçavam em bando sobre a vasta presa, cujo fétido os atraíra de longe. As calmas estivais tornavam-se mais intensas, apressando a putrefação de tantos cadáveres; as fortes nortadas levavam até muito longe os miasmas, e numa e noutra cidade da Lusitânia apareciam ameaços aterradores da peste. Era a perspetiva de uma mais horrível devastação, porque se não via o látego mortífero que flagelava os povos. Um pensamento de piedade pelos mortos ocorreu suscitado pelas calamidades:

— É certo que esses corpos insepultos reclamam dos vivos o cumprimento de um dever sagrado! Em quanto lhes não dermos sepultura condigna, as suas almas andarão errantes perante nós, perturbando-nos, perseguindo-nos até acordarmos do nosso desdém egoísta. Carecemos para própria segurança de lhes darmos sepultura segundo o pátrio e antigo costume, quando se encontra um morto num ermo ou numa encruzilhada. Que cada cidade, vilar ou aldeia, faça suas peregrinações ao campo da matança, e seguindo a tradição da piedade, cada um arroje uma pedra para cima dos cadáveres até que se formem Montes Gáudios, que serão os túmulos venerandos dos nossos desventurados conterrâneos.

Segundo aquele costume, vogou de cidade em cidade a ideia da fúnebre peregrinação, e não eram ainda bem passadas duas luas quando por toda a Lusitânia se operara um movimento que ligava todas as povoações no mesmo afeto. Os mortos podiam agora mais de que os vivos, porque por via deles se uniam tribos até aquele dia inconciliáveis, que iam visitar o campo da matança e lançar suas pedras para erguerem bem alto os Montes Gáudios, que deviam tornar-se não um simples monumento funerário, mas uma como torre de protesto e de eterna revolta. Muitos povos dispersos nas regiões de entre Durio e Minio, entre o Durio e o Tagus e mesmo os que se achavam para lá da banda de Traz dos Montes, desde a foz do Anas até ao Mar Cantábrico, aderiram à desolação dos Lusitanos, e mandaram também peregrinações ao campo da matança para que os Montes Gáudios atestassem aos vindouros que eles se consideravam formando parte deste valente e ativo povo ribeirinho que dos seus portos de Lez e das suas bem trabalhadas Lezírias tomara o nome nacional de Lusitânia. O eco da grande catástrofe produzida pela perfídia impune de Galba chegara igualmente aos confins dos territórios dos Asturios e Celtiberos. Os Povos denominados Carpetanos, os Vetões, os Vaceos e Calaicos, que sempre se tinham conservado afastados para o norte da Hispânia esperando constituir uma Confederação e unidade política sob o nome de Calaecia, agora sentiam-se dominados pela insondável fatalidade que arrastara os destemidos e independentes Lusitanos à maior das ruinas; eles vieram em magotes ver de perto a horrorosa mortandade, e arrojar piedosamente mais pedras para os Montes Gáudios. Esses túmulos cresciam, como atestando ao mundo, que eram inúmeros os corações que pulsavam por inultos mortos, e que os mesmos braços que arrojaram aquelas pedras, serão os mesmos que arremessarão as suas lanças e brandirão as pesadas lorigas contra o fautor da execranda iniquidade.

Assim se foram formando bandos e numerosas guerrilhas, imperfeitamente armadas, que clamavam por vingança; e vendo que muitas cidades aliadas dos Romanos, e outras por temor ou covardia, não tinham vindo celebrar a cerimónia dos Montes Gáudios, foi contra elas que arremeteram na sua anciã de vindicta. Passavam já de dez mil os Lusitanos que se juntaram em diferentes guerrilhas, entregues à aventura e audácia de destemidos Cabecilhas, que foram descendo para o sul da Península, devastando e roubando quantos povos encontravam que estavam no gozo do patronato romano. Chegaram até à Turdetânia, essa opulenta região banhada pelo Bétis, tendo por limite da parte do norte o curso do Anas; e levaram a sua audácia até ao ponto de atacarem a importante fortaleza de Gades, ou Gadir, como lhe chamaram os Fenícios. Não era sem razão que os viajantes fenícios, gregos e romanos diziam que os Lusitanos eram o povo mais numeroso e valente entre as nações de toda a Ibéria.

CAPÍTULO VI

A Hispânia Ulterior estava quase completamente incorreta. Passavam de dez mil os Lusitanos revoltados contra o poder de Roma, e que juraram sacudir o infame jugo. No seu Conselho armado decidira-se, que todo aquele que pudesse sustentar-se a cavalo, embora velho ou doente, se apresentasse para o combate; mesmo as crianças que pudessem alevantar um chuço ficavam obrigadas a incorporar-se nas turmas e milícias de cada terra.

Era o começo de ano estival, e na entrada de Maio, em que se faziam as danças e cantares debaixo do verde pinheiro, e em que os homens validos, os chefes de família, efetuavam as grandes paradas das suas forças defensivas. Parece que o juntamento daquela multidão enorme respirava um ar de festa, uma alegria comunicativa, em que a ideia de morrer pela liberdade da sua terra dava uma exaltação delirante; dir-se-ia que era a Primavera sagrada, em que novas colonias iam pelo mundo para fundarem uma outra cidade. Verdadeiramente era uma entrada em campanha, em que o costume vinha coadjuvar a necessidade. Viam-se homens da estatura meã, e enxutos de carnes, de cabelos pretos e olhos castanhos, ligeiros e ágeis, capazes de resistir a todas as intempéries, sofrendo todas as privações mas sempre alegres; traziam pendurados ao pescoço, por correias, pequenos escudos de tamanho de quatro palmos, e prezas à cinta umas compridas facas, a que se socorriam em lances decisivos, e ainda no combate pessoal. O braço era armado com uma lança comprida, com uma ponta de bronze e um gancho ao lado, servindo para ferir e prender aquele que topasse na frente. Apenas lhes defendia o corpo uma couraça de linho cru fortemente tecido, ou treu, sobre a qual assentava uma cota de malha tecida de arame, que nenhum dardo poderia atravessar. Capacetes de couro com tríplice cimeira cobriam-lhes as cabeças, aparando com segurança os golpes dos montantes; outros guerreiros traziam os cabelos compridos, como usam as mulheres, cingidos com nastro na cabeça, no momento das refregas; os peões apresentavam-se com cnémides, saiais negros, e chuços; outros com bragas forradas de pele de cabra, ou safões. E os Cavaleiros, montavam alazões e fouveiros, com estribos em forma de concha feitos de madeira; com mantos listrados formando quadrados variegados. Formavam grupos de três em três, a que davam outrora o nome de Trimarkisia, indo um dos Cavaleiros à frente no ataque, ficando mais atrás os outros dois para o defenderem e substituírem. Reinava uma certa ordem nessa multidão, dividida em catervas de infantes ou peões, com alguns Cavaleiros nas alas extremas: e os Hastários, os Sagitários, ou archeiros, os Fundibulários, moviam-se com uma ligeireza extrema, tomando os Cavaleiros como pontos de mira para se juntarem no sítio em que se tornava mais urgente a defesa ou o ataque. Os Carros, ou Covões armados de longos espetos, eram puxados a quatro cavalos, empregando-os para romperem a ordem da infantaria inimiga, e para servirem de parapeito e estacada defensiva detrás dos quais os archeiros arrojavam os seus dardos.

Foi no meio de uma ansiedade de luta, que entre as Catervas lusitanas correu a nova, de que já pisava terras de Hispânia o Cônsul Caio Vetílio, com tropas fortes e aguerridas; o Senado encarregara-o de reprimir o levantamento provocado pela infamíssima traição de Galba, que, deixando-o impune, tacitamente a aprovava. Vetílio chegou a Córdoba, onde assentara o seu quartel-general. Tudo se sabia no campo lusitano, porque não faltavam eculcas e mensageiros, que davam conta dos movimentos do velho Cônsul.

Em Córdoba ia Vetílio juntando todas as tropas romanas, que estavam como presidiarias, formando falanges com as que trouxera de Roma, e dando-lhes uma forte disciplina, que centuplicava a sua resistência. Não havia tempo a perder; a rapidez do ataque muitas vezes decide da sorte da campanha, e Vetílio como general experimentado compreendeu que tinha de lutar com tribos de uma resistência tenacíssima, que se deixavam matar, mas que não transigiam com a perda da liberdade da sua terra.

O território da Lusitânia, que se conservara submisso, fora, pela traição de Galba, agitado por uma insurreição tremenda; com a máxima rapidez e a marchas forçadas, o Cônsul Vetílio, no rigor do inverno, transpusera os Pireneus, vencendo dificuldades insuperáveis, e engrossando as novas Legiões com as tropas que nas províncias pacificadas estacionavam nos seus quarteis de inverno. Entrava na Hispânia Ulterior com um grande exército, maior do que aquele com que partira de Roma, e o êxito da empresa fora bem calculado-caindo de surpresa sobre as populações insurretas, e impelindo-as à defensiva, sem tréguas, sem lhes dar tempo para organizarem a resistência.

CAPÍTULO VII

Vetílio deu ordem para que o seu exército, de mais de dez mil homens saísse de Córdoba, e seguindo em massa compacta pela Turdetânia fosse ao encontro das tribos lusitanas; e fortificadas por uma severa disciplina, contava que as tropas lutariam com vantagem contra Catervas impetuosas, mas sem a coesão de um bom e seguro comando, nem a lucidez de um pensado plano estratégico.

E não se enganava. Ao segundo dia de marcha, Vetílio avistou ao longe, num vale imenso, grande número de Carros de guerra, e Cavaleiros, e por traz deles, negrejando, Catervas de peões, que pela direção que traziam, com certeza vinham sobre Córdoba com intenção de assediar o exército romano, aí na capital da Turdetânia. Era o instante oportuno.

Vetílio manda organizar em coluna todos os seus infantes: aos flancos os seus Carros, com os projéteis incendiários; a Cavalaria mais atrás, destinada a envolver as tribos lusitanas durante o ataque.

Desde que as tropas romanas foram avistadas pelos Lusitanos, um grito imenso como de alegria retumbou nos ares, como os renchilidos e apupos ou atruxos com que se distinguiam as várias povoações lusonias; e desse ruido escutava-se o eco de cantos, de hinos, que davam uma animação indescritível ao movimento dos combatentes. Vetílio contava com o entusiasmo dos Lusitanos no primeiro assalto, e reservou todas as suas forças para sustentar o peso desse primeiro ímpeto. E a carga dos peões lusitanos foi imponente, mesmo incomparável. Valeu-lhe ao Cônsul o sangue-frio que soube manter; e foi assim, que subitamente reconheceu, que o exército dos Lusitanos, tão numeroso como o seu, e que não constava de menos de dez mil homens, não tinha coesão entre si; faltava-lhe a disciplina, e mais do que isso pela ordem de combate descobriu que essa multidão compacta não tinha um general, que sustentasse inteligentemente o comando. O número extraordinário dos combatentes lusitanos complicava a sua própria segurança, pela falta de um chefe digno deste nome. Este relance de Vetílio bastou para abranger a situação, e no seu espirito entrou a segurança de que seria certa a vitória. E tirando partido da situação compreendeu que para vencer era a melhor condição empenhar-se numa batalha campal com todas as suas tropas; porque embora os Lusitanos aguerridos apresentassem um igual número, faltava-lhes o comando, o que tornava perigosa a sua situação em campo raso. As Legiões estavam então formadas com quatro mil infantes de linha, que se dividiam em trinta manípulos ou companhias, manobrando em campanha como a unidade tática de uma divisão moderna. E esses manípulos ou companhias, agrupavam-se em cortes ou batalhões, em número de dez.

Passado o primeiro ímpeto de uma carga destemida de lanças, que os soldados de Vetílio apararam rijamente nos seus escudos, o Cônsul aproveitou-se da tática aprendida nas guerras de Hispânia, e mandando-os formar em cunha rompeu as filas dividindo-as, mandando em seguida as suas quadrigas a toda a carreira sobre os flancos, para evitar que tornassem outra vez a reunir-se. Os Cavaleiros dispersos por entre a multidão desorientada, trucidavam incessantemente os que encontravam com um furor atónito, mal sabendo defender-se. A Legião romana mais uma vez, sob o comando de um hábil chefe, patenteava a importância da sua constituição estratégica. A luta prolongou-se com coragem da parte das tribos lusitanas, mas repentinamente elas reconheceram-se enfraquecidas, não por falta de valentia, nem de bravura, mas pela imprevidência com que entraram em campanha, sem um chefe que as dirigisse e tivesse firmemente disciplinado.

Toda a luta nestas condições era uma temeridade estulta, um inútil sacrifício. A batalha era agora insistentemente continuada por Vetílio; milhares de cadáveres cobriam o solo recalcado, e o Cônsul pensava já em aniquilar toda essa multidão lusitana que ainda resistia. O sol declinava; prestes viria a noite, e era de força que o triunfo de Roma ficasse definitivo. Os Lusitanos sem esperança, sentiam-se cansados; a fome e a sede alucinava-os até ao desespero, e cercados no vale em que tinham sido surpreendidos, só viam um único refugio para escaparem ao inevitável destroço — renderem-se!

Dentro do campo dos Lusitanos foram enviados a Vetílio quatro emissários, levando erguidos ao alto ramos de oliveira. O Cônsul consentiu que chegassem à sua presença, e que apresentassem a mensagem; um deles por nome Diálcon, falou:

— Vimos aqui pedir a suspensão do combate, e a paz, rendendo-nos em massa ao Poder de Roma!

O Cônsul mandou suspender as hostilidades; e perguntou com dureza aos emissários:

— Quem responde pela revolta contra a soberania de Roma?

— Nós todos, perdendo o direito de Povos livres; mas conservando somente a liberdade individual de cada lusitano.

— É muito! retorquiu-lhes o Cônsul.

— Se não quereis matar-nos, passando tudo à espada, só poderemos aceitar a vida com a liberdade individual que pedimos. E é isso bem pouco, diante do Poder de Roma; porque de hoje em diante podereis mandar-nos habitar o território que à grande e generosa Roma lhe aprouver conceder-nos. Aí em campos de concentração, nos conservaremos quietos e submissos no cumprimento de todas as imposições.

Parecia mais que falava um traidor do que um vencido; mas o escalavro das forças lusitanas era estupendo e tudo justificava. O Cônsul Vetílio, velho e astuto, determinou que os emissários se retirassem, voltando na madrugada para assignarem o pacto da rendição e submissão perpétua, incondicional e perentória, vindo acompanhados de reféns nobres, que pela sua vida ficariam responsáveis pela tranquilidade das tribos lusas. No resto da noite, Caio Vetílio ficou pensando nas consequências da sua incomparável vitória, no prestígio que teria em Roma, no imposto de guerra que cobraria das populações subjugadas, dos escravos que o acompanhariam na entrada triunfal na Cidade do Tibre! Os sonhos acordados são mais belos do que os que se tem dormindo, mas não são menos falaciosos.

CAPÍTULO VIII

Noite cerrada, quando os emissários chegaram ao acampamento lusitano. Eram esperados com trépida ansiedade. Traziam alçados os galhos de oliveira, denunciando de longe a concessão do armistício e no seguinte dia o assentamento da paz. Extenuadas de fadiga e famintas, as hostes ouviram sem espanto as condições prévias impostas pelo Cônsul Vetílio. Naquela angústia desesperada apagavam-se as energias morais, e era-lhes mesmo indiferente que a Lusitânia fosse livre ou escrava. E considerando a situação, trezentos lusitanos para três mil romanos patenteavam uma desproporcional desigualdade, que seria rematada loucura defrontarem-se as forças.

Quando os emissários acentuaram as palavras de Vetílio-submissão perpétua e incondicional, com garantia de reféns para a efetividade do pacto ouviu-se um rugido, como de uma fera que se vê subitamente preza. Esse rugido não articulado, que nem mesmo era imprecação, infundiu uma emoção terrifica e desconhecida. Olharam todos em volta da gente que se atropelava junto do Conselho armado, e viram um homem bastante novo, de menos de trinta anos, de estatura mediana, delgado, mas robusto e de aspeto decidido. Fez-se um silêncio inesperado, involuntário, porque aquele ímpeto de cólera fizera suspender qualquer resolução repentina e fatalmente covarde. O vulto pareceu crescer com a grandeza da comoção, e aproveitando o momento único, falou:

— Para ser escravo de Roma não são precisos tratados, nem reféns. Tudo isso é um ludíbrio. Todos nós sabemos como a grande e generosa Roma cumpre os seus tratados. Seremos nós tão estúpidos e indignos, que ainda depois da inolvidável traição de Servio Galba, e da sua impunidade, confiemos numa potência, que, não falando já das riquezas, nos rouba a nossa liberdade? E esse Cônsul, que está em campo aberto, com as suas Legiões contra nós, que outro intuito tem senão a opressão da desmembrada Lusitânia, e o ânimo exclusivo da rapinagem? Bem pouco tempo há decorrido sobre o estupendo morticínio, e já parece que ninguém aqui se lembra do juramento feito sobre os despojos dos clamorosos trucidados. O verbo do juramento foi- Vencer ou morrer! -Eu ainda não perdi a esperança de vencermos...

Um rumor irrepressível cortou a frase do rapaz, que suscitara latentes energias.

Ele continuou num tom firme e de crença comunicativa:

— Que loucura o confiar na fé dos Romanos! A trégua que nos concedem até amanhã é um torpe embuste; o Cônsul pançudo finge que nos outorga uma paz generosa, simula a assinatura de um pacto para conseguir por esse meio capcioso a entrega das armas pela nossa parte, e em seguida, como é de uso, extermina-nos em massa, porque não quererá ser menos do que Servio Sulpicio Galba. Tal é a sorte miseranda que vos espera a todos, se...

Diante desta suspensão intencional e sugestiva, muitas vozes soltas dos grupos interromperam-no:

— Que fazer? Que fazer?

— Resistir! — exclamou prontamente o rapaz, confiado e sorridente: Nada está perdido. Poderemos salvar-nos, e até mesmo...

— Fala! fala! Diz o que temos a fazer.

— Obedecer-me.

Ao ouvirem esta frase incisiva e simples, mas com uma vibração sobre-humana, que denunciava uma absoluta confiança em si, entreolharam-se todos abalados, hesitantes, como que interrogando, quem era e donde viera aquele homem audacioso. Ele prosseguiu:

— Compreendo a vossa desconfiança; não me conheceis de figura, nem mesmo esta estatura meã e magra se vos impõe, como o faria qualquer colosso. Mas, quem aqui se recordar do nome de Ouriato, daquele pastor que conseguiu escapar da carnificina de Galba; daquele que sabe o segredo de dar morte instantânea aos elefantes africanos; daquele que andou de cidade em cidade proclamando a insurreição, a guerra santa e a vindicta contra o invasor estrangeiro, contra a ocupação dos Romanos, que nos escravizam, reconhecerá que é um homem decidido que vos oferece a salvação e talvez a vitória.

— Ouriato! Ouriato! — romperam de todos os lados vozes de aclamação.

Este nome proferido naquele lance extremo de um exército prestes a entregar-se, reacendeu coragem nos ânimos abatidos; todos esperaram que Ouriato completasse o seu pensamento, dando-lhe num tácito assentimento a certeza da inteira obediência. O pastor falou:

— Desde os mais tenros anos, eu trabalho na deambulação dos gados, que vêm das regiões calmosas para a frescura dos dois Hermínios, e daqui dirigindo-os para os seus bostais na época das invernias. Neste serviço, em que se me tem confiado mais de vinte mil cabeças de gado, e porque soube sempre defende-lo dos perigos das barrocais, dos ursos e da pilhagem dos romanos, cheguei a ser Maioral, ou chefe da Mesta! Bem compreendereis que, embora novo, eu devo conhecer como as palmas das minhas mãos todos os territórios da nossa Lusitânia, os seus montes, os seus vales, covões, algares, cavernas profundas e passagens dos vãos das ribeiras e cachões dos caudalosos rios. É esse conhecimento o que neste momento me dá um poder único e inesperado.

— Obedeçamos a Ouriato! gritou a multidão entrevendo o plano de uma retirada hábil. — Obedeçamos-lhe cegamente!

Ouriato, fitando os principais chefes dos terços, que se tinham aproximado, expôs com simplicidade:

— Aqui em frente de nós, passado aquele outeiro, estende-se uma planura vasta, revestida de uma relva fina e variegada como um tapete, que dá vontade de retoiçar sobre ela! Ai de quem deixar aí entrar os rebanhos! Essa planura encantadora chama-se o Barrocal fundeiro. Todas as suas ravinas foram niveladas pelas neves do inverno, e sobre essa face lisa aos primeiros adoçamentos da temperatura, desabrochou com uma pasmosa vivacidade o nardo ou gervum, formando um espesso e cerrado tapete em que as raízes se entrelaçam rijamente! É um gosto deslisar sobre esse vistoso relvado, que exala um perfume estonteante; mas as neves vão-se derretendo por debaixo dele, e infiltrando-se pela terra mole e lodacenta; o tapete de verdura mantem-se então encobrindo todo o Barrocal, conservando uma aparente planura! Gado que ali pise rompe com o seu peso o tecido forte das raízes do gervum, e abisma-se pelas terras moles, donde não é possível arranca-lo. Pois bem! é para aí que eu conseguirei atrair o exército de Vetílio; há de ficar como o carrapato na lama.

O terror converteu-se em alegria, irrompendo uma gargalhada estrepitante. Então levantaram Ouriato sobre os ombros, alguns dos companheiros que com ele escaparam da carnificina de Galba; e à luz das fogueiras do arraial, ele fitou as catervas que contemplavam o pastor destemido. Brandindo no ar a foice roçadoira, que sempre o acompanhava, Ouriato proferiu:

— Eu juro, mais do que pela minha vida, pela liberdade desta nossa Lusitânia, que salvarei o exército, com tanto que me obedeçam, na execução do plano. Disso depende o êxito completo.

Cavaleiros, peões, fundibulários, todos sem reserva ergueram os braços destros para o ar, como símbolo sacramental, bradando uníssonos:

— Juramos obedecer-te! até à morte.

— Ouriato é o nosso chefe.

— Ouriato manda sobre nós todos; ninguém tem mais poder do que ele.

E colocando Ouriato sobre um grande escudo feito de coiro cru, quatro valentes hastários erguendo-o bem alto, levaram-no em redor do acampamento numa marcha solene, parando de vez em quando para gritarem:

— Ouriato é o nosso chefe!

— Ouriato manda sobre nós todos.

— Obedeçamos-lhe até à morte.

Á maneira que o nome de Ouriato ia ressoando na calada da noite, também na reminiscência da soldadesca se acordava a vaga relação com o nome glorioso de um valente lusitano, que em tempos não remotos acompanhando Aníbal, fora combater os romanos até à própria Itália. Esse ainda lembrado VIRIATO, que no seu odio contra Roma transpusera os Pirenéus e os Alpes, dizem que morrera na batalha de Canas; mas o seu odio não morreu, é redivivo. E por ventura não será Viriato o que agora reaparece na figura do Maioral da Mesta, do valente Ouriato? Como ele, é um salvador que ressurge, um vingador da liberdade da Lusitânia?

Este prestígio espalhou-se entre a soldadesca, influindo por modo absoluto na confiança do comando de Ouriato. E desde aquele momento os dois nomes identificaram-se, como sintetizando a missão do guerreiro que votava a sua vida à defesa da Lusitânia livre de todo o jugo estrangeiro. Enquanto levavam o novo general em triunfo, e as aclamações repercutiam por todo o acampamento lusitano, os chefes depostos conformaram-se pela necessidade da situação desesperada a tudo cumprirem. Acercaram-se do novo chefe, para receberem as particularidades do plano da cilada sob a forma aparente de retirada urgentíssima, logo ao primeiro alvor. Todas estas disposições foram organizadas aproveitando o costume dos generais romanos de suspenderem a marcha durante a noite.

As cortes lusas, enquanto aguardavam o momento de se moverem, cantavam em coro:

Aclamação de Viriato
Há setenta e dois anos
Que falta aos Lusitanos
Um braço que os defenda
Da escravidão horrenda!
Rumor incerto espalha,
Que morreu na batalha
Que se travou em Canas
Contra as Legiões romanas.
É rumor não exato;
Não morreu Viriato!
Porque o odio não morre,
E esse odio nos socorre.
Rejuvenesceu hoje!
Viriato nos arroje
À implacável guerra
Por esta livre Terra.
Salvador desejado,
Não debalde esperado,
Vencerão os seus tiranos
Por ti os Lusitanos.

CAPÍTULO IX

Aclamado chefe supremo, aceitou Ouriato desde esse momento o título de Viriato, que já não era um nome mas uma prestigiosa invocação, um grito de guerra, que dava confiança e energia ás almas. O que Viriato assentou no Conselho armado com os chefes dos terços e catervas, de essedários e trimarkisios, sobre o seu plano estratégico, patenteou-se daí a poucas horas nos pavorosos efeitos.

Rompia a madrugada. Vetílio, no seu acampamento, esperava os emissários lusitanos para efetuar-se a rendição e a deposição das armas.

Alvorecia-lhe um dia de glória: firmava de um modo estável o domínio de Roma na Hispânia Ulterior, e antegostava a entrada triunfal na Cidade eterna, ladeado de despojos riquíssimos e prisioneiros. O sol erguia-se, e Vetílio, estranhando a demora, entendeu tirar partido do caso inopinado, que justificaria todas as atrocidades que ordenasse contra as tropas que na véspera lhe tinham mandado pedir paz à custa da liberdade. Ordenou logo o formar o exército consular em ácies, ao qual passou a senha irrevogável:

— Sem tréguas, nem quartel.

O exército romano começou a mover-se e a avançar, e há pouco tempo de marcha Vetílio viu negrejar em frente - e estendidos - um esquadrão de Cavaleiros lusitanos, dispostos em ordem de batalha, e firmes sobre o terreno como se esperassem o assalto. O Cônsul olhou desdenhoso para o inimigo; não passariam de mil os Cavaleiros, que permaneciam impávidos, como a vedar-lhe o horizonte.

— Sem chefes! para que lhes serve a resistência? A vitória é minha.

E em seguida Vetílio deu ordem para que seguissem sempre para a frente as quatro Legiões do exército consular, abrindo caminho a Cavalaria, começando a batalha por uma carga contra a linha dos lusitanos.

Viriato, montado num cavalo branco, deixou aproximar até bem perto a Cavalaria romana, que vinha à desfilada; e a um sinal dado a linha cerrada dos seus mil companheiros dividiu-se em duas, debandando cada fragmento para seu lado, com uma rapidez de quem sabe trilhar por combros e ribanceiras. Notou Vetílio o facto com surpresa, vendo desaparecer os dois troços dos mil Cavaleiros, como se dispersam os bandos de estorninhos ou de pardais, cada qual como melhor e mais ligeiramente podia. Não teve tempo para reconhecer se aquilo seria covardia ou estratégia, porque pela fuga repentina dos Cavaleiros descobriu diante de si uma extensa e larga planura arrelvada, de uma verdura aveludada, e além no extremo dela o exército lusitano evoluções para dispor-se em ordem de batalha. Pareceu a Vetílio, que os mil Cavaleiros lhe fechavam o horizonte, para não serem bem conhecidas as forças lusitanas, ou para lhes dar tempo a escolherem um local em que melhor se defendessem; e sem pensar em dar caça aos fugitivos, deixou a Cavalaria seguir no seu ímpeto, e após ela as cortes das Legiões, que em carreira vertiginosa avançaram por sobre a verde planura, com o fito em esmagar por uma valente carga a infanteria lusa.

As tropas que seguiam mais atrás dos triários, os rorários, os acensi, os ferentários, estacaram horrorizadas, quando viram pela planura verde e extensa enterrarem-se os Cavaleiros, desaparecendo debaixo deles os cavalos, outros sumindo-se completamente, e os manípulos dos hastatos chafurdarem nos lodos que esguichavam do tapete da relva formosíssima! Caso nunca apontado nos anais militares de Roma. Ninguém conhecia um tão extraordinário fenómeno de terreno. A planura fora feita pelas neves do inverno, enchendo os medonhos barrocais; a superfície lisa era revestida pelas relvas espontâneas do gervum, cujas raízes entrelaçando-se resistentemente formavam uma crosta que simulava um solo que tremia, e sobre a qual podia passar sem perigo de romper-se um viandante. Foi isso o que enganou Vetílio: porque alguns guerrilheiros lusitanos corriam sobre certos pontos da patameira.

Viriato, conhecedor de todos aqueles acidentes do território, calculara bem, e fora melhor coadjuvado. Uma grande parte do exército romano estava anulada ou perdida, atolada nas terras moles, e nos barrancos ocultos debaixo da capa traiçoeira da verdura do gervum. A temerosa desgraça que ameaçara as tribos insurretas, invertera-se agora tornando irremediável a derrota das Legiões consulares.

O exército lusitano, prosseguindo no cumprimento do plano estratégico de Viriato, dirigiu-se para Tribola. Pelo menos toda a Cavalaria ligeira dos romanos ficou atolada nas lamas, e com ela a infanteria composta de besteiros ibéricos, germanos, gregos e asiáticos; e mesmo alguns Centúrios e Tribunos do comando das Legiões. Uma tremenda desgraça, impossível de prever, e por ser caso único e excecional, tanto mais inevitável até para um homem experimentado e cauto como Vetílio.

Pela retaguarda do exército consular reapareceram os mil Cavaleiros, soldúrios de Viriato, que tinham jurado acompanha-lo sempre em todos os transes, e que entendiam as suas ordens pelos silvos de uma buzina, como se usava na deambulação da Mesta. Viriato reconheceu pela obesidade o Cônsul Caio Vetílio, e ele mesmo pela sua mão o arrancou dos lamaçais em que tinha prendido o cavalo:

— Não me serves para escravo; és velho e pançudo. Ninguém dará por ti um sestércio.

E tocando-lhe com a foice roçadoira no ombro, continuou Viriato:

— Não te matarei, sem que te defendas.

Vetílio fitou atónito aquele homem magro e enxuto de carnes, e vendo que tudo para si estava acabado, atirou com a sua espada ao chão, renunciando como caricata a qualquer tentativa de defesa. Um dos soldúrios de Viriato atravessou o Cônsul com um dardo de lado a lado; mas em Roma referia-se que Vetílio morrera sim, mas ás mãos do próprio Viriato.

O exército consular, reconhecendo-se sem chefe, abandonou o campo e tratou de pôr-se a salvo. Em marchas forçadas, os seis mil legionários que escaparam dirigiram-se para uma cidade do litoral chamada Carpesso, na região da Tartessida. O Questor pretorial tratou de organizar-lhe a defesa, em roda da cidade fossos e trincheiras da terra revolvida, com receio do assalto do destemido cabecilha lusitano ás arcas do tesouro, ás bagagens, auxiliares e cavalos de remonta, que por irem no coice do exército não se encravaram na patameira.

CAPÍTULO X

Depois deste feito, em que o exército lusitano se viu salvo pela astucia e coragem de Viriato, a confiança no seu comando centuplicou-lhe as forças, seguro de que ele o conduzirá à vitória, e só ele saberá sustentar a independência da Lusitânia. Uma coisa veio acordar o ressurgimento do acabrunhado povo, o ímpeto que suscitava esta incomparável vitória da astucia sobre a força bruta.

Quando Vetílio foi agarrado por Viriato, os lictores que acompanhavam o Cônsul com os feixes de varas peculiares da dignidade curul, entregaram-nas ao vencedor, como uma transferência do poder supremo. O Cabecilha mandou desamarrar os feixes de varas, e distribuiu-as pelos seus soldúrios, aos de maior confiança dos mil Cavaleiros que se lhe devotaram:

— Cada um de vós, irá por todos os Castros, Citânias e Hermínios, cravar no chão a vara do lictor, que eu entrego na fé celtibérica. Essa vara é o símbolo da guerra acesa e contínua; onde ela se hasteia chama os povos ás armas, e exige socorro aos que combatem. Tal é o poder da antiga tradição da nossa raça. E se a lança fincada no chão podia mais do que um grito de guerra, a vara do lictor arrancada ao poder do Cônsul romano há de alevantar todas as nossas tribos unindo-as numa só vontade, para repelirem o invasor do seu território.

Cem soldúrios partiram logo com as varas distribuídas dos feixes dos lictores, e foram crava-las nos hermínios e montes povoados, como um anuncio da inesperada vitória, e de que a guerra contra os Romanos seria agora incessante. Foi assim a noticia levada muito longe, e de longe vieram novos troços e viveres, para reforçarem e abastecerem os guerreiros lusitanos.

Ditalcon, um dos três companheiros que andam junto a Viriato, lembrou ao Cabecilha um sacrifício de cavalos e prisioneiros ao deus Neton.

Viriato com a sensatez, que era uma das suas forças, respondeu-lhe secamente:

— Não há tempo a perder; nem um inimigo como o romano se combate com festanças.

Ditalcon calou-se ao repelão do espirito prático do chefe.

CAPÍTULO XI

Em Roma tratava-se de organizar à pressa uma nova expedição à Lusitânia, para castigar os bárbaros que assim anulavam o prestígio das suas armas. Já apontavam como general o destemido Caio Plâncio. Recrutou-se à pressa Cavaleiros e infantes, dos mais válidos e experimentados das campanhas na Africa.

No entanto reina um vago terror; em Carpesso está fechado o resto do exército destroçado de Vetílio. Se o Questor pretorial terá sabido manter o comando, e salva-lo da audácia de Viriato! Nada se sabe em Roma.

É certo que o Questor pretorial procedeu com tino, exigindo dos povos aliados de Roma a contribuição de homens de armas, para reforçar o exército romano e fazer frente ao cabecilha. Conhecia os ódios instintivos que havia entre os Iberos e os Lusitanos, e aproveitando essa antinomia, mandou emissários ás cidades celtibéricas dos Titos e dos Belos, para que, pelo dever da aliança, lhe enviassem um reforço de cinco mil homens, e sem perda de tempo. O caso urgia-o, porque Viriato, obedecendo ao inveterado odio, que tornava irreconciliáveis as duas raças, em vez de pôr assedio a Carpesso, estendeu-se em correrias pela região da Carpetânia, habitada pelos mais poderosos e ricos dos povos celtibéricos.

Toda essa região fertilizada pelas nascentes do Tagus e do Anas estava já em poder do Caudilho lusitano; e quase sem combate ocupou a cidade de Toletum, a opulenta capital, em que assentou o seu quartel e governo.

A cidade, reconhecendo o heroísmo com que evitara o morticínio dos seus habitantes e a rapina da soldadesca, celebrou festas públicas, de jogos génicos, danças e cantares.

Prolongavam-se os festejos na cidade, quando vieram dizer a Viriato, que não longe passavam tropas, vindas dos lados do Ebro, que se dirigiam para o sul da Betica. O general compreendeu logo:

— Do lado do Ebro? É gente que vem das faldas do monte Idobeda. São celtiberos, aliados dos Romanos.

Deu ordem a Tântalo que fosse fazer um reconhecimento; e no entretanto organizou as suas forças para ir-lhes ao encontro.

Eram efetivamente soldúrios e embates das povoações celtibéricas dos Titos e dos Belos; foram reconhecidos pelos seus trajos, de safões ou anaxírides, e apertados com cintos, que prendiam em volta do corpo os sagos, tingidos com a cor roxa com que Roma veio a distinguir os seus escravos. Marchavam descuidados pisando as planuras da Carpetânia, seguros de que transpunham um território amigo, do mesmo sangue celtibérico. No seu reconhecimento Tântalo não fora visto, e por isso sabendo Viriato que esses aliados dos Romanos pouco passariam de cinco mil combatentes, saiu-lhes ao encontro com uma presteza inaudita, surpreendendo-os num matagal de zimbro e giestas, em que os cercou lançando o fogo em redor, e matando à espada todos os que intentavam romper o cerco. Não escapou um só desses aliados de Roma; e como não houve quem levasse a Carpesso a desastrosa notícia da matança, o Questor mais angustiado se viu com a tardança dos socorros, acreditando que os Titos e os Belos se teriam revoltado a favor de Viriato.

O fogo da vastíssima queimada destruíra todos aqueles cadáveres; Viriato, aproveitando a mobilização dos seus guerrilheiros, e para se precaver contra a nova campanha que Roma estava organizando, dirigiu-se para o país dos Vetões, que confinavam ao sul dos povos Lusitanos, para confedera-lo na defesa da sua autonomia contra o invasor estrangeiro. Compreenderam o perigo, e celebraram o pacto de aliança defensiva. Desse país montanhoso dirigiu-se para o território dos Vaceos, que o Durius atravessa. Já pela sua capital Palância, pelas cidades de Cauca, Septimanca e Rauda corria uma voz misteriosa, em que o povo acreditava, que se levantaria um filho de Lusonia para recuperar a liberdade da terra invadida e roubada pelos Romanos. Contava-se que o maravilhoso herói aparecia nas batalhas montado num cavalo branco, e que a vitória era sempre sua. Viriato convocou os homens bons das cidades, narrou-lhes a derrota do exército do Cônsul Vetílio, e, como o sangue dos Lusitanos da infame traição de Galba fora duramente vingado; contou-lhes como assentara o seu arraial em Toletum, e como aniquilara os cinco mil soldúrios que os Titos e os Belos mandavam a Carpesso socorrer o exército romano, que ali se acolhera destroçado. Contava pois com a cooperação dos Vetões e dos Vaceos, para a grande empresa de repelir do solo da Pátria o sangrento e espoliador estrangeiro.

Catão o antigo, e Tibério Gracho bateram as tribos celtibéricas, e Servio Galba mentiu à fé dos Lusitanos, porque na Península não aparecera até então um general, que pudesse dar coesão a tantas forças dispersas.

Viriato foi compreendido, e jurada a aliança defensiva, marcando os Vetões e os Vaceos o prazo irrevogável em que apresentariam as suas forças em Toletum.

CAPÍTULO XII

Lembrado da sua vida de pastor, quando na deambulação dos gados do sul para o norte, fugindo ás calmas, Viriato dirigia a Mesta e sabia os recessos onde defende-lo, ocorreu-lhe à memória um campo entrincheirado numa extensa planície em que corre o rio Pavia, formado de terra recalcada, resistente e quase petrificada. Quantas vezes nesse asilo formado pelas gerações passadas, aí estiveram seguros milhares de rebanhos e manadas, quando algum perigo se arreceava! O Cabecilha quis ver outra vez esse vasto recinto de fortes muros de adobe, considerando que na luta em que se achava empenhada a sorte da Lusitânia, por ventura lhe seria necessário conhecer os seus recursos estratégicos.

Conhecedor de todas as veredas e atalhos, fácil foi-lhe encurtar distancias, e em poucos dias de jornada, ele e os tais companheiros chegaram ao vale do Pavia, fechado na sua vastidão por pinheirais cerrados de um verde-escuro que contrastava com a claridade do horizonte. De longe ainda avistaram a vasta chã, contornada pelas muralhas de terra em forma de um polígono octogonal irregular, e uma altura de setenta e cinco palmos nos seus muros e aterros. Eram outo muros, tendo para mais de cento e quarenta palmos de espessura, fechando um circuito de mais de três a quatro mil passos; um largo fosso o circunvalava exteriormente.

Ao avançar para a grande muralha daquela fortaleza de terra, Viriato parecia cada vez mais pensativo; um plano estratégico lhe fulgurou na mente:

— Ah! que se eu conseguisse encurralar no Poço da Cava um general romano com os seus Legionários todos. Eu lhe converteria o reduto defensivo em ratoeira!

E descendo das alturas da Esculca por um declive suave, entrou Viriato na grandiosa Cava, que era como um enorme circo, dez vezes maior que o de Roma. Aí, no angulo das duas faces do quadrante noroeste via-se um pequeno charco de água nascente, que se tornava numa lagoa com as águas das invernias. Os gados e pastores ali bebiam e se banhavam, pelas fortes calmas; era uma vantagem inapreciável, sempre aproveitada pelos homens da Mesta. Cabia uma cidade dentro dessas muralhas.

Viriato esteve considerando por longo tempo este fundo do vale, regado por duas ribeiras, abrigado por montes e colinas de um pendor brando.

— Quantas vezes do cimo da Esculca vigiei, olhando para longe, na defesa dos rebanhos. Como esta Cava, conheço uma outra da mesma configuração aonde me acolhi muitas vezes. Não está aqui ninguém que me tenha acompanhado na transmutação dos gados e recolhido na Cava da Beira, quem vem de Belmonte ao Fundão, por entre essas serras dos Hermínios e da Gardunha! Nada fica a dever a esta; mas como refugio desesperado nada há que iguale a Cava da Beira, um circunvalo inexpugnável! Pôde-se aí dormir no chão, tendo as estrelas do céu por cobertor; lá o sono é mais agradável que sobre as fofas lãs da Salacia.

Contando com a presteza das armas romanas, Viriato regressou a Toletum para passar revista ao exército engrandecido pelos contingentes dos novos aliados, e marchar em seguida para a Carpetânia; era para aí que lhe convinha atrair o general romano.

CAPÍTULO XIII

As varas consulares espalhadas por todas as tribos, gentes e federações da Hispânia Ulterior, anunciando a vitória sobre Caio Vetílio, e a necessidade de sustentar a guerra contra os Romanos, produziram um efeito surpreendente em todos os espíritos, sobretudo nos Chefes das Beetrias, ou Cidades confederadas, que até ali se tinham conservado indiferentes nos seus castelos roqueiros, sem confiança no levantamento do povo, por falta de um comandante prestigioso. E enquanto esses chefes das várias Contrebias se entregavam à caça do javali ou do urso, em lutas de mútuas rivalidades, ou se banqueteavam opulentamente, os Pretores romanos iam estendendo a rede das estradas militares, conquistando ou destruindo Cidades, e firmando o seu poder inabalável. As varas dos lictores espetadas por todos os montes e pequenos hermínios, acordaram o sentimento vivo da independência nacional.

As tribos lusitanas tinham estabelecido as suas cidades, vilares e casais em volta de diversas montanhas, que eram como o centro da área de defesa, e o refúgio nos assaltos da guerra inimiga. Essas montanhas eram cercadas de muralhas formadas por grandiosos blocos graníticos, e escavadas em fundos subterrâneos, em que se depositavam cereais e comestíveis, e com cisternas para guardar as águas pluviais, tendo além disso um escadório interior e reservado que dava escapula a grande distância, em geral à beira de um rio, para o caso de ser tomada a fortaleza. Ali é que residia o presidente ou chefe das tribos que viviam em volta do Castro; e pela contagem de todas as famílias formavam uma população de mais de dez mil indivíduos. Era a esse conjunto, que se dava o nome de Contrebia; os seus chefes ou regedores, eram designados como régulos e duces pelos romanos, que comparavam estes agrupamentos lusitanos com as fratrias gregas. Como não havia ordem de sucessão neste poder presidencial, resultavam conflitos e rixas, que se mantinham por ódios de famílias, e até de tribos que se hostilizavam, aproveitando do enfraquecimento destas dissidências o invasor romano.

Agora parecia, que uma inteligência da missão dos Castelãos se revelara subitamente com o conhecimento da derrota de Vetílio; e as tribos, suscitadas pela vista das varas dos lictores, reclamavam que saíssem da inação; que prestassem o seu apoio ao extraordinário Cabecilha, o vingador da matança de Galba. Constava que Viriato, depois da sua vitória recolhera-se à cidade de Toletum, preparando-se para novo combate ao Pretor que em breve chegaria de Roma com aguerrido exército; resolveram todos esses chefes dirigirem-se a Toletum, levando ao pescoço os seus colares de ouro, como a insígnia do poder senhorial; os seus braceletes, e lanças de prata com que presidiam aos sacrifícios, e ao tribunal em que arbitravam sentenças sobre a vida e bens dos seus clientes ou embates. Partiram de todos os principais cantões da Lusitânia esses chefes acompanhados dos seus soldúrios, ou guarda-costas valentões, para conhecerem Viriato e lhe falarem deliberadamente sobre a defesa e independência do Território pátrio.

Quando chegaram a Toletum, ainda Viriato estava ausente, numa exploração do território em que uma grandiosa Cava se prestava a imprevistos planos estratégicos, a que em futuro próximo teria de recorrer. Mas esses optimates cantonais foram encontrar na cidade a que se acolhera o exército um grupo de homens, a que davam o nome honorífico de Anciãos, EN, e cuja palavra era inspirada e eloquente, por isso nas velhas línguas britânicas se exprimia por Deirim. O povo, pelo costume antigo, chamava Endre a cada um desses homens, a quem acatavam como depositários de um maravilhoso poder espiritual. E de facto os Endres eram propriamente os Antigos das tribos, os que conservavam a norma e sentido moral ou histórico dos costumes; não formavam um corpo sacerdotal, nem mantinham a estabilidade de qualquer dogma teológico, mas possuíam um saber do passado, que os tornava oráculos vivos, conselheiros em todos os momentos arriscados, e conciliadores nas lutas intestinas e separatistas das várias tribos. Os Endres eram queridos do povo; despidos de toda a hipocrisia de classe e de ódios doutrinários dos sacerdócios, mofavam com o seu bom senso dos ritos e dogmas dos Druidas das Gálias, que eles desprezavam como macaqueadores das normas cultuais da religião oriental dos Mobeds de Mithra, que se propagava pela Europa. O carater e ascendente moral dos Endres estabelecia-se espontaneamente, quando o povo reconhecia num Ancião das tribos o bom conselho, o saber prático da vida, e o conhecimento das Tradições do passado; era então considerado como único e como inspirado. Apontavam-se na Lusitânia numerosos Endres, venerandos pela sua idade e saber: uns conservavam de memória as Runas, ou propriamente as tradições locais e da raça, e tendo na mão o ramo da Azinheira coberto de landras, presidiam ao sorteio anual das terras, evitando prudencialmente todos os conflitos; outros sabiam as Sagas, ou narrativas históricas, as Aravengas, que recitavam nos banquetes dos regedores cantonais e nas festas consagradas a perpetuar sucessos memoráveis das tribos; outros conheciam as Sentenças da moral gnómica, Singvan, os aforismos ou ditados, que exercem justa autoridade nas resoluções da vida, porque condensam em breves frases, ás vezes num só verso, a experiencia de seculos; outros interpretavam o sentido dos velhos Símbolos, resolviam os mais intrincados Enigmas, e penetravam a matéria numérica dos Quadrados mágicos. De todos esses Endres destacava-se um, pelo saber maravilhoso reunido na sua mente incomparável; conhecia as mais vetustas tradições da terra da Lusitânia, quando ela ainda se estendia até à falda ocidental dos Pirenéus, as terras de Lez, que as convulsões do tempo foram tornando cada vez mais ribeirinhas; só ele recitava Poemas de mais de seis mil anos de antiguidade; conhecia as cavernas e arcas cavadas nas rochas em que estavam ocultos tesouros; e o que mais assombrava, tinha o segredo da leitura dos Quadrados mágicos e dos Bastões rúnicos, que lhe davam uma fé inabalável na independência e missão vindoura da Lusitânia. Esse Endre chamava-se Idevor, e quando passava pelos povoados saudavam-no com o título de Sanctum Anderu, e davam-lhe coroas feitas de ramos de azinheira. Pela sua paixão pelas antiguidades e liberdade da Lusitânia se justifica o regozijo que no seu espirito provocou o aparecimento de Viriato! Como a derrota por ele infligida ao Cônsul Vetílio o encheu de fervorosas esperanças! Idevor apresentou-se em Toletum com Endres de varias terras, e pelas conversas que entre si tiveram, fácil lhes foi apurarem um conhecimento completo da personalidade do pastor Ouriato, que o povo aclamava agora pelo título de Viriato. E vendo a chegada dos chefes das Contrebias, resolveram ir ao encontro deles, e dirigi-lo no intuito de prestarem todo o auxílio ao destemido cabecilha.

CAPÍTULO XIV

Toletum estava em festa; pela presença desses homens ornados de colares de ouro e braceletes, e acompanhados de numerosos séquitos de soldúrios e embates. O pequeno grupo dos Endres levando à sua frente o venerando Idevor saiu a saudá-lo à entrada da cidade, e juntos todos foram tomar a refeição ou consoada e libar grandes covilhetes de cerveja. à mesa um dos castelões, Leucon, chefe de tribos celtibéricas, lançou a frase:

— Dizem que Viriato, o vencedor de Vetílio, é um simples pastor da Serra, que apascenta gado alheio lá no Herminio maior, que separa as duas Beiras?

Idevor percebeu uma vaga intenção de amesquinhar a capacidade militar do vingador dos morticínios de Galba, e com a clareza de uma consciência pura, que de tudo se informara, respondeu:

— Eu conheço a vida desse valente pastor, desde o tempo em que o seu nome era simplesmente Ouriato. Quantos aqui possuem gados, sabem qual é o valor de um homem a cuja guarda se confiam para mais de vinte mil cabeças de variados rebanhos, que ele tem de defender através das marchas da deambulação, quando são levados das terras secas, sem prados e abrasadas pelas calmas, para as pradarias de serras cheias de barrancos, de ursos e lobos e mesmo de salteadores. Este serviço dos gados na sua transmutação está organizado na instituição da Mesta, que dirige a juncão dos gados de todos os proprietários; e neste serviço só chegam a Maiorais aqueles rapazes que revelaram qualidades singulares de inteligência, coragem, ardil, e que pela valentia ou astucia souberam salvar os rebanhos de perigos ou assaltos repentinos. Ouriato chegou a Maioral da Mesta numa idade quase de adolescente; foi nesse serviço violento da deambulação dos gados, e responsabilidade de tantos valores, que ele provou além da valentia e disciplina, as qualidades mais intemeratas de carater. É verdadeiramente um homem: e, pela resistência ao sofrimento e ás contrariedades da sorte, é o tipo dos lusitanos. O que insurrecionou a sua alma contra os Romanos foi o ter assistido à mortandade iniqua de trinta mil lusitanos ordenada por Galba, de que escapou maravilhosamente; e hoje o seu poder sobre o exército provém-lhe de o ter salvado da rendição já combinada, e de no barrocal da patameira ter destruído quase metade do exército romano, desmoralizado pela morte do Cônsul Vetílio. Este homem é perante o povo uma reaparição desse Viriato, que os romanos chamavam o Príncipe da Lusitânia, e que indo combate-lo à Itália, sucumbiu na famosa batalha de Canas. Esta auréola maravilhosa é também uma força, e com ela podemos contar, porque Viriato será o libertador da Lusitânia. Temos um general consumado; o povo acode ao seu chamamento, falta só o apoio dos chefes das Contrebias.

A ameaça das represálias romanas fez compreender a todos esses presidentes das cidades federadas, que tinham de dar o seu apoio a Viriato como recurso da própria segurança:

«Que seja entregue a Viriato o Colar de ouro como insígnia do poder, e para que lhe obedeçamos como nosso igual.»

Foi geral o assentimento. Então Idevor, erguendo-se com um majestoso aspeto, disse:

— Eu sei onde pára oculta uma Viria, que atesta essa época em que todos os Estados da Lusitânia estavam ainda unidos. É um Colar de ouro de três Crescentes! Representa a mútua solidariedade de raça, costumes e Governo da Calaecia, da Betica em volta da Lusonia! Eu só guardava o segredo desse tesouro incomparável, muitas vezes receando que ele se extinguisse com a minha vida! Felizmente que se ergueu um homem, que pelos seus feitos os outros julgam digno de receber a Viria! O Colar dos três Crescentes está oculto numa caverna do Herminio maior, desde o tempo das invasões da Hispânia pelas hordas orientais. Pouca gente terá pisado as veredas que conduzem ás Cavernas lindíssimas do Cântaro Magro; mas no Covão do Boi, ao sul do Cântaro raso, existem umas ruinas ou Catacumba descoberta, com menhires e potentes monólitos sobrepostos; do fundo da rocha donde se avista o bojo do Covão Magro com o singular especto de uma enorme carranca, é aí que está escavada na rocha uma Arca ou caixa em que se contém o Colar de ouro dos três Crescentes. Eu me presto a ir boca-lo, e dentro em poucos dias aqui estarei de volta.

A revelação de Idevor foi recebida com aclamações de assombro; e os chefes das Contrebias, pedindo-lhe que fosse buscar o tesouro da raça, bradaram:

— Seja dado a Viriato o Colar de ouro dos três Crescentes.

Carros com pipas de cerveja passavam pelas ruas, e tabuleiros com fartes de farinha de bolota à cabeça de mulheres com arrecadas de ouro nas orelhas e grossas contas de âmbar em volta de pescoço; formava-se o arraial para a entrada de Viriato.

CAPÍTULO XV

A chegada de Idevor a Toletum com a Viria dos três Crescentes de ouro, de que até então se falara como fabula ou tradição confusa, coincidiu com o regresso de Viriato seguido da numerosa cavalgada dos seus Soldúrios, que o foram esperar ao caminho, e dos três companheiros que lhe formavam a trimarkisia, Ditálcon, Andaca e Minouro. Estes três bravos eram do pequeno número dos sobreviventes da mortandade de Galba, e pela tremenda desgraça se achavam ligados ao ágil pastor que matara os dez elefantes africanos, e com ele andaram pelas cidades da Lusitânia insurrecionando os povos contra a devastação de Roma; vinculava-os uma decidida dedicação aquele em quem reconheciam espontaneamente o máximo ascendente moral. Ditálcon era o mais velho, inteligente e refletido, capaz de desempenhar missões difíceis; Andaca, jovens e fantasioso, mostrava-se repentinamente entusiasta ou desalentado, segundo as pessoas com quem tratava; Minouro, tinha algumas qualidades destes dois companheiros; mas predominava nele a solércia, ou antes a falta de franqueza no carater. A vitória e a aclamação de Viriato ligou-os mais intimamente ao chefe reconhecido, de quem não tinham inveja. Quando eles viram Idevor e o tríplice Colar, disseram entre si:

— Para o Príncipe da Lusitânia.

Viriato fitou-os com secura, e abaixou os olhos desdenhoso, com o desgosto de que alguém suspeitasse que combatia por outra ambição que não fosse a liberdade da nossa Terra.

Os Chefes das Contrebias, avistando Viriato, caminharam ao seu encontro, saudando-o com gritos de alegria, e erguendo ao ar as suas lanças de prata, com que presidiam ao sorteio das terras, e à entrega dos gados da sua região aos Chefes da Mesta, e mesmo aos tribunais à sombra da carvalheira, onde davam as sentenças. E eles próprios, vendo o sábio Idevor junto de Viriato com o Colar de ouro na mão, bradaram com entusiasmo:

— Lançai-lhe ao pescoço a Viria do Comando, aqui, agora, antes de entrar na cidade.

Idevor obedeceu com júbilo, e lançou-lhe o Colar de ouro. Disse um dos chefes das Contrebias:

— Agora, dignificado com a Viria, é que Ouriato ficará para sempre sendo o nosso Viriato.

Idevor, que conhecia as mais antigas tradições da raça, acudiu com ar misterioso:

— Se procurarmos o sentido místico que se contém no nome de Viriato, vamos encontrar na palavra cítica Vrindus, que designa o Touro, o totem da nossa antiga raça e civilização dos Ligures, a relação com a valentia do herói e a sua missão religiosa do combate libertador.

Assim conversando, a brilhante Cavalgada entrou em Toletum, dirigindo-se ao terreiro da cidade em que estava ereta a coluna denominada Pilunos, que simboliza a independência da comuna ou Município. Foi aí, que antes de destroçarem, pediram a Idevor, para que recitasse a Saga ou narrativa tradicional que se dizia existir da Viria ou Colar de ouro dos três Crescentes.

Idevor não se fez rogado, e começou numa recitação quase melódica o poema em que era celebrado este Símbolo da Confederação primitiva dos estados da Lusonia, antes de um invasor oriental ter penetrado na Hispânia, explorando-lhe as riquezas, e dissolvendo-a pelo espirito separatista com que enfraquecera a raça. Como os Aédos de Helade, diante das tribos dóricas, eólias e acheanas, Idevor unificava idealmente as tribos lusas recitando o poema de:

CRISAOR
Do Herminio Maior na imensa altura
Vê-se o Corgo das Mós, que as nuvens fura,
Formado por três grupos de rochedos,
Como irmãos que se apoiam firmes, quietos!
Sobre o do centro, como em pedestal,
Bloco estupendo, grandioso assenta;
De um Gigante a cabeça representa,
De longe contornando no horizonte
Negro perfil de misteriosa cara.
Das convulsões da Natureza ativa,
No calor de uma luta primitiva,
São tais blocos relevos manifestos:
Mas há quem reconheça nesses restos,
No bloco e nos três grupos de rochedos,
Da Lusonia antiquíssimos segredos:
Governou esta terra um patriarca,
Théron, desde o norte ao sul a abarca,
E aos estrangeiros a fecha.
A seus três filhos este Estado deixa:
— Se a terra de Lusonia dividida
For entre vós, por certo enfraquecida
Fica exposta ao assalto do estrangeiro,
Da Africa, ou levantino aventureiro.
Mas se a Lusonia unida se conserva,
Não entra aqui indómita caterva;
E grande, desde o Sacro Promontório
Até ao mar Cantábrico, este império
Que vai dos Pireneus até à vertente,
Será da Hispânia o estado mais potente. —
Do mundo era por toda a redondeza
Théron, por causa da sem igual riqueza,
De Crisaor por nome conhecido.
Pelo peso da idade amortecido,
Chama os três filhos; vieram reverentes,
E um áureo Colar de três Crescentes
Lhes entregou, no seu momento extremo:
— Dou-vos a insígnia do Poder supremo.
Os três Crescentes deste áureo Colar,
Pela crença da religião lunar,
As três fases da Lua simboliza.
São a Lusonia integra, indivisa,
Abrangendo a Tartésside virente,
Tarraconia, e Calaecia, a mesma gente!
Ah, se partirdes este Colar de ouro,
Cai a soberania... escuro agouro.
E receando o temeroso evento
O velho Crisaor exala o alento.
Deram os três Irmãos ao pai amado
Nas Cavernas do Cântaro Delgado,
Sepultura em pirâmides alpinas,
Que têm o aspeto de um castelo em ruinas.
Perante o cadáver, na alta sepultura,
Entre si, cada um dos Irmãos jura
Não partir o Colar dos três Crescentes,
Mantendo unidas as lusa Gentes.
Em catacumba do Covão do Boi
O Colar de Ouro escondido foi,
Fixando, do local para lembrança,
Aquele donde a vista longe alcança
Sobre o Cântaro Magro ingente bojo
Que de bruta Carranca tem o antojo.
Resguardado na Arca de um fraguedo,
Os três Irmãos em mútuo segredo
Conservam da Lusonia, ora indivisa,
Do Poder soberano essa divisa.
Há entre os três Irmãos tanta harmonia,
Que sentindo o que cada um sentia,
Ou unidos no mesmo pensamento,
Realizam o acordo num momento,
Um longe, na Calaecia laboriosa,
Outro aquém na Tartésside formosa,
Ou já na Tarraconia grande e forte.
Quanta prosperidade desta sorte
De Lusonia engrandece os três Estados,
Rica de bens, dinheiros, e de gados!
Mas a faina do Mar fora esquecida,
Trocada pelas da agrícola vida!
Ah! daqui a catástrofe resulta,
Que a liberdade lusa atroz sepulta.
Quantos Povos invejam com insânia
Os viçosos Jardins da Basti Tânia,
E vêm pelos cantares dos Homerides
Buscar o Elísio e os Jardins Hespérides,
Crendo encontrar aqui o Velocino,
Que reconhecem ser gado bovino!
Aventureiros lá do mundo Asiano,
Arribaram ao porto Gaditano,
Afrontando do pélago o terror,
Para roubar o gado a Crisaor!
Héracles forte, o tírio, vinha à frente,
Doesta os três Irmãos, soberbamente,
Para um combate a corpo, singular.
Terrível o recontro, atroz o azar!
Caiu dos Três Irmãos o irmão mais velho,
Héracles o esmaga sob um joelho!
E a mesma dor, que a vida lhe arrebata
Aos outros dois Irmãos é a que os mata.
Desde então a Lusonia sem comando,
Viu-se roubada de estrangeiro bando,
Que a invade, a devasta e a governa,
Perdida a ideia da união fraterna!
A aspiração moral ficou intacta!
Do Colar de ouro nunca se desata
Nenhum dos Três magníficos Crescentes;
E à espera de outra Era e novas gentes,
Aguarda, ao fim do secular destroço,
Um bravo e audaz a quem cinja o pescoço.

O sábio Idevor, dominado por uma comoção profunda, interrompeu a recitação do Poema de Crisaor, que segundo a tradição contava milhares de anos de vetustade; e de facto os sucessos referidos narravam as primeiras invasões no território hispânico, que antecederam todos os documentos ou monumentos da história.

Os chefes das cidades confederadas aplaudiram com os seus renchilidos e vivas o recitador, o Endre sapiente; o velho, mostrando o Colar de ouro dos três Crescentes, avançou para junto de Viriato, e depois de fazer uma vénia solene lançou-lhe ao pescoço a Viria da tríplice soberania.

CAPÍTULO XVI

Enquanto os Cavaleiros decorados de Colares de ouro de um só Crescente rodeavam o novo Caudilho lusitano, começou a juntar-se muito povo pelo empenho de admirarem de perto o vingador, aquele que soubera infligir a formidanda derrota ao exército consular. E naturalmente aos gritos com que se saudavam as varias regiões autónomas:

— Viva a Calaecia! Viva a Tartésside!

Começavam-se a organizar danças peculiares dos montanhões e dos ribeirinhos, vistosas e com carater guerreiro, outras surpreendentes pela agilidade dos pés e dos saltos, com um sapateado rítmico, ululando frases que tornavam mais delirante o entusiasmo. A dança mais querida era a propriamente armada, formando uma grande roda ou circulo girando ora sobre a direita, ora sobre a esquerda, por homens de mãos dadas, mas tendo cada um a lança, da qual lhe provinha o nome de Palotêo ou Paulitos, ora avançando, e já recuando ao compasso do canto de um coro gigantesco, terminando no cabo de todos os passos por um simulacro de batalha.

No fim do animado palotêo, apareceu um grupo de mocetonas gaditanas, formosas e desenvoltas, com braceletes ricos e armilhas nos braços e pernas, dançando à moda da Tartésside, e com os seus adufes, dando-lhe um aspeto religioso orgiástico, estonteante. Os Romanos, que vieram à Hispânia Ulterior, sentiram-se fascinados por estas danças das soalhas ou castanholas metálicas, e memoraram nos seus livros a Betica crusmata e a Tartessiaca aera, que tanto iria enlouquecer a mocidade dourada da Cidade eterna. Prosseguindo na sua dança foram as bailadeiras béticas aproximando-se do grupo em que estava Viriato, dirigindo-lhe em coro em forma de corranda:

A Canção da Viria
Onde há fontes de água pura,
Vamos a sede matar.
Onde há graça e formosura,
Vamos com paixão amar.
Onde há um bravo que vence,
Vamos-lhe a glória aclamar!
A Viriato pertence
De ouro o tríplice Colar!
Brilha nesses três Crescentes
Do sol fulgor singular:
Sigam os homens valentes
Esta nova luz polar.
Onde há ódios e vingança,
Vamos a sede matar!
Da Pátria livre a esperança
Vamos com paixão amar.
Siga o tríplice Colar
O que ser livre aspirar!

Terminadas as danças e cantares do vistoso arraial, os Chefes das Contrebias no meio de tanta alegria começaram a atirar pequenas moedas de prata ás rebatinhas, que o povo em chusma corria a apanhar, atropelando-se, em cambalhotas, em que cada um no meio de estrondosas risadas mostrava a maior agilidade e presteza. Essas moedas eram quase todas de valor de um dracma, e cunhadas nas cidades lusitanas como manifestação da sua autonomia. Viriato notou naquele espetáculo divertido, que as turmas do povo, ao agarrarem as moedas, miravam-nas no verso e anverso, e em seguida guardavam umas com sofreguidão, e arrojavam para longe com desdém as outras. Inquiriu do caso inesperado; foi então, que Idevor lhe explicou essa manifestação espontânea e significativa da alma popular, mostrando-lhe dois desses diferentes numismas de prata:

— Reparai nesta moeda: De um lado está cunhada uma cabeça viril, em cabelo; tem barba, e um colar ao pescoço. Do outro lado, vedes, um cavaleiro a galope, com a lança em riste! Agora a outra moeda: numa face está impressa uma coroa de carvalho, e no reverso figura um Colono conduzindo dois bois, como quem lavra a terra. O povo conhece esta diferença, e o que ela significa. Todas essas moedas do Cavaleiro da lança, são por antigo costume cunhadas em Cidades livres e autónomas, inscrevendo nelas o seu nome, como vereis em tantas que para aí se arrojam ás rebatinhas, como estas...

E Idevor foi mostrando ao acaso as moedas, e lendo os nomes de Toletum, Alva, Bilbilis, Segovia, Segobriga, Carissia-Celsa, Sactabis, Toriasum, Clunio, Gili, Italica, Saceli, Sagunto, Lastigi, Oca, Ilipla, Itvci.

E interrompendo o exame continuou:

— Roma emprega todos os meios para substituir estas moedas pelas do Colono conduzindo os bois, com que representa o seu domínio, pela coroa de carvalho, e a servidão dos povos submetidos como os bois ao arado, as quais faz circular nas suas cidades estipendiarias e municipais.

— Compreendo agora o sentimento do povo. Repele o jugo do estrangeiro, e só aceita o Cavaleiro da lança. É esse sentimento que me fortifica.

CAPÍTULO XVII

Os chefes das Contrebias, ao terminar das festas, saudaram um por um a Viriato, e lhe foram contando na mão cinco pequenas moedas de prata, daquelas que pouco antes tinham arrojado à multidão. Era a expressão simbólica do direito individual, numa sociedade que se regia pela comunidade das terras lavradas, das pastagens, e dos celeiros do clã para as colheitas agrícolas.

O território lusitano pertencia exclusivamente ás tribos ou gentes, sendo anualmente sorteadas pelas diversas famílias as geeiras que tinham de cultivar. Sobretudo nas margens fertilíssimas do Douro, e no cantão dos Vaceos, é que este comunismo tradicional se conservava na sua maior pureza. Com o tempo introduziu-se o costume de cada família conservar como próprio o terreno de cinco acres, ou agra em que estava a casa, o poço e a horta. Era o que o rifão popular alude ainda, quando para significar a indigência a exprime: «Sem eira, nem beira, nem ramo de figueira.»

Este terreno, que também na primitiva família romana tinha o nome de Haeredium, era o fundamento da estabilidade da família, e, sempre inalterável, era um vínculo ao qual se incorporava qualquer cercado em que se estabelecera um novo povoado. Para que esse solar se mantivesse sempre indiviso, a herança dos irmãos da mesma família fazia-se excluindo-os da propriedade da terra dando-lhes cinco moedas de prata.

Viriato compreendeu o sentido da oferta que lhe fizeram os chefes das Contrebias. Nos territórios da Lusitânia eles possuíam como seus próprios e individuais os solares dos Castros, Castrelos, Crôas e Môrros, Cabêços e Citânias, Penhas e Cidadelhes; e a entrega das cinco moedas de prata, significando a afirmação de independência solarenga no meio dos territórios comunais, neste momento representava o reconhecimento de uma suprema chefatura. Era o direito soberano de Chevage.

Na bandeira branca dos Mil de Viriato, e no escudo do valente cabecilha, daquele dia em diante ficaram representados os cinco dinheiros, chamando-se-lhes por isso o Pendão das Quinas, o Escudo das Quinas.

CAPÍTULO XVIII

Viriato foi visitar as oficinas dos Espadeiros de Toletum, que eram afamados no mundo pela têmpera rija que sabiam dar ao ferro com que fabricavam as armas espanholas. O seu nome já era conhecido entre os Espadeiros, e um deles com aspeto de autoridade deixou a forja e veio ao encontro do Cabecilha com alegria:

— Bem esperava ver-vos, e saudar-vos! As espadas que temperámos carecem de braços firmes como os vossos.

Viriato tocando-lhe com a mão no ombro, e avançando pela oficina ao ruido das bigornas em que se rebatiam a martelo as laminas já frias, respondeu-lhe:

— Andergus! Ás espadas que fabricais pôde-se-lhes chamar mágicas, porque tornam invencível o homem que as brande.

O espadeiro sorriu-se com orgulho, e começou a explicar a Viriato o valor das armas que se fabricavam naquele foco de uma antiga tradição metalúrgica:

— Sabereis, que os Romanos quando vieram à Hispânia combater os Cartagineses usavam ainda uma miserável espada de cobre forjado a que chamavam Ligula, a qual vergava com a força do golpe e que eles durante o combate endireitavam com o pé. Quando os Romanos viram as nossas espadas de ferro, adotaram esse tipo para o seu armamento, que mandaram fabricar em Astorga, Valencia e a quantos armeiros encontraram espalhados por essas Hispânias. Mas, o segredo da tempera do aço só nós os Espadeiros de Toletum o possuímos, e é esta a superioridade das espadas lusitanas. Os Romanos nunca nos puderam apanhar esse segredo.

Viriato escutava com encanto e assombro a observação de Andergus, e sentiu-se animado de uma íntima confiança com aquela revelação: as espadas lusitanas eram de aço. E Andergus apresentou-lhe uma espada:

— Vede! aqui está uma espada romana; tem de extensão um pé e quatro polegadas, larga de três dedos, cortando com dois gumes, e de ponta aguçada, punho do próprio metal. Serve para ferir de golpe de alto a baixo, ou de estocada a fundo. Mas... reparai como esta espada se entorta e fica vergada.

E calcando a espada debaixo do pé esquerdo curvou-a:

— É romana; cá está a marca gravada. Reparai: ABVRBCDCIII. Não conheceis talvez o que querem dizer estas letras: Ab urbe condita, da fundação de Roma, no ano seiscentos e três.

— Ah! do ano da matança. Acudiu Viriato.

— Agora vede esta nossa espada toledana; um golpe dela corta no ferro como se fosse em chumbo. É mais comprida do que a romana uns dois palmos, e de folha mais estreita. É mais leve, e incute o golpe mais longe, porque a têmpera do aço dispensa a grossura, necessária ao ferro doce. É com estas espadas que nos havemos achar frente a frente com os Romanos; eles não conhecem esta nossa vantagem.

No rosto de Viriato transluziu um raio de alegria; e abraçando Andergus, como um daqueles de quem dependia a liberdade da Lusitânia:

— Não temeis que um dia vos roubem o segredo da têmpera do aço?

— Esse segredo está nestas águas do Tagus, e nas suas areias auríferas.

É aqui nesta região que somente se pode dar ao ferro em brasa a dureza impenetrável.

Viriato ficou pensativo, e como que voltando a si de um transporte, exclamou com júbilo:

— Uma terra que tempera com as suas forças ocultas o ferro por essa forma única, essa terra só pode ser pisada por homens livres comunicando ás suas fibras a rijeza do aço. Ah, sinto em mim alguma coisa dessa têmpera das espadas de Toletum.

Andergus falou-lhe misteriosamente:

— Não é só a água e as areias auríferas do Tagus que dão ao ferro essa força inquebrantável; nem tampouco ser o ferro das minas de Mondragon; este céu também entra para aí em alguma coisa. Reparai para este céu azul e profundo. Quando o metal está derretido, e à sua superfície a calda reflete esse azul ferrete do céu, é quando algum influxo da abobada etérea diamantina desceu e veio dar-lhe tão assombrosa qualidade.

Andergus falava com uma confiança absoluta em Viriato, e naquele momento para o caudilho lusitano não guardava segredos. Depois, com um certo orgulho de tratar com Viriato, de quem tanto se falava, e maravilhado de o encontrar lhano e despido de toda a soberba, confessou-lhe:

— Muito quisera forjar pela minha mão uma Espada, que fosse a vossa companheira nas batalhas que ainda tendes de dar contra o Invasor romano. Não devo faze-lo; há uma Espada heroica já consagrada por vitórias, com o poder que torna invencível aquele que a cingir, e é essa a que vos compete.

— Eu nunca ouvi falar dessa Espada.

— É a espada Gaizus! devolveu prontamente Andergus: Não sei aonde ela está oculta, mas há por certo quem o saiba. É um talismã de liberdade. Dizem que está enterrada, e creio que em chão lusitano, ou com certeza na sepultura de algum bravo. Se Indibilis, Mandonio e Salondico a tivessem brandido! Ah, se a espada Gaizus aparecer, e vier à vossa mão, saberão os romanos o que é um raio...

Viriato pressentiu que uma força maravilhosa se ia desvendando; mas Andergus falava de uma tradição vaga, e nada mais podia adiantar. E levando o caudilho lusitano pelas oficinas, parando ao pé das forjas, das bigornas e rebolos, em que trabalhavam ativos armeiros, mostrava-lhe as armas diversas que estavam fabricando:

— Já pudestes ver a Spatha e o Gladius, comparando-os com a nossa Espada hispânica de aço puro, com uma nevrura ao meio ou espécie de quina; agora reparai para esta Espada curta, é a Machoera, à maneira de punhal, para combater corpo a corpo, mas é propriamente uma adaga. Verdadeiramente lusitana é a Rhanda, a faca ou naifa de quase dois palmos, pendurada à cinta, e que acompanha sempre o homem quer nos trabalhos dos campos ou nos da guerra. Até isto os Romanos nos roubaram, porque de há muito deram em usar a Rhanda pendurada ao lado direito. Se nós fossemos a reclamar o que nos pertence, também como conhecedor prático posso atestar, que a Lancea romana é imitada da nossa lança ou chuço peninsular: tem uma ponta de cobre, outra de ferro, e algumas como a Soliferrata são completamente de ferro. Mas, deixemos aos homens que nos devastam dizendo que nos querem civilizar, a glória dos seus roubos; aqui estão as Trágulas, com a sua ponta em forma de anzol, arma terrível que tem ferido generais cartagineses e cônsules romanos.

— Tenho mais confiança na Falcata, uma gadanha que chega a dar os resultados de uma boa espada. — Acudiu Viriato, terminando o seu pensamento:

— Quando o povo quer, com as suas foices, gadanhos, forquilhas e engaços, é capaz de levar adiante de si o poder do mundo.

Em Roma já se diz, que o mais destemido general não é capaz de fazer virar as costas a um Cântabro. Resta-me a esperança de que ainda hão de tremer ao encarar um Lusitano, que nenhuma calamidade descorçoa.

Viriato despediu-se de Andergus, que voltou para a sua incude, quando viu aparecer o vulto de Idevor, que o procurava. Pouco falaram; mas um movimento repentino de todos os terços e catervas lusitanas, postos em marcha instantaneamente, era revelador de que já pisava terras da Hispânia Ulterior um general romano, um Pretor de confiança. Sobre os escudos feitos de couro cru e cordas de tripa entretecidas de arame, os soldados lusitanos batiam pancadas ritmadas, a cujo som cantavam os seus hinos triunfais e os clamores do Tripudio antes de entrarem em combate. A marcha fazia-se a esta cadencia das Cetras, que ressoavam com estridor de alegria, em passos e saltos em que antegostavam os ímpetos da ação.

CAPÍTULO XIX

A derrota de Vetílio era comentada em Roma por forma que se ligava pouca importância à resistência dos Lusitanos; atribuía-se a um defeito da organização do exército. Dizia-se que o patriciado romano, temendo que nas guerras longínquas os generais conseguissem um grande prestígio sobre as Legiões que comandavam, se tinha estabelecido, que em cada Legião houvesse mais do que um chefe, sendo comandada por seis Tribunos militares, que por turno se sucediam. Lamentava-se que geralmente os tribunos militares fossem eleitos pelo povo e pelo senado, muitas vezes entre a mocidade inexperiente e por favoritismo. Que, verdadeiramente, era com os Centuriões que o general podia contar, porque esses saíam da fileira, chegavam ao comando dos manípulos pela sua bravura, e conduziam as cortes, até se elevarem a primipilos da Legião.

Era no Consulado de Publio Cornélio e de Caio Lívio, quando foi nomeado novo Pretor para governar e comandar o exército que operava contra os Lusitanos, o destemido Caio Plâncio. Foram-lhe entregues dez mil Legionários e mil e quinhentos Cavaleiros, para engrossar as tropas que estavam recolhidas em Carpesso. O Pretor queria proceder com rapidez, e mostrar a Roma desalentada, que ele submetia para sempre esse povo irrequieto, que não se conformava com o jugo da Pátria das Leis. Soube que o exército de Viriato permanecia na Carpetânia, e quis ir ao seu encontro, logo.

O Caudilho lusitano exultou de alegria, vendo aquela resolução inconsiderada.

— Plâncio obedece inconscientemente ao meu plano, vindo pisar um terreno desconhecido. A vitória é nossa.

E assim que as suas vedetas lhe vieram dizer, que o exército de Plâncio estava quase à vista, Viriato dispôs as suas tropas por forma a aceitar a batalha campal. Era com isso que contava o Pretor, fiado na disciplina inflexível dos seus Legionários, sempre com vantagem sobre tropas mal adestradas. Viriato tomou imediatamente a ofensiva carregando com os seus hastários sobre o exército romano; mas esse movimento impetuoso e aparentemente desvairado era um embuste. Plâncio acreditou na fúria cega da gente lusitana, e quando travou o combate, seguro de que em breve a teria derrotado, a um sinal combinado todos os guerrilheiros lusitanos viraram costas ao exército pretoriano numa debandada rápida, vertiginosa e inesperada.

Plâncio hesitou um momento sem compreender aquele êxodo repentino:

— Fogem! Isto não é exército; é um bando vil de cobardes. Não deslustrarei o meu exército perseguindo o bando fugitivo.

E deu ordem a que se destacasse prontamente um troço de quatro mil homens para dar caça ao lusitano.

Quando Viriato compreendeu pelo movimento dos manípulos a intenção do Pretor, rejubilou, exclamando:

— Temo-lo caído na cilada.

E quando o troço dos quatro mil, que ia em perseguição dos lusos, já estava distante do exército romano uma boa légua, Viriato cai em peso sobre eles, envolve-os e chacina-os com presteza, escapando apenas aqueles que conveio, para que levassem a tremenda impressão da catástrofe a Plâncio. Nunca as espadas temperadas com as águas do Tagus, que lhes dava toda a rijeza do aço, trabalharam com mais nitidez.

Caio Plâncio sentiu-se ferido no seu prestígio, e a perda daqueles quatro mil homens revelava-lhe a importância do inimigo com quem tinha de combater. Faltava-lhe já a frieza da razão, e arrojava-se contra Viriato como o boi contra o pano vermelho. Viriato tinha prevenido a hipótese, de no caso de derrota, acolher-se aos fraguedos da Serra de Ossa; mas não lhe foi preciso, antes aproveitando a exaltação em que Plâncio se encontrava, seguiu avançando para o norte e transpôs o Tagus.

— Será Plâncio tão inconsiderado que venha aqui à margem direita do rio?

Se ele tal faz, saberá o que é uma derrota fundamental; há de ter que contar em Roma.

E Plâncio, dementado pela fúria que lhe produziu a mortandade dos quatro mil legionários, atravessou o Tagus para a sua margem direita.

Viriato estava acampado numa colina coberta de oliveiras; quando ao sopé da montanha apareceu o exército de Plâncio, seis grandes matacães graníticos foram rolados do alto, precipitando-se e esmagando tudo quanto encontraram à frente. No meio do assombro e da desordem produzida pelo espantoso sucesso, Viriato deu ordem para uma carga de lanças, prosseguindo à espada a batalha campal, para mostrar ao general romano que os lusos também sabiam bater-se com tropas disciplinadas em campo raso, em corpos de seis mil homens, em linhas simétricas tanto para o ataque como para a defesa, com a formatura em cunha, e protegendo-se mutuamente.

Plâncio, vendo que prolongar o combate seria tornar mais completa a derrota, ordenou a retirada para a margem do Tagus, empregando todos os seus recursos estratégicos para conseguir passar o rio; uma vez na margem esquerda os que se salvaram, foram procurar refúgio nas cidades fortificadas, em que o poder romano se firmara na península.

Em um festim em que Viriato reuniu os chefes da campanha, e quando entregava desinteressado aos seus guerrilheiros os despojos tomados ao exército de Plâncio, entre as conclamações ruidosas dos Peltastas e Cetrados exclamava sorrindo:

— O verão ainda agora vai a meio, mas já o exército romano buca abrigo nos seus quarteis de inverno.

— Enquanto eles cosem os rasgões que lhes fizeram as nossas adagas, não deixemos que estas se enferrujem; vamos infligir o castigo a esses povos que contra nós os auxiliaram, desde o Tagus ao Ebro.

E se bem o disseram melhor o cumpriram.

A notícia da derrota vergonhosa de Plâncio produziu em Roma uma comoção inconcebível. Uns acreditavam que as minas de prata e as riquezas da Lusitânia ficariam para sempre estancadas, e exclamavam com rancor: É preciso aniquilar esse povo bárbaro, que assim se atreve a resistir contra a civilização da grande e generosa Roma. Que o Pretor Caio Plâncio seja chamado a Roma, para dar conta dos seus actos, desses miserandos feitos com que infamou as armas romanas, cujo prestígio é a base do poder da Cidade eterna.

E Plâncio nem tempo teve para reorganizar o exército com que se salvara depois da derrota nas faldas do Monte-Veneris; chamado a Roma, para apresentar-se à frente do Senado, ele partiu menos seguro do que Galba; não levava barras de prata e ouro para corromper os seus juízes, não lhe deram tempo para isso. A narrativa da campanha na Lusitânia era inacreditável, e por isso a sentença estava prevista, — a deposição e o desterro, para que não se falasse mais dele, e para que os futuros generais aprendessem no temeroso exemplo.

CAPÍTULO XX

Enquanto os Romanos se preparavam para novas operações de guerra, Viriato estendeu as suas correrias para o norte, por toda a Celtibéria, até ao Ebro; veio depois a leste até à Edetania, Contestania; e passando por Castalon, Tuci e Obulca, penetrou na Oretanía. Era um reconhecimento dos territórios e das povoações! sabia aonde teria fácil refúgio nas cavernas e antas, e que gentes o apoiariam contra o invasor estrangeiro. Na sua passagem rápida ia agrupando quantos se insurgiam contra o domínio romano, lembrados da sangrenta traição de Galba. Quando Viriato pisava já o solo da Carpetânia, vieram ao seu encontro homens alentejanos com uma mensagem; traziam a Crantara, a Lança ensanguentada, e a entregaram ao destemido Cabecilha. Depois que Viriato sopesou a Lança, entregou-a a um dos seus companheiros, que a foram passando de mão em mão, partindo em seguida os mesmo quatro homens com ela. Significava aquele símbolo a convocação dos chefes militares e dos governadores das Beetrias para comparecerem no Conselho armado.

Ia celebrar-se o Conselho no Castro da Cola, junto da grandiosa Anta da Candeeira, na Serra de Ossa; ali jaziam as ossadas dos antigos Lusos, quando a sua terra não tinha sido ainda invadida pelos Iberos, nem assaltada pelos Celtas, nem explorada pelos mercadores fenícios, nem pelos latrocínios dos Romanos. No ádito sagrado das suas sepulturas é que os Chefes lusitanos consultavam o eco dos espíritos, nas resoluções irrevogáveis de sacrifício imposto pela luta. numa das enormes lajes da Anta da Candeeira existe um buraco aberto a meia altura do chão, tendo um palmo em quadrado de diâmetro; é o único em toda a península hispânica. É por esse buraco, que o chefe dos Endres, quando esta corporação hierática não estava ainda desmembrada, interrogava os mortos sobre o destino social das tribos, e sobre a sorte das batalhas; interrogava para dentro da caverna subterrânea, e colocando o ouvido a esse buraco escutava os ecos misteriosos que só ele numa concentração subjetiva ouvia e explicava aos que vinham ali chamados ao Conselho armado.

Em poucos dias de marcha Viriato chegou, atravessando charnecas de mato curto e enfezado, e por entre montados de zimbro e azinho, até à chapada de rochas chistosas, aonde no cabeço mais saliente se erguia a Anta veneranda. Infundia um pavor quase sagrado a vista dessas sete fortes colunas ou esteios talhados sem artifício, implantados na terra: sobre quatro deles assentava uma vasta laje em forma de mesa, como área dos sacrifícios. Outras lajens cobriam um subterrâneo, que era a sepultura dos Antepassados. Logo que Viriato chegou ao cabeço em que a Anta se eleva, veio ao seu encontro um velho risonho, que o saudou abençoando-o.

Era Idevor, o derradeiro dos Endres, ou pelo menos aquele que depois de todas as perseguições conservava a tradição das tribos lusas; era ele que nas comemorações dos finados, anualmente, ali vinha depor, na pedra furada as oferendas do banquete funerário; era ele que interrogava os mortos, e colocava o ouvido atento no orifício da pedra que os cobria.

O Conselho armado estava reunido em volta da Anta da Candeeira; estavam ali representados os Carpetanos, os Vetões, os Vaceos, os Calaicos, os Artabros; tratava-se da defesa contra o Romano implacável que se preparava para a desforra de tantas derrotas. Viam-se ali figuras esbeltas de homens, trigueiros, de cabelos compridos caídos pelos ombros; ligeiros, armados com escudos pequenos, e punhal comprido à cinta; envergavam couraças de linho, tendo por cima a cota de malha, e nas cabeças os capacetes de couro. Depois de terem feito os seus jogos heroicos, alguns ofereciam à Divindade lançando sobre a mesa da Anta, mãos decepadas de vencidos romanos. Idevor avançou para a Pedra furada, ajoelhou e debruçou-se sobre ela, interrogando para dentro. Sentia-se um rumor soturno, como a ressonância de funda caverna. Depois, longo tempo Idevor pareceu escutar; e quebrando inesperadamente o silêncio que pesava sobre todos os guerrilheiros e chefes das Contrebias, vociferou com intimativa:

— Viriato? Viriato! Nunca serás vencido em batalha! Nunca morrerás ás mãos dos Romanos!

Era isso que Idevor ouvira no rumor do oráculo dos mortos. Repetiu-o depois fitando com assombro Viriato. Os companheiros vieram abraça-lo pela consagração, que o proclamava invencível; fitavam-no com espanto, como se, desde aquele momento, se tornasse um ser sobre-humano. Disse-lhe Minouro:

— Agora em vez de um Pretor, pode Roma enviar-nos dois, para aparar melhor o peso da derrota.

Andaca, batendo-lhe no ombro:

— Mas, pelo seguro, a força do oráculo está numa boa espada.

Viriato apoiando-se na espada que tocava com a ponta o solo, vergou-a com garbo, como fiado na sua têmpera e flexibilidade; mas com espanto viu, que mão traiçoeira lha tinha destemperado, porque dobrava-se como se fosse uma lâmina de chumbo:

— Retorcem-se as espadas para serem enterradas com os guerreiros mortos!

Então Ditálcon, vendo a confusão que tomara o Cabecilha:

— Mesmo sem espada serás vencedor; o oráculo não mente.

Idevor tomou a espada torcida das mãos de Viriato, e disse-lhe com alegria:

— Esta acabou já o seu destino; serviu enquanto o teu impulso generoso levantou o espirito de resistência nas abatidas tribos lusitanas.

Inspiraste confiança! as populações seguem-te, porque veem em ti o restaurador da independência, da liberdade, e do futuro glorioso da Lusitânia. A nossa Lusitânia é imperecível. Aqui na Anta da Candeeira guardara-se a Espada maravilhosa e invencível, o Gaizus, escondido para não ser tomado e empregado contra nós pelo invasor estrangeiro, e sempre ignorado, porque até hoje não aparecera um filho desta terra capaz de a defender e sustentar a sua liberdade. Viriato! o testemunho dos Antepassados proclama:

— Nunca serás vencido! E é da sua sepultura, deste Cairn sacrossanto que eu tiro a Espada invencível, o maravilhoso Terçado que aí se guardou até ao momento em que apareceste e te patenteaste digno de servir o Peito lusitano.

Dizendo estas palavras, Idevor meteu o braço pela pedra furada, e como revolvendo com a mão um tesouro invisível, sacou com jeito pelo buraco da laje um montante de aço.

Abeirando-se de Viriato:

— Entrego-te a Espada invencível nas batalhas. Tu, e todo aquele que a brandir pela Lusitânia têm certa a vitória. Que ela passe de mão em mão, e de idade em idade.

Viriato apoderou-se da Espada com entusiasmo; beijou-a, mirou-a com desvanecimento, e brandindo-a no ar, gritou:

— Há de ser livre a Lusitânia.

A espada que o velho sacou de dentro da sepultura ancestral era uma lâmina curva, tendo afiada a folha por um dos lados inteiramente, e pelo outro até um terço apenas; tinha a ponta aguçada, terminando a curva por forma que servia para ferir de ponta e simultaneamente de gume. O fio era tão resistente e cortante, que se fosse a Espada brandida com força decepava instantaneamente uma cabeça. Quem tivesse visto mundo, reconheceria que aquela Espada era semelhante em tudo à Copide oriental, com que batalham os Argivos, ou à Sica dos Persas e Trácios; mas enquanto aquelas eram forjadas de ferro batido, esta que estava oculta há centenas de anos naquela sepultura, tinha uma têmpera tal, que cortava o próprio ferro, e era, de uma flexibilidade que a tornava inquebrantável. Não era indiferente a comparação com a Sica dos Persas, porque desse povo guerreiro se conta que viera à Península hispânica como invasor, e que Mithra, o Mediador de Ahura, com uma Espada de lâmina curva matara o Touro, que simbolizava as Crenças e a Cultura dos Povos ocidentais. A Espada começou a aparecer com um carater misterioso! Pertenceria ela ás eras primitivas dessas espantosas lutas das raças do Oriente? No seu punho, que terminava com uma cabeça de Dragão, estavam ornatos de incrustações de ouro com os desenhos usados pelos Espadeiros de Toletum. Havia o quer que é de misterioso; porque o povo ao falar de uma Espada magica ou invencível que existira na Hispânia antiga, diz ainda: que sete vezes fora temperada no sangue de um Dragão! A sua têmpera não será esse segredo que só os armeiros de Toletum conservam no mais absoluto segredo? E as incrustações de ouro, não serão a prova de que as areias auríferas do Tagus misturadas no ferro derretido é que lhe dão esse poder cortante o incomparável do aço.

Idevor, correndo a mão ao longo da lâmina, descobriu sem esforço a face lisa de uma vaga cor azulada, e que semelhava o cariz do céu; entregou-a a Viriato, e ele próprio cingiu-lha à cinta do lado direito, dizendo:

— Esta Espada encontrou o braço digno de brandi-la no ar. Ela tem um nome, como têm todas as Espadas dos Heróis; são como eles uma entidade, com quem se consorciam; chama-se Gaizus, segundo as tradições religiosas que se transmitiram dos povos cíticos e dácios. E se a insígnia da Viria dos três Crescentes, que hoje usas como supremo chefe, te dá a razão do título de Viriato, de agora em diante como portador da Espada maravilhosa serás conhecido entre os que te acompanharem até à morte pelo nome de Porto-Gaizus...

Efetivamente a Espada que simbolizava o Deus da guerra, entre numerosas tribos cíticas e ligúricas tinha o nome de Gaizus, e entre os kimricos Gaisus, de Hesus entre as hordas célticas, e Gaisos entre os ramos góticos. Era essa Espada que se espetava no chão, tornando-o sagrado para aí se constituir a assembleia ao ar livre e o tribunal do julgamento. A Espada era a representação divina e o emblema da fecundidade, porque lampejava como o raio celeste.

Viriato espetou a Espada Gaizus na terra, reunindo-se todos os guerreiros em volta; e Idevor proferiu a:

Bênção da Espada
Fita de luz traça no ar o raio,
Quando encastela nuvens a rajada:
É assim esta Espada!
Em botes de alto abaixo e de soslaio,
Ou quando cai a fundo
Golpe seu iracundo!
Contra os tiranos firma a Liberdade,
E fortalece a Confraternidade.
Quem ama-la não há de?
A Terra em que nascemos ela cobre,
Tal como um galho secular frondente
Abriga a livre Gente.
Como tesouro que o valor redobre,
Lampejando no punho de um herói,
Sempre sagrada foi.
Espada de Justiça e de Equidade,
De uma Pátria o emblema, a majestade,
Quem ama-la não há de?
Se ela cair do valoroso pulso
Por traição ou por morte,
Ao sumir-se no derradeiro corte,
Da independência guardará o impulso.
Quem descobrir a lâmina fulgente
No revolvido chão,
Cumprirá a missão
De tornar livre a sofredora Gente,
Dando-lhe a consciência de Nação.

E feito o sacrifício pelo mais sábio dos Endres, os membros do Conselho armado comeram em comum o que traziam nos seus farnéis, pães de glande de carvalho rotundifólio, pernas de carneiro assado, e despejavam os picheis de cérea ou zito encostados aos grandes esteios da Anta; e depois de gritos festivos, ouvidas as ordens de Viriato, debandaram cantando, pelos campos de Ourique, seguindo para as suas terras num:

Coral de Tripudio
Terra da Pátria!
Querida terra,
Liberta e altiva!
Na paz, na guerra
A alma idolatre-a,
Para ela viva.
Nosso chão pátrio,
Terra querida,
Sempre liberta!
De um mundo és átrio,
Nunca vencida,
Por ti alerta!
Terra sagrada
Da Pátria amada,
Sê triunfante!
Pequena e forte,
Até à morte
Avante! Avante!

CAPÍTULO XXI

Quando os chefes das Contrebias pisaram terras a que não tinha chegado a devastação da guerra, encontraram ranchadas de mulheres trabalhando nos campos, alegres e risonhas, ouvindo-se de longe as cantigas com que aligeiravam a faina do dia. Aproximaram-se da lavrada, e notaram que vigorosas mocetonas, de olhos castanhos e cabelo preto, com arrecadas de ouro nas orelhas, contas de âmbar e cristal raiado de preto e azul ao pescoço, descalças de pé e perna, andavam naquela encosta a sementeira do linho. Elas não se apavoraram com a passagem da cavalgada. Os Cavaleiros que se deixaram ficar atrás, foram-se aproximando do rancho, simulando interesse pela suavidade das cantigas, que lhes faziam saudades dos seus casais e vilares, de que andavam ausentes desde que se empenharam na resistência contra os romanos. É certo que a alguns desses guerrilheiros, requeimados pelo sol e pelas geadas, acudiram aos olhos. Cantavam três raparigas alternadamente uma Cantilena dos Trabalhos do Linho, que na sua emoção fazia sentir o perfume da terra, porque todos eles combatiam. Entoava uma delas, como deitando o pé da cantiga:

Quem anda a semear o linho,
Bem sabe que há de viçar
Para trabalhos passar.
Também quem sêmea amores
Aqui, além, à ventura,
Sem se arrecear de dores
Doce esperança procura;
E nascem-lhe em vez de flores
Trabalhos para passar.
Antes o linho semear
Pelos valados e encosta,
Do que um olhar sem resposta,
Desdéns que são de matar;
O amor que se não desgosta
Não pode raiz deitar.

E enquanto as outras mulheres iam a sementeira, disse uma para a que cantava:

— Caenia! não descubras o teu segredo; deixa cantar Niliata.

E começou logo outra rapariga, continuando na mesma toada, mas com um timbre de arrancar a alma:

Pelos trabalhos do linho
Está-se a gente a entender:
Nasce o amor para sofrer.
De abrolhos do caminho
Quantas flores a nascer!
Foi quando vim a entender
Que me davas com carinho
Tua vontade e querer,
Pondo fim ao meu sofrer.

A mesma voz que interrompeu a que levantara a cantiga:

— Aponia! não fiques para traz; ou tu já não és cantadeira de fama?

Ouviu-se logo outra voz ainda mais terna, de uma frescura de mocidade, e de paixão comovente:

Bota uma flor azulada
O linho, estando a florir:
Tem essa cor teu sorrir!
Sabendo que eras amada,
Segredaste de mansinho:
— Para sempre! — Sonho lindo.
Ainda te estou ouvindo...
Foi pelo semear do linho,
Ou mesmo na espadelada.
Antes que o fio mais fino
Chegue a fiar-se na roca,
O que ouvi da tua boca
Fiou o nosso destino,
Teceu o casto cendal
Para o cortejo nupcial.

Os cavaleiros, que se tinham atrasado da comitiva, atiraram com o dinheiro que levavam para o grupo das raparigas; e metendo-se a caminho, a trote largo, iam dizendo:

— As mulheres fazem por nós o trabalho dos campos, em quanto por aqui andamos empenhados nesta guerra sem tréguas.

— E eu que jurei não tornar mais a entrar em casa, a abraçar a mulher e os filhos, em quanto não vir estes romanos escorraçados. Hei de cumprir o juramento, ainda que me arrebentem as saudades.

— Dá vontade de morrer por esta terra, quando bebemos estes ares, quando nos banha esta luz de um céu tão azul! A cantiga das raparigas fez-me ver isto tudo, como até hoje eu nunca tinha visto.

E no trote largo em que iam, incorporaram-se na cavalgada, que foi diminuindo à medida que cada um dos cavaleiros tomava a direção do solar em que residia.

CAPÍTULO XXII

Recebendo a Espada Gaizus, lembrou-se Viriato das palavras do armeiro de Toletum, lamentando que os indefessos mantenedores da liberdade da Lusitânia não a tivessem brandido. Esses grandes chefes da resistência da Hispânia Ulterior estão mortos, e porque até agora não apareceram homens com conhecimento da arte da guerra, é que Roma conseguiu dominar em muitas cidades da Lusitânia. Viriato reconhecia a continuidade da sua missão libertadora, e possuído dessa solidariedade do sentimento, disse para Idevor:

— Jazem nas suas sepulturas os dois irmãos e valentes cabecilhas Indibilis e Mandonio; e também o não menos denodado Salondico.

— Em lugar deles, — atalhou o velho Endre, — aparece um homem, sim, um homem, que vale por todos três; possui de um o génio da estratégia e a energia do comando; de outro a lhaneza familiar e o trato superior com os homens; do terceiro tem a integridade da sua palavra, que faz fé como se fosse uma sentença. Por isso veio ás suas mãos o Gaizus.

Por sua vez Viriato, interrompendo os louvores de Idevor, acentuou em poucas palavras o seu pensamento:

— Eu quero que esses três nomes fiquem sempre memorados entre a gente lusitana; e darei todos os passos para que lhe sejam consagradas sobre as suas sepulturas três estátuas funerárias.

Viriato queria ligar ao sentimento da defesa da independência da Lusitânia uma expressão visível, que lhe servisse de apoio e mesmo de estímulo; eram já mortos esses três caudilhos, que tanto tinham lutado contra os Romanos, e que agora jaziam obscuramente sepultados, Indibilis e o seu irmão Mandonio, e o destemido Salondico.

Repetia-se na tradição os seus nomes, porque os feitos heroicos que praticaram eram recentes, mas tudo passa; Viriato reconhecia que a recordação desses vultos extraordinários era uma força com que podia atuar nas almas. Ordenou que viessem da região setentrional da Lusitânia três blocos de granito, para serem esculpidas três estátuas sepulcrais, representando os heróis lusitanos, e para serem eretas sobre os seus jazigos. Essa pedra rija e difícil de lavrar era a que melhor simbolizava a resistência dos três Cabecilhas destemidos, e como privativa de todas as construções e monumentos da Vetónia, a que melhor representava aquela parte da Lusitânia mais ciosa da sua liberdade. Realizou-se em breve a sua vontade.

A estátua de Indibilis, como o estilo dessas esculturas funerárias, estava perfilada, de cabeça altiva, ereta e sem capacete ou gálea.

Todos aqueles que o conheceram dizem que é a sua imagem verdadeira, barba espessa e cabelo curto, nariz aquilino com uma depressão a partir da testa. Tem em volta do pescoço o colar ou torques simulando um grosso crescente. O corpo reveste-o um saio ou gibão justo à cinta por uma faixa ou bálteos acolchetado pelas costas; a manga é curta, deixando os braços nus pouco abaixo dos ombros, e acima da bucha do braço uma armilha formada de três braceletes. Os braços descem sustendo um sobre o ventre o escudo redondo ou cetra, ornamentado com cordões delineando contornos caprichosos; na mão direita tem segura a espada de lâmina curva, parecida com a Sica dos Trácios, de cabo curto terminando em bola, e com a ponta tocando nas nádegas. Assenta sobre um cipo lavrado, em que está inscrito o nome de Indibilis.

A estátua de Mandonio, trabalhada no mesmo estilo rude, mas primitivo, semelhando as esculturas do Egipto e da Caldeia, mostra leves diferenças; o rosto oval tem uma expressão de audácia, de quem afronta todas as dificuldades; o escudo que assenta sobre o ventre está pendente do pescoço por correias sem abraçadeiras, tal como o clípeos dos gregos; na mão tem uma arma curta de empunhadura simples, como faca de ponta, que se alarga até ás guardas, como o pugio dos romanos. Também as pernas nuas emergem do pedestal ou cipo votivo, em que se lê o nome de Mandonio.

A estátua de Salondico tem as armilhas nos pulsos ou propriamente manilhas; e na cabeça uma cervilheira de couro, que está cingida até meio da face; a cetra não é redonda, apresenta a face côncava, e representa o enlaçamento de fitas de couro cru.

Antes de chegar à Lusitânia um outro Pretor para substituir Plâncio na campanha, já estava consagrada esta piedosa homenagem aos três lutadores que tanto se sacrificaram pela liberdade da pátria. Isso acordou novas energias.

CAPÍTULO XXIII

Não podia ser indiferente a Viriato aquela extraordinária fortificação defensiva do Castro da Cola, do Alentejo, com as suas torres e muralhas do mais inacessível alcance. Examinou-a detidamente, medindo-a a passos; e aí na base do monte, para a parte do sul, em que estavam seis sepulturas de generais lusitanos, é que mandou erguer as três estátuas funerárias, porque já andavam esquecidos os nomes dos guerreiros que guardavam.

As estátuas dos dois irmãos Indibilis e Mandonio ficaram a par uma da outra, e à frente delas como a formar um triângulo, a estátua de Salondico. Na linha desta sepultura seguiam-se mais três moimentos, ignorando-se a quem pertenciam. Disse então Viriato:

— Cubro-me de vergonha, quando noto que já ninguém se lembra do nome desses bravos que aí jazem, tendo combatido pela nossa terra.

— Temos um pouco esse defeito da ingratidão para os homens que nos engrandecem.

Assim falara um da trimarkisia; ao que um outro acrescentou:

— Tu mesmo serás um dia esquecido, ou reduzido a personagem de conto de velhas.

— Fica certo, que se alguma coisa se souber de ti, será pelo que memorarem os Anais romanos.

— Não luto para ganhar fama! É só por uma ideia.

E Viriato voltou à sua preocupação:

— Mas de quem serão essas três sepulturas restantes?

— Talvez o saiba Idevor...

E consultado o velho Endre, que era um verdadeiro poder moral que pela tradição lusa unificava as almas, ele respondeu com simplicidade prontamente:

— São três caudilhos lusitanos que sempre combateram pela liberdade da terra; aqui descansa Edecon; esta jazida é de Alucio; a do topo cobre a Istolacio.

— Dá-me força o lembrar-me que eu continuo a sua missão.

Viriato foi em seguida à exploração do Castro Verde, cuja posição estratégica era defendida por sete fortes, um dos quais era o inconquistável forte das Juntas, assim chamado pelo povo, por se achar ereto na parte em que as ribeiras confluentes, Odemira e Maricão se encontram e confundem. Quando Viriato, para subir a violenta escarpa do forte das Juntas, chegou à margem da ribeira de Odemira, estava ali um magote de lavadeiras com as pernas metidas na água esfregando a roupa e cantando.

— É esta a feição da gente lusitana; do trabalho faz uma festa; alivia-se da fadiga com os seus cantares.

E parou um instante a ouvir a:

Canção das Lavadeiras
Já os linhos florescem,
Já os dias crescem,
E ainda não aparecem
Os meus amores!
Já as neves descem,
Sem que as guerras cessem;
Mas nunca me esquecem
Os meus amores!
Já os linhos se tecem,
Mesmo as teias alvescem;
Ah, se bem cedo viessem
Os meus amores!

Aquela toada sentida comunicava uma emoção saudosa, não tanto pela lembrança da paz, agora perdida, como pelo génio do povo, que se revelava nessa dolência. Viriato, bebendo largos tragos da água da ribeira numa quarta alentejana, que lhe encheu uma das lavadeiras, galgou a encosta aspérrima, sem parar até ao cocuruto do forte das Juntas.

— Valentes pernas!

— Aquilo é que é homem! Disseram duas das lavadeiras que estavam torcendo o bragal, e que o olhavam cá debaixo, enquanto a água escorria.

CAPÍTULO XXIV

Ainda Viriato se achava próximo da Anta da Candeeira, voltando a examinar a fortaleza da torre da Cola, nas campinas de Ourique, quando lhe trouxeram a notícia da chegada à Hispânia dos dois Pretores romanos Claudio Unimano e Caio Nigidio, aos quais o Senado confiara a missão urgente de reprimir de vez os Lusitanos, apagando as manchas das derrotas anteriores. Os dois Pretores combinaram o seu plano de ataque; Unimano iria atacar o Cabecilha nas montanhas de Ourique, aonde sabia que se encontrava por notícias dos espiões ibéricos; repelindo-o diante de si, levava-o de encontro contra Nigidio, que operava ao norte confiado na antiga aliança dos Vaceos. Assim colhido entre os dois exércitos romanos, destinados depois da vitória a ocuparem a Hispânia Citerior e Ulterior, a derrota de Viriato parecia-lhes mais do que certa, inevitável.

Parece que o destino favorecia o Cabecilha, ferindo-se a batalha naquela região sua conhecida e cheia de extraordinários recursos defensivos. Aquele vasto terreno coberto de rochas chistosas ostentava uma planura ou chapada, todo cercado de escombros e pequenos vales com montados de azinheiras e carvalhos, espessos e escuros. Excelente para repentinas embocadas; mas o Pretor Unimano só pensara no seu apoio em Évora, cidade do direito do antigo Latio.

Subindo aquele terreno acidentado cheio de cerros com espinhaços inacessíveis, avistava-se de longe a fortaleza a que o povo das cercanias chamava-a cidade da Cola. Negrejava com a sua cantaria seca sobre o ingreme cerro, correndo-lhe em baixo ao sopé a ribeira de Maricão. Foi ali que Viriato reuniu os troços da sua confiança, dentro das muralhas que rodeavam a crista do cerro. Dali, do alto, avistava-se o rio de Odemira, que recebe a poente as águas do Maricão, junto do pego do Sino. O Castelo ergue-se abrupto, com as suas muralhas construídas por fiadas de cantaria não lavrada, mas todas de um tamanho igual; uma parte dos muros é a pique, outros inclinados para dentro, formando um quadrilongo de mais de duzentas braças, com uma espessura de vinte palmos. A fortaleza é dividida em outras duas internas, tendo ao centro uma cisterna profunda com paredes rebocadas e de abobada; a um lado está um rebaixamento que dá para uma extensa escadaria que leva à margem da ribeira por onde se pode fazer uma rápida sortida. Em quatro outros cabeços circunvizinhos, a meia légua de distância, alevantam-se outras quatro fortalezas, e mais adiante, coroando um comprido monte o Castelo velho, formado por uma gigantesca trincheira que abrange uma área de mais de seiscentas braças. A batalha dada nas vizinhanças da Serra de Ossa, tendo ali ao pé a Anta veneranda da Candeeira, augurava para os Lusitanos um resultado feliz.

Quando Claudio Unimano avançava sobre Viriato, que simulara uma retirada para a fortaleza da Cola, e lhe punha cerco, contando tê-lo seguro, por alta noite o Cabecilha desceu com os seus pela escadaria secreta da fortaleza que vem ter à ribeira de Maricão; e sendo ao mesmo tempo avisado por lumieiras, os guerreiros lusitanos, que estavam recolhidos nas outras quatro fortalezas, caíram quase ao mesmo tempo sobre o exército romano de surpresa, e fizeram uma incalculável mortandade. Os estandartes da Republica e as insígnias pretorias foram tomados por Viriato, que mandou espetar pelos cabeços dos montes em redor as varas que formavam os feixes dos lictores, como fizera anteriormente após a derrota de Vetílio. As bandeiras romanas foram arrastadas à frente do balsão das Quinas, produzindo um delírio de bravura nas catervas lusitanas.

Quando a batalha estava já decidida, ainda mil Legionários sustentavam uma luta isolada contra trezentos infantes lusos, desesperados e seguros de os esmagar pelo seu número bruto. A resistência desses poucos era tenaz, contando serem socorridos; os romanos queriam nessa última refrega vender caro a vitória. De súbito, aparece à frente dos trezentos infantes o Cavaleiro que se destacava no tropel das batalhas pelo seu cavalo branco, no qual se arrojava à frente de todos os perigos. Os trezentos peões sentiram multiplicar-se-lhes a força e gritaram:

— Olha como ele brande a Colada!

— A Colada ao sol faísca; parece um raio.

O nome da espada Gaizus era desconhecido entre os companheiros de armas de Viriato; chamavam à espada maravilhosa a Colada, por ter sido guardada numa sepultura do castro da Cola. Com esse nome brilhará no futuro, quando um Campeador repelir com ela do solo da Hispânia as hordas africanas. Daí veio o vulgar proverbio: « Todo saldrá a la COLADA. »

Diante da espada Gaizus alguns cavaleiros romanos que escaparam dos mil destroçados fugiam a toda a brida pelas encostas e chapadas de Ourique: um peão lusitano rapidamente atravessou um deles desmontando-o, cortou-lhe a cabeça de pronto e seguiu ligeiro no mesmo cavalo levando-a ao alto espetada na ponta da lança. Tamanho pavor se apoderou dos outros cavaleiros, que não se atreveram a atacar o peão, que seguiu seu caminho cantando. Ao tempo constava que o cavaleiro morto se chamava Caio Minicio, da Legião decima-gemina.

CAPÍTULO XXV

Aproveitando o entusiasmo e confiança das suas tropas pela derrota estrondosa de Unimano, avançou Viriato para o norte, transpondo a margem direita do Tagus. Não havia tempo a perder; era urgente ir ao encontro do Pretor Caio Nigidio. As eculcas trouxeram a Viriato a aterradora notícia de que esse segundo corpo do exército romano vagava pela Beira Alta devastando, incendiando granjas e casais, roubando gados e aniquilando as sementeiras para reduzir pela fome a população trabalhadora e pacífica. Era preciso sustar o passo a Nigidio, agora enfraquecido pela impotência de Unimano. Viriato avançou a marchas forçadas, contando a cada momento encontrar o exército pretorial.

Próximo já das faldas dos grandes Hermínios, vieram as eculcas trazer ao cabecilha a noticia, de que Nigidio acampara o seu exército dentro da Cava, que já então começava a ser conhecida entre os povos das cercanias pelo nome de Cava de Viriato, gloriosos por saberem que ali o Maioral da Mesta abrigava os gados, quando desciam da serra.

A alegria de Viriato foi vivíssima com a notícia do acampamento de Nigidio dentro da Cava, em que se considerava seguro, sobretudo para o aquartelamento durante a noite, despreocupado de toda a surpresa. Um plano decisivo fulgurou na mente do cabecilha; entreviu uma derrota inesperada, impossível de ser prevista pelo Pretor, que considerava a Cava como uma Castra estiva, para segurança do seu exército. Qual fosse esse plano, a ninguém o comunicava, resolvendo logo partir para o grande Herminio, acompanhado dos cavaleiros da trimarkisia, em marcha forçada. Por ventura iria combinar qualquer feito com os maiorais que constituem a Cabana da Mesta, seus antigos companheiros?

Viriato chegara ao fim da tarde à povoação de Sedarça, lugarejo na encosta da Serra, em que passara a infância. Tudo eram recordações, que o enterneciam e o alentavam. De uma obscura choupana ouviu ressoar um canto, e risadas frescas e animadas de raparigas que estavam junto de uma molinheira moendo bolotas, de cuja farinha se fabricava o bolo numa larga sertã de barro sobre brasas. Viriato, que seguia sempre mais adiante dos companheiros, parou à frente da porta, escutando o canto ritmado ao movimento da molinheira. Uma das raparigas ia cantando uma história triste, talvez com realidade; era a canção narrativa:

A Dobadoura
Estava à porta assentada,
Dobando a sua meada
A velhinha;
Lenço branco na cabeça
A madeixa lhe sustinha,
E envolve-a como toalha:
Com que pressa
Sentada à porta trabalha!
O sol doura Seu cabelo,
Que tem a cor da geada:
Para passar o novelo,
A velhinha
De vez em quando sustinha
A gemente dobadoura,
Em que anda branca meada.
Na dobadoura que gira,
Como a mente que delira,
Nem já toda a atenção pondo;
Nem no novelo redondo,
Aumentando
Ao passo que o fio tira,
Todo o seu cuidado emprega!
Pobre e cega,
Ansiada, de vez em quando
Com que tristeza suspira!
Por vezes, o movimento
Claro exprime
Tumultuar do pensamento,
Que no imo da alma a oprime
E quase oura!
Muda angústia e paciência
Reflete-as a intermitência
Do andamento
Ao voltear da dobadoura.
Fica-lhe na mão suspensa
O novelo,
Concentrada não o enleia:
Na órfã netinha pensa!...
Vem-lhe à ideia
Por sua morte:
«Só, no mundo! entregue à sorte!
Pobre neta...»
Pesadelo,
Que tanto a velhinha inquieta.
Não ouvindo a dobadoura,
Que gemia intermitente,
Caindo da mão dormente
O novelo...
Com desvelo,
A neta, cabeça loira,
Vem à porta
Ver o que foi; com susto olha:
Uma lágrima ainda molha
A face à velhinha morta.

No fim da canção uma das raparigas limpou os olhões e disse uma delas:

— Tu, Niliata, nunca ouves essa aravenga sem chorares.

— É que eu conheci a velhinha cega, e tantas tardes a vi sentada à porta a dobar.

Viriato aproximou-se da porta da choupana, e saudou as raparigas:

— É bem triste essa história. O que é feito da pobre órfã?

— Ah, senhor! Houve uma alma apiedada que a tomou como filha. Todos os seus parentes tinham morrido nas guerras ou na escravidão dos romanos, e Idevor acudiu-lhe em tanto desamparo. O que nos vale são as boas almas.

E se não fosse agora Viriato, o que os romanos não fariam por essa nossa terra...

— E nunca vistes Viriato? Perguntou o cabecilha com bondade.

As três raparigas, que estavam em volta da molinheira, depois de terminado o cantar ou aravenga da Dobadoura, encetando uma conversa intima, trocaram sorrisos maliciosos:

— Muito gostava de ver esse homem de quem tanto se fala.

— E eu? E dizem que é um homem ás direitas; não é alto nem baixo, de cor morena e olhos castanhos, cabelos fartos e também castanhos lisos; barba espessa e corredia; o rosto é oval, o nariz fino, e a boca mediana deixa ver uns dentes alvos e iguais, que é um encanto! Se o visse conhecia-o.

— Parece que estás enamorada por Viriato. Disse com malicia Niliata.

— Eu nunca o vi, nem espero vê-lo. O que me faz gostar dele é a sua coragem. Quem há de dizer, que um homem costumado aos duros trabalhos da Mesta, delgado de perna, e pés pequenos, cá como os homens da nossa terra, tem uma alma generosa, e audaz para sacudir os inimigos da pátria!

Caenia falava convencida.

Viriato, que entrara na povoação adiante dos três companheiros, ouvindo as risadas das raparigas estacara para escutar o que diziam; em breve conheceu de quem se falava, e com um sorriso cheio de benevolente carinho, disse para elas:

— Falar na mão, aparelhar o pão.

As raparigas olharam-no com surpresa e viram o homem como o tinham representado: aquele rosto oval e trigueiro, aqueles olhos castanhos de um relance vivo e cintilante; o mesmo pé pequeno mas ágil.

Disse a mais reservada das mulheres para a que era faladeira:

— Aí tens o rapaz em quem pensavas. Diz-lhe que gostas dele.

— Todas nós devemos amar Viriato, porque ele sabe defender a nossa terra. (respondeu a Caenia, a rapariga faladeira com decisão). Pois para vencer o inimigo, Viriato precisa do amor e da confiança de nós todos. Mas para ama-lo, como a mulher pode amar o homem, isso fia mais fino! Na Lusitânia, que mulher poderá merece-lo?

— Então não há mulheres lusitanas que me queiram? — Interrompeu Viriato com malicia.

— Ai, meu senhor. Das mulheres da Lusitânia só tenho ouvido exaltar uma que é digna de vós, ou vós digno dela.

— E eu, que até hoje nunca tinha pensado em amar uma mulher! Queria saber quem é essa, que tanto exaltas.

— Fala! Diz quem é. Insistiram Niliata e Aponia.

— Não é segredo. Todos sabem qual a beleza e ingenuidade de Lísia, a filha de Idevor.

— Lísia? ainda tão nova; com pouco mais de dezasseis anos?

— Mas com um tino e juízo, que espanta; com uma graça invencível; com uma memória vivíssima dos Cantos e tradições da velha Lusitânia. Dizem até, que ela, pelos dons que possui, não é deste mundo.

Outra das três raparigas, não menos linguareira, prosseguiu na revelação começada:

— É Lísia quem na Torre redonda de Achale, no começo do Ano estival acende o Fogo novo.

— Ela tem cuidado do Fogo consagrado a Samham ou São Homem, o Julgador dos Mortos, que os não deixa esquecer.

— E como dedilha na Harpa de tríplices cordas...

— E lê todas as letras gravadas no Bastão dos Poetas...

Viriato ficou ferido de curiosidade; e pensando nessa revelação casual, disse para as três mulheres:

— Eu conheço o pai de Lísia, e sei bem que ele é meu amigo a valer.

E dizendo-lhes um adeus com simplicidade, continuou a sua marcha à chegada dos três companheiros, subindo a encosta do grande Herminio.

CAPÍTULO XXVI

Apesar de declinar o sol, que se refletia brilhante nas Penhas Douradas, que estão voltadas na sua imensa altura para o Ocidente, Viriato, calçado com as abarcas espartenhas, e de bornal ás costas, caminhou para a Serra através dos precipícios seus bem conhecidos. Dirigiu-se para o planalto da Torre, onde costumam reunir-se os Maiorais da Mesta, quando formam Conselho entre si, para resolverem sobre a transumância dos gados, sobre o abastecimento da Arca do pão, ou sobre castigos dos cachopos. Viriato ia tocando em certos pontos, como Barros Vermelhos, Covão grande, Lagoa escura, numa buzina de corno um sinal, que era conhecido de todos os Maiorais; quando chegou, já noite alta, ao planalto da Torre em forma de estrela, pouco ou quase nenhum tempo esperou pelos Maiorais, que se apresentaram no local destinado à comparência da Cabana. Eram cinco os Maiorais que governavam os gados lanar, cavalar, cabrum, porcum e vacum; e quando se reuniam tinham a Mixta Jurisdictio. Tal era o Conselho da Mesta, denominado entre eles a Cabana. O primeiro que apareceu ao toque da buzina foi Edovius, que governava a boiada; acudiu pressuroso Togotes, que mandava nos cavalariços; não se fizeram esperar Uvarna, o maioral dos porqueiros, Sutunus e Semeca. Todos eles se lembravam do toque da buzina de Viriato, e ocorreu-lhes que era caso extraordinário. O Cabecilha falou-lhes sem preâmbulos:

— Convém-me que sejam separados trezentos touros bravos, barrosos, corpulentos, das manadas da Betica! Esses touros bravos hão de ser guiados por vinte vacas mandarinas, daquelas mais luzidias e brincalhonas, e dentro em dois dias devem estar metidos nos Furados...

— Nos dois extensos algares abaixo da povoação de Sarzedo?

— Aí mesmo. E também se torna necessário, que vão mais atrás dos touros bastantes cães de fila, desses que pela sua firmeza em impelir os touros tem o nome de Maiorais.

Os cinco Maiorais de Mesta sorriram-se, compreendendo o plano; esfregavam as mãos, antevendo a audaciosa empresa, tentada por Viriato; e dirigindo-se ao antigo companheiro:

— Cá pela nossa parte não é que o plano há de falhar.

E descendo do planalto da Torre para as casas de sochão, em que se abrigavam, passaram por um grupo de cachopos, que estavam de vigia, e para não terem sono trocavam suas Adivinhas. Dizia um:

— Redondo é o curral,
Vacas pelo bostal,
Lindo é o azagal,
Cão pior que chacal?

Nenhum dos cachopos dava com o sentido da adivinha. Viriato ao passar pelo rancho sorriu-se, dizendo para os Maiorais que o acompanhavam:

— Nos meus tempos de azagal também ouvi esta adivinha.

E falando para os mancebos, explicou-lhes:

— Redondo curral, é o céu; Vacas pelo bostal, são as nuvens espalhadas; Lindo azagal, o sol; Cão pior que chacal, é o vento frio, que arrebata as nuvens.

Uma franca gargalhada dos rapazes foi o sinal de assentimento. Viriato desceu, tomando pelas veredas, passos e descansadeiros, canadas e quinchorros, dirigindo-se para a povoação mais próxima do grande Herminio, onde o esperavam os companheiros da Trimarkisia.

Os Maiorais de Mesta trataram logo de ir escolher as vacas mandarinas para em seguida juntarem os touros bravos que hão de entrar na misteriosa lide. Essas vacas folionas, de cor branca da pelagem, são dotadas de uma macieza de pele e de uma corpulência meã, chifres pequenos, abertos e delgados, olhos pequenos, acesos, bem aflorados, com pestanas brancas. Exercem sobre os touros um poder invencível de sedução, que os subjuga; com elas é que os Maiorais os governam. Têm o pescoço grosso e de farta barbela, que se recorta em curva e se prolonga até ao peitoral; lombos largos e cauda curta, membros finos e aprumados, ventre pequeno e ubere farto. Pelas suas formas graciosas parecem-se com o tipo do gado alvação. São brincalhonas tanto na docilidade do curral como na vida áspera dos montes.

Os Maiorais de Mesta estavam seguros de conduzirem e entregarem a Viriato os trezentos touros bravos.

CAPÍTULO XXVII

A aldeia de Loriga foi para onde se dirigiu Viriato, na falda da serra. Diziam que era dali natural; mas outras povoações, como Folgosinho, Ceia, Covilhã e Viseu, também disputavam a glória de terem sido seu berço. Antes dessas pequenas terras o adotarem como filho, já ele estava possuído do sentimento que o levou a dizer de toda a Lusitânia:

— Esta é a ditosa pátria minha amada. Viriato sentia um prazer intenso ao ver os trabalhos da povoação pacífica; um grande círculo de raparigas, com as suas arrecadas e colares de ouro, e axorcas nos braços e pernas, estavam ocupadas numa espadelada de linho. Ao ritmo das pancadas iam cantando, porque na Lusitânia o trabalho foi sempre uma festa, e ao som de cantigas. Aproximou-se para escutar a:

Chacoula da Espadelada
Separa-se o linho
Das suas arestas,
Nas espadeladas.
Que alegres pancadas!
E com gosto dadas.
Trabalhos são festas:
Quem olha a fadigas!
Já pelo caminho
Vem as raparigas,
Soltando cantigas
Das mais namoradas.
Quem quiser saber
Quantas conversadas
Andam cá na vila,
Sem maior quezila
Pode conhecer,
Vendo nas mãos delas
Como as espadelas
São bem trabalhadas.
Eu, por mim, sei de uma
Que na espadela
Tem um coração
Feito pela mão
De quem é só dela.
Para conhece-la,
Bastará aí vê-la
Sempre olhos no chão...

Mais adiante, num outro povoado descendo a encosta por onde se estendia Loriga, havia ruidosos sinais de alegria; era um Fiandão, uma festa em que das povoações vizinhas concorriam muitas raparigas para fiarem em festivo juntamento todo o linho de uma casa. Era de uso concorrerem também os rapazes namorados, que tocavam seus machetes, cantando à porfia as:

Endechas do Fiandão
Que vezes te vejo
No limiar da porta
De pé a fiar!
Eu, indo a passar,
Cá de longe um beijo,
Que mal me conforta,
Enviava-te então;
Nessa ocasião,
(Disso não te acuso)
Bem notei que o fuso
Te caiu da mão.
Se te cai o fuso
Quando estás à porta,
Será por cuidado,
Imaginação,
Que haja eu causado
Com tanta paixão?
Mas, isso que importa!
Ou será ou não.
Seja como for,
Certos sinais são
De ânimo confuso;
Talvez falta de uso
De ocultar o amor,
Pois te cai o fuso
Tanta vez da mão.
Com que alegria,
Ou satisfação,
Levantara o fuso
Que te cai ao chão;
Eu to entregaria
Com a cortesia
Que no amor é uso,
Declarando então:
— Ei-lo, em homenagem
Desta vassalagem
De leal coração;
Para sempre agora
Não cairá, senhora,
Mais da vossa mão.

Enquanto o rapaz cantava a endecha apaixonada, todos procuravam com os olhos se se denunciava pelo rubor a rapariga que a inspirara. Por casualidade caiu o fuso da mão a uma delas, e logo as risadas animaram o Fiandão extraordinariamente.

Um outro cantador dedilhou no machête que trazia umas Coplilhas:

Ao morder do fio
Que inveja me faz
E tanto me toca,
No fio do linho
Que puxas da roca,
Os beijos que dás!
Pressinto, adivinho,
Se esse linho eu fosse,
Como me era doce
Sentir a tua boca!
Tu segues fiando,
De mim descuidada,
Á boca levando
A linha delgada
Que torces nos dedos!
Do linho os segredos
Tivera eu a posse,
Que os sonhos provoca:
Como me era doce,
Se esse linho eu fosse,
Sentir a tua boca!
E enquanto na roca
Tu passas fiando,
No imenso desejo
Que acorda o que vejo
E a mente traz louca,
Ficarei sonhando:
Se esse linho eu fosse,
Como me era doce
Morder-me a tua boca!

Estas coplilhas ainda provocaram mais ruído, procurando-se algum rubor traiçoeiro. Ditálcon, que estava junto de Viriato, enlevado na contemplação daqueles costumes da serra, porque tinha ouvido falar muito na finura do fio lusitano, disse para o cabecilha:

— Isto é uma terra de poetas.

— E de apaixonados...

A frase de Viriato foi interrompida por um facto extraordinário; naquele momento chegava à sua presença um rancho de homens, que o procuravam com ansiedade:

— Nós somos gente da povoação de Gouveia, que vimos...

O seu aranzel confundiu-se com este outro, mais atrapalhado:

— Nós somos gente da povoação de Manteigas, que também aqui vimos...

Viriato impos silêncio a esse grupo de homens valentes, que vinham armados de varapaus e mangoais, e com lucidez apurou em poucas perguntas, que eram povoações rivais, que por causa das águas de rega se hostilizavam de longos tempos, havendo todos os anos grossa pancadaria e até mortes. Os de Gouveia não queriam que as suas águas vertentes fossem para os de Manteigas; estes não lhas queriam pedir. Então Viriato sentenciou:

— Agora, que a nossa terra está invadida pelo inimigo estrangeiro, os ódios internos enfraquecem-nos. É de força unirmo-nos: Entre Manteigas e Gouveia haja paz para sempre. Em todos os começos do Ano estival a comuna de Manteigas irá levar à de Gouveia uma bilha de água, em sinal da compra porque adquiriu a posse das suas regas.

— Bem julgado! gritaram todos.

E depois de terem bebido tigelas de zito, e aclamado Viriato, voltaram alegres para as suas povoações, em que o símbolo da concórdia mutua se guardou no costume imemórial.

CAPÍTULO XXVIII

A notícia das devastações de Nigidio forçou Viriato a reunir-se ás suas catervas, e a atrai-lo para as campinas em volta da Cava; com solércia foi evitando combates importantes, até ao momento em que os eculcas vieram dizer-lhe que Edovius e os outros maiorais tinham encurralado trezentos touros bravos dentro de um dos Furados, para onde os trouxeram pelo engodo das vacas mandarinas.

— Vieram também os cães de fila?

— Estão presos no outro Furado.

Depois disto Viriato esperava com ansiedade o cair da noite, certo de que Nigidio recolheria o seu exército dentro da Cava; Nigidio também contava como estratégia, o conservar-se naquele território em que podia dar uma batalha campal pondo em ação toda a maravilhosa tática das Legiões. E não era mal pensado, desde que ele conhecia que o exército lusitano era incoerente, de guerrilheiros de disciplina irregular.

A noite caía, e como Viriato se afastara com os seus terços para longe, o Pretor Nigidio deu ordem para que as Legiões se recolhessem para dentro da Cava, certo de que no seguinte dia conseguiria envolver Viriato. Na escuridão da noite as sentinelas que vigiavam o acampamento romano viam de vez em quando luzir umas lumieiras pelos montes. Não suspeitavam o que seria. Era o sinal combinado entre Viriato e os maiorais da Mesta; por essas lumieiras sabiam eles a situação, e que era tempo para executar a estratégia.

Os touros bravos, em número de trezentos, saíram de um dos Furados, atraídos pelas vacas mandarinas, sempre em marcha acelerada na direção da Cava. Os Maiorais, com extrema perícia guiavam aquela imensa força bruta. Semeca encarregara-se de trazer uns vinte cães furiosos da serra; e acompanhava a boiada mais atrás. Quando chegaram a pouca distância da Cava já se via a estrela boieira; foi esse o momento escolhido. Viriato fez açular os cães contra os touros, que os Maiorais montados e com varas compridas dirigiram para dentro da Cava, tendo-lhes na carreira cega retirado as vacas mandarinas da dianteira. A fúria dos touros excedia quanto se imaginara; vendo luz no acampamento dos romanos, para aí se atiraram num ímpeto irresistível. Tudo caiu diante desse assalto de uma força de ariete. Os gritos de horror, a confusão de vozes revelavam a enormidade da catástrofe. O que fizera Galba com os dez elefantes africanos contra os trinta mil lusitanos indefesos, agora Viriato o repetia contra as Legiões romanas arrojando-lhes na escuridão da noite trezentos touros dos mais bravos da Betica, e impelidos pelos indomáveis cães dos Hermínios. Os touros destroçaram todo o acampamento; e quando Edovius e os outros Maiorais entenderam juntar os touros e leva-lo caminho da Serra, Viriato entrou na Cava com as suas catervas e foi passando à espada quantos sobreviviam do exército de Nigidio. Eram estes recursos extraordinários, que tornavam temível Viriato manobrando com um exército sem disciplina, e que numa batalha campal não resistiria perante uma bem organizada Legião. Não era a primeira vez que os touros se empregavam como uma arma de combate; mas em tamanho número, e tão calculadamente, com o concurso de boieiros experimentados, e produzindo um efeito tão completo só a Viriato compete uma tal glória.

A insígnia da Legião, que era uma Aguia poisada sobre uma rodela sem ornatos no tope de uma comprida vara, apareceu calcada e recalcada; e entre os corpos mortos viam-se esfrangalhados os balsões ou Vexilos das Cortes bordados a ouro com os números de cada uma e o nome da Legião. Pelo chão revolvido e ensanguentado notavam-se as Signas ou bandeiras dos Centúrios; algumas ainda conservavam no alto da vara uma mão direita como símbolo da fidelidade, ou uma coroa alusiva a alguma vitória.

Ainda agarrados aos seus pendões, jaziam Porta-Estandartes com as cimeiras de cabeças de leões cujas peles lhes pendiam das costas.

Cacos de ferro e de cobre, escudos de pão chapeados de ferro, cotas de malha revestidas de couro ou guarnecidas de escamas de metal, couraças de bronze, espadas de dois gumes, parazónios ou espadas curtas, dardos, flexas, fundas juncavam todo o âmbito da Cava, como se um torvelinho de morte tivesse dispersado o acampamento de Nigidio.

Os despojos do exército romano foram em grande parte dados aos Maiorais da Mesta, em paga do seu trabalho e acerto. Daí veio o aparecerem ainda passados muitos anos, colares fixos ou torques, chistes de bronze, dracmas de prata e armas romanas, por muitos lugares inacessíveis dos Hermínios.

CAPÍTULO XXIX

Entre os poucos legionários do exército de Nigidio que escaparam não apareceu o general; fora uma vítima da tremenda catástrofe. Os chefes do exército de Viriato resolveram prestar uma homenagem à Deusa-Mãe, do culto catoniano, I-Ana, ou Anah, levando num carro puxado por vacas brancas, até às lezírias da margem do rio Pavia, a Pedra focal, com que ela era representada na religião lunar da Lusitânia. Desse culto primitivo, ficou a superstição de revolver penedos, junto dos lameiros ou charcos, e a crença nas Jans ou fadas, e nos juncais chamados Omomi, de que o povo fez a entidade do Bom Homem. A Pedra focal foi conduzida com o respeito de quem via nela o símbolo da fundação da família, e no plenilúnio dançava-se à frente dela ao som de sistros e adufes, tal como usavam as famílias religiosas dos Cabiras, Telchines e Dactylos. A Pedra focal era entre as tribos dos Germanos também levada num carro com o nome da deusa Herta, e arrojada a um lago.

No meio da festa aparatosa da Deusa-Mãe, todos os guerreiros do exército de Viriato se aproximaram da Pedra focal e colocando a mão sobre ela foram proferindo um juramento inquebrantável:

— Nós combatemos pela liberdade da Lusitânia, fonte da paz e da segurança das nossas famílias. E enquanto a Lusitânia for pisada pelo invasor romano, nós juramos combate-lo sempre, sem regressarmos aos nossos lares, sem procurarmos as nossas mulheres, sem mais beijar os nossos filhos até ao final triunfo, em que todos estamos empenhados.

A confiança na audácia e inteligência de Viriato é que motivava estas resoluções extremas, que, se fosse necessário, seriam levadas até ao suicídio. Viriato começava a aparecer como um vulto maravilhoso, e corriam vozes de que o toque das suas mãos dava saúde. E quando o carro era levado para a beira do rio com a Pedra focal, trouxeram ao encontro de Viriato um pobre homem hidrópico, em extrema deformação, para que o socorresse com o seu poder e o livrasse de tanto sofrimento. Viriato atendeu o desgraçado doente:

— Para o teu mal há um remedio infalível nas águas da Fonte de Ouguela. Segue para lá quanto antes, e fica certo de que te curas.

— Senhor! disse o hidrópico: Eu sou Bovecio; e prometo, quando voltar curado, ser teu soldúrios, acompanhar-te nos perigos e ainda além da morte.

Viriato, sorrindo para os que o escutavam maravilhados, continuou:

— Não tem essas águas somente virtudes medicinais; o pão amassado com água da Fonte velha de Ouguela fica mais leve e saboroso do que o melhor pão de Avintes.

Um dos soldúrios interveio:

— Conheceis bem todas as riquezas desta nossa terra, porque a tendes percorrido de norte a sul.

— Por isso mesmo é que eu lhe tenho tanto amor. Quando andava nas fadigas da Mesta, quantas vezes fui eu ás águas afamadas de Aljustrel, lá no Alentejo, lavar as feridas malignas e pústulas do gado. Por lá encontrei sempre muitos pastores, que se iam tratar de feridas rebeldes, de sarna e até da lepra. O que sei dizer, é que de lá voltavam sempre curados.

— São águas santas!

— Santas, sim, mas é preciso ter cautela, porque bebendo-se de mais...

Os banhos, esses são milagrosos.

— Deveis conhecer umas águas que nascem em Olyssipo, na falda meridional do Monte do Castelo?

— Se conheço! Curam os catarros mais fundos, e aclaram tanto a voz, que até se diz que não há músicos que igualem os dessa terra. Se os Romanos se apoderassem dessa cidade com certeza aí edificariam sumptuosas Termas.

— Toda esta nossa Lusitânia é rica de águas milagrosas.

E enquanto o carro com a Pedra focal continuava a marcha, Viriato completou o seu pensamento:

— Como as águas do Tagus não há outras no mundo mais acerosas; nem as de Bilbile ou de Tarragona lhe chegam. Bem se vê pelo que se passou agora na Cava.

CAPÍTULO XXX

A Guerra dos ladrões, como chamavam em Roma à luta heroica de um povo defendendo o seu território, os seus lares, a própria existência, prolongava-se com desastres sucessivos para as armas sempre ufanas dos Quirites. Os bárbaros do ocidente eram exemplo de dignidade cívica e de altura moral para o povo-rei, que se arrogava a supremacia da civilização. As derrotas quase simultâneas de Unimano e Nigidio ocultaram-se por alguns dias na Cidade eterna; chegou-se mesmo a espalhar que Viriato se rendera, que fora agarrado; que seria trazido para o apresentarem ao povo em espetáculo no Circo. Mas a verdade cruenta irrompeu quando se viu que fora encarregado Caio Lelio, que era por todos cognominado o prudente, de partir rapidamente para a Hispânia, e de intervir com o seu tino seguro na campanha que se desmoralizara. E tal era a importância da missão, que Lelio partira revestido da autoridade de Procônsul. A situação era extremamente grave; porque um dos generais romanos, não se sabia se Unimano ou Nigidio, em consequência dos muitos ferimentos que recebera, sucumbira. Lelio ia substituir um deles. O novo general inspirava confiança pela clareza de inteligência que possuía; não iria imprimir um impulso decisivo ao Belum latronum, mas ninguém como ele saberia informar o Senado da situação da Lusitânia e das condições que cedo ou tarde conduziriam à vitória. Lelio era considerado em Roma como um literato exímio, dotado de eloquência empolgante, e de um vasto saber; estas qualidades não eram incompatíveis com o espirito militar de um chefe tacitamente encarregado, não de feitos estrondosos, mas de salvar dois exércitos comprometidos num país inimigo e longínquo. Por isso a chegada de Gaio Lelio à Lusitânia não produziu ruido; a sua obra capital foi sustar prontamente o revês que se precipitava, reunindo os dois exércitos romanos, e evitando a batalha campal a que Viriato o provocava, com constantes escaramuças. Depois disto preparou as coisas para que dali em diante a campanha da Lusitânia tomasse um outro aspeto mais favorável ao poder de Roma. As suas informações para o Senado influíram nisso, e por ventura foram seguidas mais tarde por outros generais com o êxito desejado. Lelio, com o seu profundo saber, tratou de ir colhendo todas as notícias que importavam ao interesse de Roma, e com as notas que tomava, inquirindo dos povos e dos costumes, escreveu uma carta ao Senado, da qual alguns trechos foram aproveitados pelos geógrafos contemporâneos. Narrava o Procônsul:

«Cumpre ter sempre presente, que a Lusitânia é habitada pela mais poderosa das nações hispânicas; e que achando-se já subjugadas as outras, é esta a que se atreve ainda a deter as armas romanas.

«Não provêm a sua força do número dos seus habitantes, mas da sua resistência devida a um temperamento tenaz e incansável, a uma dignidade individual que antes prefere a morte a qualquer aparência de escravidão.

«Explicarei isto pela pureza do sangue lusitano; eles não se misturaram com os Celtas, que haverá quatro seculos invadiram a Hispânia e conseguiram aliar-se e fusionar-se com os Iberos. Na Lusitânia não aconteceu como nas Gálias, quando aí se efetuou a conquista do Celta invasor; o lusitano não caiu na servidão militar como o gaulês. O povo vive espalhado por casais, vilares, agricultando, deixando o trabalho dos campos ás mulheres, desde que é preciso correr ás armas para defender a terra; as Cidades são confederadas entre si, também no intuito da defesa, e para o fim de governo administrativo. São eles que votam em Conselho armado a guerra defensiva, e que elegem os seus chefes e generais, declarando cada povo ou localidade com quantos Cavaleiros ou infantes contribuirão para a guerra contra os Romanos. Os Chefes eleitos apresentam-se na entrada de Maio prontos para a campanha, seguidos dos seus Companheiros, que são todos os homens seus dedicados, soldúrios e protegidos, que os seguem por toda a parte, e lhes obedecem incondicionalmente. É esta a organização do seu exército. E de Viriato me contam, que ele tem, além do comando geral de todas as forças, uma guarda de Mil Soldúrios, que desde a matança do Tribola, em que salvou o exército Lusitano da perda imediata quando já propunha a rendição, ficaram constituindo a sua Guarda de corpo, com juramento de lhe não sobreviverem morrendo ele em campanha, como prova da sua Irmandade heroica. Desde o desastre de Tribola até hoje muitos dos Mil Soldúrios têm morrido nas guerras com Plâncio, com Claudio Unimano e Caio Nigidio, mas esse número está sempre completo, porque a maior glória que pode aspirar um guerreiro lusitano é jurar o pacto de amizade na vida e além da morte, sendo eleito em consequência de feitos extraordinários um dos Mil de Viriato. Com uma organização militar que assenta no vínculo sentimental da confraternidade, e que se move pela emoção alucinante da Pátria, as Legiões romanas nada podem, e a estratégia dos Pretores fracassará sempre desde que continuem com o sistema das batalhas campais, num terreno cheio de anfractuosidades perigosíssimas e que os naturais conhecem perfeitamente.

«Apontando estes contras não quero espalhar o desânimo; e assim como Roma já soube tirar uma lição luminosa dada por estes bárbaros, adotando para o seu exército a Espada hispânica, que lhe tem proporcionado vitórias, deles temos a tirar ainda a arte de os vencer. Porque, rigorosamente, os Lusitanos não podem ser vencidos senão pela perfídia. Sabereis que entre a raça dos Iberos e a dos Lusitanos há um odio irrefreável mas latente; nunca se ligam, nem se entendem, e a sua aversão mútua separa-os mais do que as inacessíveis linhas de rios caudais ou de alterosas montanhas. Passarão os seculos, mas esta antinomia prevalecerá. É sobre ela que Roma deve apoiar o seu domínio; muitos povos da Lusitânia estão hoje confundidos em território ibérico, e Viriato conseguindo reuni-lo para a Confederação defensiva em que trabalha expulsará o poder de Roma da Hispânia, com certeza e não tarde. O Ibero lisonjeia-se com os contactos da soberania de Roma: dêem-se-lhe títulos de cidades municipais, atraiam os seus filhos a Roma, e eles ficarão submissos, porque adoram o poder; aproveitemos o odio do Ibero para demolir o Lusitano. Para aniquilarmos o Lusitano é debalde que empregaremos a espada, mas é infalível o resultado impelindo-o para a união ibérica. Hoje toda a Lusitânia tende a retomar a extensão primitiva, e unifica-se moralmente à voz de Viriato, que se acha revestido entre o povo de um prestígio maravilhoso: nada menos do que acreditarem todos que ele é invencível. Nós sabemos quanto esta credulidade influí no ânimo das tropas e decide das batalhas. Corria por aqui entre as tribos da Lusonia que apareceria um guerreiro montado num Cavalo branco, e que ele conseguiria repelir o estrangeiro invasor; todos hoje consideram Viriato como a realização dessa velha profecia, e os companheiros que lhe deram o Colar de ouro do comando ou a Viria, foram os primeiros que o aclamaram pelo nome de um guerreiro prestigioso do tempo de Aníbal, chamando-o VIRIATO! Morto este chefe dissolver-se-á a Lusitânia; porque esse profundo sentimento de raça e de pátria, que anima as tribos lusas, carece de uma representação que as identifique. Viriato deve ser morto; sem o que, não acabará a campanha e Roma será sempre vencida. Urge pensar nisto e só nisto. Simulem-se campanhas, mas vise-se a este fim único.

Perguntareis: Quem há de matar Viriato? Por certo, que nenhum general romano ou cavaleiro audacioso o desafiará para um combate individual.

Mas, já indiquei o caminho: o odio dos Iberos e dos Lusitanos entre si é insondável, e não faltará um Capitão de sangue ibérico que se preste a alcançar a glória dessa traição.»

Era mais longa a Carta de Caio Lelio ao Senado; muitas das suas passagens foram aproveitadas pelos geógrafos gregos e cronistas romanos, de épocas ulteriores, e pelos historiadores que referiram as Guerras viriatinas. A parte que interessava diretamente à politica romana foi lucidamente compreendida, não só pela experiencia dos anteriores desastres, mas pela confiança no tino indiscutível de Caio Lelio. Por isso nos Anais da Republica não se referindo nenhum combate dado por Lelio na Lusitânia, inscreveu-se que imprimira aos sucessos uma direção que os tornava menos favoráveis aos Lusitanos.

O efeito das palavras sensatas de Lelio era tardio, e os acontecimentos atropelavam-se exigindo uma ação imediata. Para os espíritos ambiciosos a missão de Lelio também fora frustrada; era uma derrota como as outras, mas sem aparato. O Senado obedeceu à corrente da opinião: naquele ano de DCIX da Edificação da Cidade, e sexto da Guerra dos Ladrões, foram eleitos Cônsules Quinto Fábio Máximo Emiliano, e Lúcio Hostílio Mancino, filhos e irmãos de afamadíssimos generais, que tinham levado as armas romanas ao máximo esplendor na vitória de Pidna, e na destruição de Cartago. Fervia-lhes o sangue;

Quinto Fábio empenha-se para vir tomar pessoalmente o comando na guerra da Lusitânia. O Senado atendeu o seu desejo dando-lhe a ordem perentória.

CAPÍTULO XXXI

A Guerra viriatina, como em Roma já se dizia da campanha desgraçada na Lusitânia, levou o Senado a encarar os acontecimentos com a justeza que lhe competia, preparando uma solução pratica. Usando de um direito de negociar e concluir alianças com os povos estrangeiros, entendeu o Senado que era tempo de propor a Viriato um tratado de mútuas garantias, da categoria daqueles em que há igualdade de obrigações, e designados sob o título de Foedus aequum. A luta desesperada das populações da Hispânia Ulterior resultava de um sentimento de independência local e pessoal, que Roma não podia apagar pela força das suas legiões; pelo direito era possível ligar esses povos aos interesses romanos, porque as terras ficariam governando-se pelos seus costumes e os indivíduos adquiriam o Jus peregrinum, gozando de uma proteção legal em Roma sem dependência de patronos.

Cada derrota de um Pretor ou Cônsul na Lusitânia manifestava ao Senado a dificuldade de poder submeter esta região hispânica ao regímen do Foedus iniquum, titulo com que Roma cobria a subserviência dos povos submetidos ao seu protetorado. A Lusitânia não era um inimigo vencido, nem tampouco seria um amigo fraco; reconhecendo-o no meio de tanto desastre, o Senado viu claro o caminho para exercer a sua ação na Hispânia Ulterior indicando a oportunidade do Foedus aequum. Aproveitava-se a ocasião da partida de Quinto Fábio para a Lusitânia: ele seria o portador do tratado de aliança, ficando-lhe reservado o arbítrio de poder firmar o tratado com Viriato, ou de o ocultar, caso o sucesso das armas romanas mantenha o seu império. A convenção diplomática não compreendia somente a segurança das pessoas e das transações entre os dois países; continha-se aí um facto capitalíssimo, e que poderia exercer uma influência decisiva no futuro da Hispânia Ulterior: o Senado reconheceria Viriato como príncipe ou rei da Lusitânia, assignando e responsabilizando-se pela execução do tratado como soberano.

Quando entre alguns membros do Senado se aventou a importância de um tal acto, de consequências imprevistas, um dos Senadores mais experimentados no governo sorriu-se com superioridade:

— Todas essas garantias estão apenas na letra; porque vós todos sabeis, que embora pertença ao Senado a direção das negociações com os estrangeiros, nenhuma aliança poderá concluir-se sem que os Comícios lhe prestem o seu assentimento ou ratificação.

A ideia diplomática foi prontamente compreendida. Na partida de Quinto Fábio entregou-se-lhe o tratado, cujo conteúdo ignorava, e impondo-lhe a cláusula, que só o abrisse e cumprisse, quando e até aonde a marcha dos acontecimentos o determinasse. Era ainda um hábil modo do Senado eximir-se a responsabilidades.

As forças que Lelio comandava em Hispânia estavam cansadas e apavoradas; o Cônsul Quinto Fábio compreendeu que era condição impreterível partir com algumas novas Legiões, para com elas meter em disciplina as que se consideravam exaustas. Os exércitos romanos estavam divididos pelas campanhas gloriosas da Grécia, da Macedónia, de Cartago, achavam-se diminuídos e também debilitados por esforços ininterruptos; os veteranos que regressavam à pátria vinham semimortos, e para nada se poderia contar com eles. De Pidna tinham chegado a Roma as Legiões triunfantes; da destruição de Cartago regressava Cipião com os seus bravos; mas nenhum legionário se quis inscrever para acompanhar Quinto Fábio para a guerra da Lusitânia, justificando-se com desdém que não desciam das altas façanhas contra nações grandes e civilizadas, contra umas obscuras tribos miseráveis dos confins do ocidente e demais comandadas por um chefe de ladrões, ( Dux latronum ). Por estes imprevistos embaraços, e pela situação apática em que se via Caio Lelio, a guerra lusitana afroixara; Viriato, para não cansar as suas Companhias e Terços aproveitou-se desta trégua forçada, contando que nova época de luta seria iniciada, cada vez mais desesperada e cruenta da parte dos Romanos.

CAPÍTULO XXXII

Para que a inatividade passageira em que se via não prejudicasse o prestígio que exercia sobre os seus homens de armas, resolveu Viriato ir consultar o velho Idevor à ilha sagrada de Achale, junto do promontório Cepressico, aonde se conservavam as tradições cultuais trazidas de Hierna; partiu acompanhado dos seus Mil Soldúrios, e transpondo a margem direita do Tagus, dirigindo-se para Cetobriga, aonde o Sado desemboca no Oceano, deu ordem aos companheiros que ali o esperassem durante três dias.

Dali, daquela baía do Sado, partiu Viriato numa barca de couro, com os três Cavaleiros que sempre o custodiavam, em direção ao promontório Cepressico de traz do qual parecia ocultar-se a ilha de Achale. Um desses companheiros, Ditálcon, dizia:

— Foi nessa ilha que se refugiaram as famílias lusitanas assombradas pelo morticínio de Galba; junto do templo do Deus inominado, encontraram alento para resistirem à calamidade que os aniquilava.

Minouro, ansioso por pisar aquela ilha misteriosa de Achale, avivava também as suas reminiscências:

— Conta-se que outrora um Colégio sacerdotal de Druidas estava na ilha Pelágia, situada ao norte, junta à costa de Ofiúsa, chamada dantes Oestrynis. Da ilha sagrada de Hierna vieram para aqui os Bardos, que doutrinaram as tribos de Lez, cujos navegadores cruzavam o mar Tenebroso indo buscar o estanho ás ilhas Cassitérides, e voltavam confiados no afamado farol da torre de Brigantia. Mas, quem sabe onde está hoje essa ilha Pelágia?

Andaca observou:

— Desapareceu, ou por mistério ou força da natureza. O mar desfez essa ilha, e aonde ela existiu é hoje um vastou estuário coberto de moliço e algas. Parece que os acontecimentos nos levam a prever que a Lusonia tem também de desaparecer como a sua Ilha encantada. Aqui a nossa raça foi invadida pelos Celtas loiros turbulentos; aqui nos tem explorado os Fenícios e Jónios, destruindo a nossa navegação no Oceano, metendo a pique as nossas barcas; aqui nos roubaram pelo seu comércio os Cartagineses, que atraíram sobre nós a pilhagem dos Romanos, que hoje temos vencido, mas que não largam a presa.

Enquanto a barca de couro seguia para a ilha de Achale, ia Viriato reconcentrado e silencioso, como absorto na alta missão da sua vida; ao ouvir aquelas palavras de Andaca, obedecendo a um impulso íntimo da sua intuição quase profética, exclamou para os três companheiros:

— Não serão somente os Romanos que hão de pensar em submeter ao jugo as tribos da Lusonia; outros povos ou outras raças virão do norte e do sul, e se espalharão sobre este território julgando possui-lo pela força da conquista. A Lusonia pode ser temporariamente vencida, mas nunca doutrem subjugada; não se extingue, porque a sua liberdade subsistirá nas almas, e cedo ou tarde manifesta-se em espirito e renasce em restauração gloriosa.

As suas palavras foram interrompidas porque a barca de couro dobrara o promontório Cepressico, e apareceu repentinamente à vista a Ilha sagrada de Achale.

— É ali, é ali que se guardam os tesouros salvos ás devastações e rapinas dos Romanos; outros povos lançam os seus tesouros aos lagos escuros, como melhor meio de defesa. Mas quem saberá da existência desta ilha misteriosa? Ninguém; ninguém.

Minouro fitou a ilha, contemplando-a com espanto, na preocupação que desde aquela hora sabia aonde se guardava o chamado Tesouro do Luso. A mesma ideia tornou-se uma obsessão para Ditálcon. A barca chegava já ás rochas escarpadas da ilha de Achale, sobre a qual se erguia uma Torre redonda de três andares, como sentinela do Oceano tenebroso.

Ereta sobre o pequeno promontório, a Torre redonda de uma surpreendente elegância, era construída de fortes blocos aparelhados de pedra seca, tendo no cocuruto um teto também de pedra em forma cónica. Dos seus três andares ou quadras sobe-se por escadas em caracol formadas em pequenas torres laterais que terminam em ameias.

O interior é iluminado por seteiras geminadas, e a porta única da entrada está a uma altura do chão para a qual se sobe por uma escada móvel que se faz baixar quando é necessário. Como lugar de refúgio ali estão depositadas as folhas plúmbeas que têm impressos os títulos das famílias, e relações dos sucessos memoráveis, Crescentes e Virias de ouro, Fíbulas mamilares, Tiaras e Bastões de prata, insígnias do comando dos patriarcas. Ali na Torre redonda se conserva o Fogo perpetuo consagrado a Samham, o Julgador dos mortos, cujos ritos se celebram no primeiro dia de Novembro. Consagradas a esse culto dos Antepassados aí residem as Gemades (de Genmaidh, puro e casto) mulheres formando uma como classe de Vestalato ou Lucae dominicae; e ali comparecem os tocadores das Harpas tríplices ou de três cordas, chamadas Telyne, que com sons fortes e vibrantes enchem o ambiente acompanhando os cânticos de uma inspiração divina expressa pela palavra Awen.

E torneando a ilha, para fazer o desembarque, perguntava Andaca:

— Não tem porto, Achale?

Nisto roçou a barca numa lingueta de areia, que se ia ali formando em cabedelo, e que com o andar dos seculos encheu esse ponto de comunicação do rio Sado com o Oceano tornando-se com as turfeiras uma extensa península, sobre a qual se acumularam aparatosos monumentos, que pelo seu turno foram também devastados pelo tempo.

Viriato e os seus três companheiros desembarcaram alegres; Idevor com um longo séquito de Endres, ou cantores e educadores do povo, veio ao seu encontro, e entre músicas ruidosas e hinos festivais foram conduzidos para a vasta quadra que formava o andar térreo da Torre redonda. Era aí a sala do banquete, em que se fazia a Simposia dos Chefes das Contrebias lusonias, quando se manifestavam sobre os destinos nacionais. Era a primeira vez que Viriato se assentava à cabeceira da mesa, como se fosse um Bren ou Hegmon das tribos.

E apenas Idevor o conduzira ao seu lugar, entraram na quadra nove donzelas encantadoras, das mais belas do tipo da raça, cingidos os cabelos castanhos com litas douradas que desciam com as madeixas soltas ao longo das costas; e dançando em volteios com sentido hierático, e cantando em uníssono um coro que repetiam, foi o seu canto interrompido por uma voz argentina que parecia partir do alto da sonora quadra.

Viriato ergueu os olhos para descobrir donde vinha aquela voz que o penetrou com uma vibração sedutora e dominativa, e viu lentamente descendo do primeiro andar da Torre redonda uma Donzela de uma graça e frescura sobre-humana.

Era Lísia, a filha do velho Endre, e como era conhecedora dos mitos da raça, e guarda das tradições mais augustas das tribos lusonias. Estava vestida com uma túnica branca guarnecida de purpura de Elisa, que os Tírios tinham tornado célebre no mundo, cingida por um cinto de malha de ouro; uma lúnula de ouro chato com finos ornamentos abarcava-lhe todo o alto da cabeça e vinha ás pontas das orelhas. Era uma Senothêa, cercada por um grupo de nove Virgens, com quem no alto da Torre redonda celebrava os mistérios cultuais. Lísia acabou de descer o longo escadório, e atravessando por entre o coro das donzelas, que a foram seguindo, tomou de uma área a taça de ouro destinada ás simpósios, e chegando em frente de Viriato, estendeu o braço desnudado, alvíssimo e de um contorno escultural, apresentando-lhe a taça de ouro:

— Bem vindo! Viriato. Só para ti, e com a minha felicidade.

Sob uma emoção repentina e como que subjugado pela beleza extrema que ali lhe aparecia, Viriato tomou a taça da branca mão de Lísia e extático, paralisado no seu movimento, não a levou logo aos lábios. No rosto de Lísia transpareceu uma melancolia instantânea; seria desatendida a sua escolha? não a amaria o guerreiro de que tanto lhe falavam, cujo nome se repetia nos cantos do povo e em hinos de vitória?

Tudo o amor adivinha; lê nas almas, e o silêncio é a linguagem mais expressiva da emoção inefável. Viriato compreendeu o vislumbre de tristeza que obumbrou o rosto de Lísia, e acudindo à hesitação involuntária de que não se apercebera, levou a taça de ouro aos lábios:

— Á tua saúde! e para sempre.

Entrega em seguida a taça a Lísia, que com um rubor fascinante a levou aos lábios, como completando a cerimonia tradicional esponsalícia, murmurando com suavidade:

— Para sempre!

E enquanto se entreolhavam num invencível enlevo, Idevor ergueu ambas as mãos abençoando-os, lembrando-se de que aquela criança bela perdera toda a sua família na mortandade de Galba, e de que aquele homem forte surgira como o vingador e o libertador da Lusitânia. Essas duas almas fugiam uma para a outra. As nove donzelas que acompanhavam Lísia como uma forma não organizada do Vestalato, mas que poderiam ser comparadas ás Senae ou Barrigenes gaulesas, cantaram um hino de amor, ao som de tetracordes, sobre a frase que Viriato e Lísia tinham trocado:

Para sempre — no espaço
A estrela
Erma, bela,
Fulgor vivo derrama:
De paixão nunca lasso,
O que fará quem ama?
Para sempre — o sol flavo
Solta a flux
Vida, luz,
Que o seu calor inflama;
Da atração pura escravo
O que fará quem ama?
Para sempre — o Oceano
Tudo alaga
Com a vaga
Que plangente rebrama;
Da alma no doce engano,
O que fará quem ama?
Para sempre — sereno
O luar
Faz pensar,
E mil saudades chama;
No enlevo mais ameno,
O que fará quem ama?
Para sempre, — e sem calma
A paixão
Na atração
Do enlevo aumenta a chama;
E embala o engano da alma
Para sempre em quem ama!

O hino de amor desdobrava-se num coral uníssono no retornelo. O que fará quem ama? — deixando uma impressão mais que humana. Enquanto os ecos do festival se repetiam por todas as quadras da Torre redonda, Lísia, de mãos dadas com Viriato, foi percorrendo a sala à volta, cumprimentando os assistentes, que se inclinavam com simpatia. Dali subiram os dois para o terceiro e último andar da Torre donde se alcançava a extensão imensa do mar azulado, que refletia o cariz de um céu sereno e sem nuvens.

— Como as nossas almas! — disse-lhe Lísia, apontando todo aquele ambiente.

Ali, naquele retiro ignorado do mundo e até aonde somente Lísia tinha acesso pela sua qualidade de Senothêa, ali, de pé, junto de Viriato, e contemplando o Oceano profundamente plácido naquele dia, confessou-lhe a noiva ingénua:

— Nunca te tinha visto, mas representava-te na mente assim como és. Como Senothêa e para que te entregue completamente a minha vontade, só me falta uma prova de ti. Tens de responder a um Enigma.

— O coração que ama tudo adivinha.

Então Lísia proferiu com incerteza este Enigma de carater religioso:

Vive sem ter corpo,
No vale ou em gruta;
Fala sem ter boca,
Sem ouvido escuta?

— Esse Enigma, devolveu Viriato, foi-me revelado pela tua voz, quando pela abóbada desta Torre, lhe escutei o suavíssimo Eco.

— Bem se vê que tens entrado em grutas e cavernas sagradas. Eu bem sei que foi um Eco em misteriosa ressonância, que te proclamou invencível.

E tirando uma armilha de ouro do braço, fechou-a no pulso de Viriato, e atirou a chave ao mar, proferindo como em vaticínio:

— Para sempre!

E Viriato, tomando-lhe as mãos ambas:

— Eu ouvia falar de ti como uma aparição celeste, mas não tinha esperança de chegar a ver-te. Nesta vida de combates que levo, para a independência da nossa Pátria ser firmada, esperando a morte como consequência da luta, e então... morreria sem ver-te.

— Foi o teu amor pela Pátria lusitana que me fez pensar em ti e levou a amar-te como a alma dela. As tuas vitórias venceram-me também; e Virgem Senothêa do Colégio sacerdotal, que através de todas as perseguições e ruinas ainda aqui se conserva oculto nesta ilha sagrada de Achale, fiquei pertencendo-te desde que identificaste a tua vida com a independência da Lusitânia.

— É para mim muito mais do que a coroa de rei a escolha que de mim fizeste para o teu esposo. — disse Viriato, tomando as mãos de Lísia e beijando-as trémulo.

Lísia aproximou a face imaculada da boca do guerreiro, que a oculou com emoção e pureza, na ingenuidade de herói, que fazia desse beijo não um prazer mas um sacramento. Viriato ficou mudo por algum tempo, fitando o mar como esquecido de si.

Lísia, com ternura e graça, perguntou-lhe:

— Quando te entreguei a taça de ouro, porque é que hesitaste em leva-la aos lábios?

— Dominou-me o espasmo de uma impressão divina.

— Compreendeste a minha tristeza nesse momento rápido. Ah, nesse momento decidiu-se na minha alma uma determinação mais forte do que o meu desejo, e que se tornou num voto religioso. Levaste a taça de ouro aos lábios aceitando a minha escolha; mas... só virei a ser a tua Esposa, cobrir-nos-á o mesmo cortinado quando um General romano te pedir a Paz.

— Lísia, escolheste-me para o teu esposo! Entrego-me à tua vontade, — para sempre. A condição que revelas é um impossível, por ventura para não te destituíres da hierarquia de Senothêa? Virgem dos mistérios cultuais, nunca deixarei de amar-te, elevando-me a uma adoração pura, e tirando deste santo amor o impulso para vencer os Romanos, e para... que digo eu? deixa-me delirar um instante, para forçar um Pretor, um Cônsul a pedir-me a Paz. Eu também jurei sobre a Pedra focal não ter família em quanto não expulsar os Romanos da Lusitânia.

Nas palavras de Viriato acentuara-se uma vibração de confiança em si, para, servindo a causa santa da liberdade da pátria lusa, cumprir a condição quase ultra-humana que Lísia lhe impusera. Lísia também teve a presciência de que isso aconteceria, e tirando o anel de esmeralda que trazia, meteu-o no dedo da mão esquerda de Viriato, naquele em que se diz passar a vena-percordial.

E desceram ambos da Torre redonda, mais unificados nas almas do que se tivessem coabitado numa concórdia de anos de ventura. Viriato daquele dia em diante tinha mais do que a Espada invencível, que o não deixaria ser derrotado na guerra, nem morrer em combate; era o Anel de Lísia, que lhe infundia na alma uma confiança no futuro da inextinguível raça lusitana através de todos os desastres em que a envolvessem as vicissitudes dos tempos vindouros. Viriato via no Terçado e no Anel os Talismãs que pelo poder da tradição formariam o Tesouro do Luso.

CAPÍTULO XXXIII

No segundo dia em que Viriato passou na ilha sagrada de Achale, o velho Endre Idevor levou-o ao primeiro andar da Torre redonda, e aí ambos a sós, fitando o mar, demoraram-se longo tempo num recolhimento misterioso; falava Idevor:

— «Tens a força material, nessa Espada Gaizus, que te torna invencível: a força moral é a que não se extingue e mais se comunica.

Já que o teu braço serve com lealdade a causa da Lusitânia, é preciso que o teu espirito seja apoiado pela Tradição da nossa raça; que a conheças, porque a tua memória sobreviverá nela, e que com ela ligues num vínculo afetivo todos os companheiros de armas que seguem o teu comando. A tradição do passado é dolorosa, mas sublime; nós os Lusos somos um ramo dessa grande raça navegadora que desceu do Norte pela borda ocidental da Europa, ocupou as ilhas Britânicas, a orla atlântica das Gálias, da Aquitânia, e espalhando-se na Hispânia, chegou ás ilhas Mediterrâneas e à alta Itália.

«Esse povo navegador, que explorava os mares e os rios, como os anfíbios, tirou desta qualidade os nomes de muitas das suas tribos, que formam Ligas hanseáticas para protegerem a sua atividade mercantil, vendendo os blocos de Âmbar amarelo que iam buscar aos mares do Norte. Esse grande Povo, donde proviemos, encetou as audaciosas navegações do Oceano atlântico, descobrindo aí as Ilhas Afortunadas, tocando num ignorado continente que fica lá para as bandas do Oeste ou a terra dos Aymaras, a quem comunicou a sua civilização e conhecimentos de astronomia. E desembarcando na costa africana, chegou ao Golfo pérsico, e depois de estacionar na ilha de Dilmun, ocupou a baixa Chaldêa, dirigido por Oanes ou Huan, que na velha língua designava o Sol, que era o guia certo desses navegadores primeiros.

«Perdeu-se a notícia destas largas navegações; a raça foi atacada por outras raças fortes melhor armadas ou mais astutas. Em terra os Celtas, armados com espadas de ferro, bateram e dominaram os que só conheciam espadas de bronze; e essa raça corpulenta e loura, irrequieta e inculta, bateu os Ligures, escravizou-os ou misturou-se com eles desnaturando-os da sua pureza primitiva. Por mar os Fenícios e os Jónios do Mediterrâneo lançaram-se no esteiro das suas navegações e metiam a pique todos os baixéis ligúricos que encontravam. Nesta longa luta é que os Ligures foram sucumbindo; sobretudo na Hispânia, quando os Iberos, vindos do norte da Africa, aqui entraram e monopolizaram o comercio do estanho que iam buscar ás Ilhas Cassitérides.

«Outras raças vieram sucessivamente à ocupação da Hispânia, e aqui foram comprimindo a raça de Lez, o generoso povo da Lusonia, empurrando-o para a faixa ocidental, e como que procurando arroja-lo ao mar Oceano. É no conflito destas raças invasoras que a Lusitânia tem diminuído de território, e as suas tribos vão sendo desmembradas. Os Romanos acharam-nos já enfraquecidos, mas tenazes, tendo resistido na faixa que hoje ocupámos, à antiga invasão dos Celtas, e até agora nunca confundidos nem incorporados pelos Iberos. É com esta força de resistência imanente na possa raça que deves contar; ela vale mais do que muitos exércitos disciplinados, estes morrem mas esse sentimento é inextinguível. A Lusitânia não é somente um território maior ou menor, que nos agrega; é uma alma, o seio que nos une a todos! Os Jónios roubaram-nos as nossas tradições poéticas, transportando para as cabotagens do mar Mediterrâneo as nossas aventuras temerosas passadas no Atlântico, que se tornou para os seus geógrafos o Mar Tenebroso. Os Fenícios afundaram os nossos baixéis e apoderaram-se dos nossos Períplos e do nosso comércio. E depois de tanta devastação do estrangeiro, vem ainda um outro invasor estrangeiro, a grande e generosa Roma votar-nos ao extermínio para assim firmar a sua posse pacífica da Hispânia, segura de que o Ibero se considera honrado com a expolição do seu domínio. Hoje, Roma conta com a antipatia do Ibero para subjugar a Lusitânia: com o odio do Ibero contará mais tarde qualquer outra potência estrangeira para submeter a Lusitânia, dando-se como protetora da sua autonomia! Mas, para que levantar o véu do futuro?...»

Idevor explicara longamente este quadro do passado da raça dos Ligures, e a situação sempre combatida das tribos da Lusonia, quando ela tocava quase os Pirenéus, e mesmo as margens do Mediterrâneo. Mostrara a Viriato as moedas autónomas das antigas cidades peninsulares, as armas dos seus heróis, os colares do comando, por onde o Chefe ficou conhecendo todos aqueles povos agora desmembrados entre os Celtiberos, que pertenciam à unidade da Pátria lusitana. Por este conhecimento precioso Viriato adquiriu um poder moral enorme para ligar a todos eles na defesa contra o Romano.

No terceiro e último dia em que Viriato se conservou na Ilha sagrada de Achale, o velho Endre subiu com ele ao terceiro andar da Torre redonda, para aventar rapidamente alguns traços do futuro:

— «Vês esse Mar imenso! esse Atlântico, que os baixéis ligúricos sulcaram destemidos outrora, e hoje o Fenício monopoliza? Quando o Luso se vir comprimido entre as raças que avançam de leste e o mar, que hoje lhe serve de barreira defensiva, ele terá consciência da sua missão no mundo, sentirá em si renascer a antiga energia da raça, e restabelecendo as grandes Navegações antigas fundará novos Impérios em vastos continentes agora ignorados. É este o destino da Lusitânia: será a primeira das Nações, enquanto ela servir esta tradição, enquanto um fiel aliado estrangeiro a não espoliar das suas descobertas...»

O Endre não era bem compreendido; o prazo chegara, e a barca de couro já flutuava junto da lingueta de areia no porto de Achale. Viriato desceu da Torre redonda, acompanhado pelo Endre e pelo coro das Virgens à frente das quais vinha Lísia; embarcou, chegando em breve à costa de Cetobriga onde o esperavam com ansiedade.

Lísia dissera-lhe à despedida:

— Agora tens o teu espirito iniciado para ires à Pedra Virgem, e lá tomares conhecimento do antigo Poema de seis mil versos, gravados nos Bastões dos Poetas. Não basta dar unidade ás tribos lusitanas pelo poder da Espada: a Tradição conservada na árvore de Ogham, de que o ramo inicial e mais caraterístico se denomina Luís, bem revela que os destinos da Lusonia se eternizarão pelo prestígio do seu Canto nacional. Eu pedirei a Idevor, que te guie à Caverna das Inscrições oghmicas, junto à margem do Durius, e lá te descubra o grande Poema da raça, esse Pregão eterno do génio luso.

CAPÍTULO XXXIV

Apenas Viriato se reunira aos seus Mil Soldúrios, que o aguardavam impacientes, correu a notícia de que o Cônsul Quinto Fábio Máximo Emiliano, que fora eleito naquele ano de DCIX da fundação de Roma, já pisava o solo da Hispânia, vindo comandar pessoalmente a guerra. Considerava-se em Roma esse expediente como decisivo para assegurar o domínio da península embaraçado por umas miseráveis tribos que tinham a ousadia de quererem ser livres.

Quinto Fábio saiu de Roma descontente, porque somente conseguira completar duas Legiões novas para reforçar aquelas já cansadas de que dispunha Caio Lelio. Sabendo desta impotência, o Cônsul compreendeu os conselhos prudentes de Lelio, não pensando em dar começo à campanha sem se informar do território e dos costumes do temeroso inimigo, e mesmo dos elementos hostis indígenas que poderiam coadjuva-lo; de mais, era conveniente desfazer as prevenções pessimistas que apavoravam as tropas. Quinto Fábio não foi ao encontro de Viriato; e como que fugindo a uma conflagração, que poderia ser um desdouro para as armas romanas, procurara ponto estratégico para colocar o seu exército, a coberto de qualquer surpresa do Cabecilha lusitano. Procurou a grande planície cortada pelo rio Bétis, porque aí existiam numerosas Colonias romanas, que eram outras tantas guardas avançadas que lhe asseguravam a defesa.

Desceu até à extremidade oriental da Turdetânia, aonde predominavam povoações ibéricas, para as quais o jugo romano se tornava uma honra; e aí, na cidade de Orson ou Urso, assentou os seus arraiais com toda a segurança. A posição era de uma firmeza imperturbável, porque se achava rodeada por muitas Colonias militares importantes, tais como a Italica, da parte continental ou interior, tendo apoio na cidade mais opulenta e populosa de toda a Betica, Hispalis, empório comercial ativo e rico, com um semicírculo de fortalezas afamadas cheias de provisões, que eram Carmona, Astigi, Ucubi e Tuci. E como se isto ainda não bastasse para garantir a proteção ao exército, ainda mais para o norte lá estava Córdoba, a capital da Hispânia ulterior, para impedir qualquer incursão do inimigo. Quinto Fábio podia estar seguro, porque com estes recursos era impossível molesta-lo do lado da terra; pelo litoral também não era presumível o perigo, antes pelo contrário para uma eventualidade sinistra facilmente se refugiaria com o exército nas fortes muralhas de Gades, de Carteia e de Malaca.

Por certo o exército que Fábio veio tomar do comando de Lelio estaria em situação desesperada, para que ele assim procedesse estabelecendo o seu arraial com uma exclusiva preocupação defensiva. Dispostas todas as forças nos seus quarteis, cada dia que passavam na inatividade era um motivo de enfraquecimento e de indisciplina; para justificar essa necessária apatia, Quinto Fábio simulou uma excursão ou teoria ao templo de Hercules Gaditano, para tornar propicio o Deus das povoações ibero-fenícias, e oferecer-lhe um aparatoso sacrifício, para assim lisonjear a credulidade desses povos e liga-lo aos interesses de Roma.

A ausência do Cônsul impunha a necessidade ao seu lugar-tenente de manter a disciplina do exército em operações contínuas de adestração, acostumando-o ás embocadas e surpresas de um inimigo incansável e sempre empregando expedientes imprevistos. Nem por isso o animo da soldadesca se alevantava, porque o conhecimento das derrotas anteriores era um nefasto agouro; e além disso pobres mercenários recrutados à força por todas as colonias e conquistas romanas não eram impelidos por um sentimento, como aqueles para quem morrer sobre o solo da Pátria que defendiam era uma glória e um delicioso sacrifício.

Enquanto Fábio se demorava na excursão ao Templo de Hercules Gaditano, evitava decentemente qualquer batalha com Viriato, que se julgava muito longe; e o seu exército ia cobrando alento para o momento oportuno. E não era o tempo perdido, porque o Cônsul conseguira, talvez pelas indicações de Caio Lelio, travar relações com chefes de algumas cidades dos Túrdulos, dos Turdetanos, e principalmente das cidades Célticas, que já se mostravam cansadas destas guerras prolongadas que estavam embaraçando a entrada da civilização romana na península hispânica.

Viriato não temia o exército de Fábio; conhecia que as duas Legiões recém-chegadas de Roma eram maltrapilhos apanhados nos enxurros da cidade, bisonhos desprezíveis estranhos a todo o valor e espirito militar; os que cá estavam não podiam esquecer os revezes a que escaparam e as derrotas que lhes infligira com vontade. Mas, uma coisa preocupava o Cabecilha: as conferências de Quinto Fábio com chefes civis túrdulos e turdetanos, as suas visitas aparatosas a cidades Célticas, revelavam-lhe que o Cônsul procurava uma nova força não no exército, mas no descontentamento das povoações que naturalmente eram antinómicas com a liberdade da Lusitânia. E reconhecendo que toda a demora na ação era uma oportunidade para Fábio se reforçar com este antagonismo de raça, Viriato decidiu ir atacar o arraial em que se defendera o exército romano, começando por se ocultar pelas florestas circunvizinhas da cidade de Orson.

Fez-se essa operação com extrema perícia, porque os Terços lusitanos dirigiram-se de afastados pontos para a extremidade oriental da Turdetânia, e insensivelmente se internaram por Companhias nas cerradas florestas dessa vastíssima planura.

Não se fez esperar o primeiro golpe; do exército de Fábio saiu um destacamento de uns quinhentos homens para ir buscar lenha à floresta mais próxima da cidade de Orson; iam muitos carros puxados por bois e por cavalos. Quando estavam abatendo os troncos, de todos os lados surgiram os Companheiros de Viriato, rapidamente, e tão certos no plano, que esses quinhentos foram totalmente trucidados, sem que a notícia terrível pudesse ser levada a Orson.

A demora dos mateiros fez com que o lugar-tenente de Fábio mandasse ver que extraordinário caso se dera; trouxeram-lhe a notícia do morticínio, mas longe de suspeitar que um tal golpe só poderia ser dado pela audácia de Viriato, o lugar-tenente alardeando conhecimento dos costumes da Hispânia, exclamou:

— Foi uma partida de Salteadores, uma destas Quadrilhas que vivem do roubo e depredações, tão constantes na Hispânia. Irei castiga-lo, eu mesmo.

E pondo-se à frente de uma Legião, dirigiu-se para a floresta próxima de Orson, na ideia de que apanharia os Salteadores. Assim que dividiu as forças para o cerco e batida, saíram-lhe das outras florestas os Terços de Viriato, que subitamente caem sobre os manípulos romanos e os destroçam completamente.

Os que conseguiram fugir levaram o terror ao exército aquartelado em Orson; e sob a tremenda impressão foram emissários levar a Fábio, que estava ainda em Gades, a notícia espantosa, que o forçou a partir a toda a pressa, e a vir tomar o comando do exército para proceder conforme o exigia a presença do inimigo.

O Cônsul estava bem industriado, e guardou-se de dar batalha campal a Viriato; fez como o Caudilho, respondia ás escaramuças com outras escaramuças; não perdia gente, e tendo o seu exército bem aprovisionado, considerava estes pequenos assaltos em que ficavam no campo trinta, cinquenta homens, como uma escola em que adestrava os seus soldados à índole especialíssima desta guerra sem igual.

CAPÍTULO XXXV

Aproximava-se o fim do Consulado de Fábio, e fatigava-o a indecisão da campanha, quando se resolveu a abrir o tratado que lhe confiara o Senado. Era momento azado para negociar a aliança, porque não tinha sido derrotado, nem tampouco qualquer vitória recente ensoberbeceria o Cabecilha, para impor condições vergonhosas. Mandou um emissário a Viriato com as cláusulas formuladas pelo Senado, confiado em que a paz e aliança com Roma nas bases do Foedum aequus era uma solução honrosa em tão violenta campanha, satisfazendo equitativamente as aspirações da Lusitânia.

Viriato percebeu todo o alcance do Tratado, logo que descobriu a perfídia com que o Senado procurava seduzi-lo pela vaidade, reconhecendo-o como Príncipe da Lusitânia. E na sua linguagem franca e rude, mas luminosa de bom senso, falou ao emissário entregando o diploma que lhe fora confiado:

— Dizei a Quinto Fábio, que a paz e independência da Lusitânia é o empenho a que consagrei a minha vida; e que a aliança com Roma, nessa base de igualdade politica, será efetivamente uma garantia para a autonomia porque combatemos. Mas no tratado que o Senado propõe há uma frase que fere o nosso sentimento nacional, quando me compara a Rómulo, que foi chefe de ladrões e que teve habilidade para dar à sua quadrilha a coesão de um Estado entre as Cidades itálicas.

«A Lusitânia é constituída por cidades livres e trabalhadoras, subsistindo pelos costumes dos antepassados a que chamamos Foros; e muito se engana quem procura fazer que eu seja considerado como chefe de Salteadores, embora me equiparem a Rómulo. São modos de falar, e sem mais valor do que banais comparações; mas o que eu repilo com todas as veras de alma é o titulo de Príncipe da Lusitânia. Não é a simpleza dura do meu carater ou isenção que me leva a recusar esse título; é o conhecimento da tradição desta terra livre porque combato.»

«A Lusitânia nunca teve reis, e por isso foi sempre autónoma. No dia em que as suas cidades confederadas se submeterem a um chefe soberano, começará a sua servidão; esse Rei, preocupando-se unicamente do seu interesse pessoal e da hereditariedade da sua família numa Dinastia irresponsável, tratará de unificar sob um mesmo cetro a Lusitânia e a Ibéria, jungindo as duas nações como os bois ao carro. Para alcançar esta unificação, começará pelos meios capciosos dos casamentos reais, para vir a conseguir pelas heranças a juncão das soberanias. E se estes meios falharem, o Rei procurará alianças com outros reis estrangeiros que o defendam, comprando a estabilidade do seu trono à custa da liberdade, da independência e até do território da Lusitânia, desmembrando-a se lhe for preciso, ou chamando o estrangeiro para se impor ao seu povo, ou abandonando-o na hora do perigo, deixando-o entregue ao assalto dos invasores.

«É isto um Rei, planta parasita e daninha, que esterilizaria toda a Lusitânia. E Roma bem o pressentiu, quando para subjugar esta terra, vendo-se impotente pelas armas, recorre a um instrumento de íntima dissolução dotando-a com um Príncipe, aclamando um Soberano. Rejeito o glorioso título, que é uma afronta para Cidades livres, ligadas federativamente com as suas autonomias locais. A aliança para a paz e francas relações de comércio entre os dois povos, essa abraço-a em condições de igualdade agora e sempre; mas estou certo de que o Senado visa a outros fins, tem outros intuitos.»

O emissário de Quinto Fábio partiu, assombrado daquele desinteresse do Caudilho lusitano, que em Roma passava por chefe de ladrões. A incompreensão do valor moral de Viriato era uma das maiores causas dos generais romanos serem continuamente derrotados; contavam com o homem audaz, mas não com a grandeza do carater.

CAPÍTULO XXXVI

O tempo despendeu-se nestes preparativos de uma ação estrondosa e decisiva, quando começaram as primeiras chuvas do inverno; o corículo do Consulado de Fábio estava terminado, e com ele o seu comando, em verdade estéril e inglório. Poderia considerar-se equivalente a uma derrota surda. Em Roma falava-se agressivamente contra Quinto Fábio, como deslustrando as tradições heroicas da família Emiliana. Aconteceu que nesse ano de DCX foram eleitos Cônsules Servio Sulpicio Galba, esse antigo Pretor que ordenara traiçoeiramente o morticínio dos trinta mil Lusitanos, o qual se enriquecera com os latrocínios do seu governo provincial, e Lúcio Aurélio Cota, que com ele compartilhava nesse ano o poder, e também era em Roma assas conhecido por uma avareza sórdida e insaciável ambição de dinheiro.

A guerra da Lusitânia apareceu para esses dois Cônsules como uma venturosa espectativa; o comando do exército facultava o exercerem em nome da Republica todas as extorsões e vilezas. Ambos os Cônsules disputavam entre si o comando da guerra contra Viriato. Galba não queria perder a oportunidade que se lhe apresentava; era o meio de voltar à Hispânia e de reconstituir a sua riqueza malbaratada ou perdida. Lúcio Cota já sonhava em vir a ser o argentário mais preponderante de Roma.

Galba alegava:

— Já fui Pretor em Hispânia e governei a Província da Lusitânia; conheço aqueles territórios, aquelas gentes e os seus costumes. Sou temido, e a lembrança do meu nome fará fugir diante das Legiões romanas todas essas tribos de ladrões e bárbaros. Só eu tenho no atual momento as condições excecionais para comandar essa guerra que se vai tornando uma vergonha. Os Lusitanos bem sabem que eu não me pago com palavras.

Os credores e parasitas de Servio Galba apoiavam aquelas pretensões aparentemente plausíveis. Os partidários de Lúcio Cota conclamavam:

— Ainda nos não esqueceu a acusação tremenda de Catão o Censor. O governo de Galba na Lusitânia infamou Roma com uma nodoa indelével.

Galba é o único homem a quem não pode ser confiado o comando da guerra contra Viriato, porque a sua presença levantaria na Hispânia as próprias pedras contra Roma. Seria a prova de que Roma não civiliza os povos bárbaros como proclama ao mundo, mas rouba-os, devasta-os, porque subsiste por esse expediente que a dispensa no seu exclusivismo militar de toda a atividade agrícola ou fabril. Galba por forma nenhuma!

Esta questão foi debatida no Senado; até aí, entre esses venerandos patrícios, sentados soberanamente nas suas cadeiras ebúrneas, se dividiram as opiniões, uns por Galba, outros por Cota. Mas quando se discutia o assunto, levantou-se o senador Cipião Emiliano, e erguendo a mão intimativamente exclamou com nitidez:

— Em meu entender, nem Galba, nem Cota merecem a confiança da Republica!

O Senado ficou no mais sepulcral silêncio ao ouvir aquela frase que era quase uma sentença. Cipião tinha grande autoridade e ascendente moral enorme depois que regressara da destruição de Cartago. Depois continuou a frase que mantivera em suspensão intencional:

— E não a merecem, porque um por aí anda arruinado após a dissipação das riquezas que roubou quando Pretor na Hispânia; o outro, pelo contrário, riquíssimo pela sua proverbial avareza, só trataria de se encher mais, servindo-lhe a guerra de pretexto para saciar os seus ávidos interesses.

A voz de Cipião impôs-se a todos os espíritos, dominados pela coragem com que formulara em pleno Senado o seu argumento. Para sair daquele embaraço o Senado achou como única tangente não melindrar a família Emiliana, prorrogando o comando militar e consular de Fábio, e que como Procônsul continuasse nesse ano a guerra da Lusitânia.

Substituir Quinto Fábio, quando ele já estava industriado na forma da guerra viriatina seria um erro perigoso; e a increpação do destruidor de Cartago teve sua oportunidade, porque nesse ano de DCX, passado o inverno, o Procônsul preparou-se para dar uma batalha campal a Viriato, e justificar assim a anterior inercia.

Viriato passara também esse inverno na Betica, porque conseguira tomar aí duas cidades em que assentou os arraiais. Fábio, apesar de ter aumentado enormemente o seu exército, exigindo contingentes das várias cidades aliadas dos Romanos, fiava-se mais nas informações que conseguira obter de gente que andava nas hostes do Cabecilha. Era esse o pensamento de Caio Lelio, sendo o caminho aproveitar o antagonismo da raça ibérica. E seguro de qualquer informação secretíssima e por via que nunca será conhecida, o Procônsul põe todo o seu exército em campo e ataca Viriato com todas as regras da poliorcética romana.

Viriato não hesitou um momento, pondo-se em frente do inimigo que bem conhecia; os seus Cavaleiros e infantes bateram-se desesperadamente, e quanto mais destroçavam as forças romanas, novas reservas acudiam a Quinto Fábio sucessivamente, por modo que Viriato, conhecendo que lhe fraquejava um flanco do seu exército, ordenou a tempo uma retirada sob Bécor, aonde as florestas, os rochedos e as ribanceiras intransitáveis o punham a salvo do exército romano, que foi perseguindo-o por algum tempo. Viriato deixou no campo muita da sua gente. Então, para vingar as perdas que sofrera, e o furor que lhe provocara o desaparecimento do Cabecilha em Bécor, foi Quinto Fábio com o seu exército ocupar as duas cidades que até agora estiveram sob o poder do chefe lusitano, dando ordem à soldadesca para o saque desenfreado, mandando em seguida lançar-lhes o fogo, passando à espada folego vivo que encontrassem.

Quando Viriato estava já seguro em Bécor do inopinado golpe em que o Procônsul levara vantagem, veio-lhe um pressentimento, que a ninguém quis comunicar:

— A forma do ataque de Fábio revela-me que se aproveitou de uma traição!

De repente chegou ao pé de Viriato o seu companheiro Andaca:

— Sabei que os Túrdulos e os Turdetanos depuseram as armas; e pediram paz a todo o transe; assim perdemos esse vasto território, todo o oriente da Betica.

Nisto chegou Minouro, o outro companheiro, e disse para Viriato:

— Os Célticos, que confinam com a nossa terra lusitana, por causa desta derrota voltaram-se para os Romanos, dizendo que querem pastorear os seus rebanhos em paz por esse Alentejo e Extremadura.

E enquanto Viriato se mostrava apreensivo, Andaca e Minouro afastaram-se um pouco e segredaram:

— A Espada invencível perdeu desta vez o encanto.

E sorriram-se numa íntima perfídia com uma satisfação que só eles ambos compreendiam.

CAPÍTULO XXXVII

Depois da aparente vitória de Fábio, que muito bem sabia a quem devera essa momentânea vantagem, recolheu-se o Procônsul à capital da Hispânia ulterior, à cidade de Córdoba para aí descansarem as tropas no rigor do inverno. Viriato reconheceu que avançara demais para sudeste da península, em que predominava o Ibero, e sentindo-se aí sem apoio nas populações, aproveitou a inatividade do Procônsul para levar o seu exército à Hispânia ulterior, onde era mais odiada a dominação romana, chamando à revolta desde o Anas e o Bétis até ao Promontório Trileuco, todas as tribos e populações em quem girava o sangue lusitano.

As revelações que na ilha sagrada de Achale Viriato recebera do Endre Idevor, dando-lhe viva compreensão desta Pátria ideal, por cuja unidade e autonomia batalhava; e o amor da sua noiva, a deslumbrante Lísia, que o escolhera para esposo exigindo por condição que o Romano lhe pedisse a paz, excitavam no valente Caudilho um heroísmo inquebrantável, e mais do que isso inspiraram-lhe o poder misterioso de falar ás almas, de estabelecer a harmonia dos sentimentos. A sua palavra começou então a ter tanta força como a sua Espada; e pelas terras por onde passava, deixava uma onda de insurreição, sintetizada num grito:

— Uma só vontade nos una! Guerra ao Romano!

Viriato dirigiu-se aquela região que vai das fronteiras dos Carpetanos até ao país dos Edetanos, que forma toda a parte oriental e ocidental da Celtibéria, aonde habitavam os Belitanos e os Titos, cujas Companhias destroçara há quatro anos, quando como aliados foram em auxílio do Pretor Caio Vetílio. A presença corajosa de Viriato alvoroçou a população; o Cabecilha falou-lhes com desassombro:

— Estais ressentidos de mim, e aqui me tendes se mereço a morte; mas ouvi-me. Eu luto pela independência da vossa pátria, que é a minha.

Vós, habitais esta parte da Celtibéria, que também é Lusitânia; porque os povos que aqui vivem não são Iberos, são Lusos separados pelo rio Ebro, sobre a sua margem direita. Estas duas raças são inconciliáveis! se elas se pudessem unir por um pacto de aliança, nunca nesta península hispânica se teriam estabelecido os Celtas vagabundos; nem aqui entrariam os Fenícios, nem os exércitos Cartagineses ocupariam o nosso solo. E como essa aliança nem pela necessidade da defesa mútua pode trazer a um acordo Iberos e Lusitanos, é por isso que as rivalidades entre os Cartagineses e Romanos trouxeram estes guerreiros a repeli-lo do nosso território, mas a impor-nos cruamente o seu domínio, arrasando as nossas cidades, e roubando-nos ignobilmente pêlos seus Pretores. Os Iberos foram aceitando o governo ou propriamente o jugo dos Romanos; os Lusitanos, que em Roma pelo testemunho dos seus generais são considerados os mais valentes e destemidos dos Povos celtibéricos, são os que resistem ao estrangeiro, os que aspiram a ter uma Pátria livre. Deixemos para além do Ebro o povo dos Iberos, que amam a autoridade fortemente constituída; contemos só connosco, Lusitanos a quem o espirito da revolta os impele a sacudir todo o jugo e a cortar a mão que ousa doma-lo. Desde o morticínio truculento feito à falsa fé por Galba em trinta mil Lusitanos chamados a uma assembleia pacífica, é que eu me insurgi contra essa clamorosa infâmia, e há sete anos que sustento uma campanha em prol da Pátria livre infligindo derrotas sucessivas aos exércitos romanos. Em Roma votou-se o extermínio, a aniquilação completa dos Lusitanos. Fábio já teve um simulacro de vitória, porque encontrou no elemento ibérico um meio de derrotar-nos, esse inconciliável antagonismo. Isso nos obriga à união das populações e cidades da Lusitânia. Vós, oh habitantes da Belia, desta Edetania, limite oriental da Celtibéria, vós sois Lusitanos, sem diferença alguma, como o reconhecem mesmo os viajantes.

Sois descendentes dos Lusos, que transpuseram há seculos imemóriais os Pirenéus vindos da Aquitânia, aonde existem ainda as tribos dos Elusatos; essas tribos dos Lusones fixaram-se nos montes que dividem os rios Jalon, Mosa, Henares e o Durio, estendendo-se até ao Mediterrâneo e Montes de Idugbeda; pelo ocidente alargaram-se do alto Durio até ao Tejo. Mas esta extensão primitiva da nossa Lusitânia, que podemos chamar Lusitânia oriental, foi sendo dividida pelas invasões estrangeiras, a começar pelos Iberos e Celtas, que a comprimiram para oeste, forçando os Lusos a concentrarem-se nas Beiras, na Extremadura cistagana, e por todo o Alentejo, formando hoje esta Lusitânia ocidental que começa no Promontório Sacro até aos Calaicos. Juntemos estas duas Lusitanias e teremos o domínio da Hispânia, que só será senhora do seu destino quando repelir todo o poder estrangeiro do seu solo. Aí estão as vossas cidades atestando pelos seus nomes, que ainda pertenceis a essa pátria primitiva, que nos une a todos: Lusera e Luzes, próximo de Jaen, estendendo-se até ao rio Tajuna; Luzago, Lucia e Alustante, próximo de Jalon; Lucos e Lucera, na parte meridional do Ebro. Foi por estarmos separados, que os estrangeiros nos invadiram, e o Romano nos aniquila para se manter pela expolição das nossas riquezas. O isolamento das cidades é a fraqueza; a federação cantonal é a garantia da independência.»

A voz de Viriato calou nos ânimos; os Belitanos reconheceram que se não diferençavam dos Lusitanos; e perdoando o castigo que o Cabecilha lhes infligira quando iam em socorro de Vetílio, bradaram erguendo ao alto as mãos direitas:

— Uma só vontade nos una! Guerra ao Romano.

Com essa gente da Edetania veio também o povo seu aliado da Titúlcia, a que chamavam os Titos, jurar o pacto defensivo. Mas aonde a voz de Viriato produziu um efeito vertiginoso, alucinante, foi entre os Arevacos, nas nascentes do Durio, que se firmavam na sua fortaleza inexpugnável de Numância, vizinha de Luzon.

— Bravos filhos da Lusonia! vós bem sabeis que todos os chefes militares que lutaram contra os Cartagineses, pela independência da nossa terra, e que coadjuvaram estes quando estavam em luta de extermínio contra os Romanos nas chamadas Guerras Púnicas, bem estareis lembrados que esses Chefes destemidos foram naturais da Celtibéria, que na sua parte oriental e ocidental era propriamente a Lusonia. Não podemos pronunciar o nome de Indortes, sem assombro; de Indibilis, Edecon e Mandonio, sem que sintamos referver o sangue num ímpeto de coragem;

Carus e Alucio, e ainda Istolacio, embora da geração dos Celtas, são a prova de que não nos falece o espirito de revolta e a capacidade do comando. Mas se os Chefes são gigantescos, que diremos dos seus Soldúrios e até da fraternidade heroica que elevava os seus servos? Quem se não recorda daquele general lusitano, Tago, a quem Asdrubal deu a morte? O feito do seu escravo, que lhe vingou a morte apunhalando Asdrubal junto das aras em que estava sacrificando, mostrará a todos os estrangeiros, qual é o vínculo que nos liga uns aos outros.»

Das partes dos Arevacos levantou-se um mancebo de aspeto robusto e gestos decididos; era bem conhecido como filho de Salondico e continuador da sua bravura, estando-lhe por isso confiado o governo da fortaleza de Numância. E batendo no peito como garantia de firmeza:

— Eu também repetirei: Uma só vontade nos una! e essa vontade seja a de Viriato conduzindo-nos à guerra contra o Romano, até o repelirmos da Hispânia, tornando a nossa Pátria livre. Diante de Numância estacará o poder das armas romanas! e se a fatalidade da guerra for contra nós, morreremos aí todos, mas morreremos livres.

Viriato abraçou o mancebo denodado, que lhe dizia reconhecido:

— Tu consagraste a memória do meu pai; por ti derramarei meu sangue quando o determines.

O incendio da guerra santa pregada por Viriato propagou-se para o norte da península, porque a Calaecia, a dos antigos, formara também parte da Lusitânia; numerosos bandos, partidos e guerrilhas foram mobilizados pelos Calaicos; como estes, também se insurrecionaram os Vaceos e os Vetões na Extremadura; os Túrdulos e os Turdetanos desligaram-se de Quinto Fábio Máximo; como numa onda que vinha crescendo, correram a engrossar esta corrente novas tribos movidas por um sentimento acordado pelo espirito que fortificava o braço de Viriato:

— o ideal de uma Pátria, síntese da unidade da raça até ali desmembrada, e de uma Tradição esquecida ou quase perdida. Pela primeira vez a Lusitânia teve a consciência da sua unificação étnica ao aceitar o pacto federativo contra o Romano, proposto por Viriato como uma força defensiva. A coragem do chefe lusitano era tão grande como a confiança no futuro da Lusitânia livre. Em todas as guerras da Hispânia nunca os Romanos encontraram um levantamento de povos assim vasto e unanime; era uma situação desesperada, que só por meios fora dos processos conhecidos poderia ser dominada.

Roma, na prossecução dos planos da sua política absorvente, desconhecia a coação moral; quando não confiava na força das armas, recorria ao poder do ouro, subjugando pela corrupção, e falhando os baixos expedientes, alcançava sempre o êxito descendo até á-traição. Perante o perigo da constituição federativa dos Povos lusitanos, Roma entrevia o seu triunfo na-morte de Viriato. E nunca faltaram traidores.

CAPÍTULO XXXVIII

Esperando o momento azado para recomeçar as operações militares, Quinto Fábio Máximo passara o inverno no seu quartel estabelecido na cidade de Córdoba, vendo que a espantosa revolução que irrompia entre as tribos lusitanas chegava à maior intensidade quando justamente estava a terminar o período do seu consulado. Ele pressentia, que em Roma a sua pretendida vitória era motivo de facecias; porque as notícias do levantamento de tantos povos à voz de Viriato, desde o Anas e Bétis até ao Promontório Trileuco, patenteava que o chefe lusitano redobrara de força e de prestígio depois da sua retirada para Bécor. Quinto Fábio, sob a incerteza se seria chamado a Roma, se continuaria no comando da Guerra viriatina, ou se outro Cônsul o viria substituir, passava os dias numa agitação moral que o perturbava profundamente, obrigando-o ao esforço de ocultar o seu estado de espirito, diante dos que o rodeavam. Na inação forçada da estação hiberna, ordenou certos divertimentos, que os Cônsules, na sumptuosidade de vida que usavam na Península, tornavam uma caraterística da grandeza romana.

A melhor parte do dia passava-se num lautíssimo e grandioso banquete, em que à parte as iguarias, em que predominava o salmão cosido em vinho branco, deliciava os convivas a parte espetaculosa, que se continuava pela noite adiante. Durante o banquete ressoavam as músicas próprias chamadas acromata, em que grupos de rapazes e raparigas ao som de flautas e liras cantavam desenvoltamente em meneios de danças e pantomimas, imitando situações dos mitos religiosos e das lendas homéricas. Eram sobretudo jovens sírias e gaditanas, que, ao som dos cantos licenciosos mais fascinavam pelas danças lascivas os convivas de Quinto Fábio. E para fazer contraste com a beleza das formas, apareciam de repente os anões e aleijados, que em contorções violentas, procurando imitar os equilibristas, que formavam pirâmides e torres ambulantes, dando cambalhotas e guinchos estridentes, suscitavam as mais estridulosas gargalhadas. à variedade e profusão das iguarias, correspondia a mudança dos divertimentos, destacando-se, pelo seu poder hilariante, os Imitadores, que reproduziam o canto dos galos, e o dos rouxinóis, os zurros do jumento, o miar dos gatos assanhados, macaqueando os gestos e a fala dos tipos mais conhecidos da cidade de Córdoba e mesmo de alguns Centúrios.

Quando Fábio estava cansado de rir de todas essas manifestações da indignidade humana, das disformidades físicas e degradações morais, então mandava que se fizessem as recitações poéticas, e apareciam com ramos de louro nas mãos os Homeristas, que ao som das liras de sete cordas e de cítaras declamavam episódios dos poemas do Ciclo homérico. Já estavam os candelabros acesos na sala do banquete, quando entraram os Homeristas, para recitarem alternadamente os cantos de um Poema, a que deram o título de Os Piratas tirrenos; e em quanto declamavam, figuras mudas num intermedio dramático iam representando todas as situações descritas:

«A bela e jovens Neera banhava-se descuidada nas ribas de Naxos.

«Aparecem subitamente os piratas do mar Tirreno e arrebatam-na, para a venderem para algum gineceu real.

*

«Meneclides, seu velho pai, deplora a perda do encanto da sua velhice.

«O namorado de Neera, encontra-o chorando, e persuade o velho para irem consultar o Oraculo. Partem ambos com ansiedade.

*

«No mar os Piratas disputam entre si a posse de Neera; e não se entendendo no meio da sua luta ameaçam de meterem o baixel a pique, e morrerem todos.

«O piloto impõe-se aos remeiros, dizendo, — que é melhor ir oferecer a cativa ao Rei de Corinto, porque assim alcançavam um porto de refúgio e abrigo, quando fossem perseguidos ou batidos pelas tempestades do mar.

«Neera é oferecida ao monarca: a formosura da cativa deslumbra-o.

«Corinto está numa grande desolação por uma terrível peste asiática e a mortandade é enorme. O Rei consulta o Oraculo; que responde: Que o seu Estado ficará livre da peste logo que ele despose uma prisioneira.

*

«Quando se faz o banquete das núpcias de Neera, aparecem dois forasteiros, o pai e o namorado de Neera, desfigurados pelas fadigas das jornadas, e por isso desconhecidos.

«Sentam os dois forasteiros à mesa, e dão ao velho Meneclides uma lira para entoar um cântico. Como uma boa rapsódia, desenvolveu numa canção saudosa o verso de uma tragedia de Sófocles: “É preciso para ser feliz. Viver no seu lar...!”

«A cativa, agora rainha, conhece pelo canto a voz do pai, e vê na fisionomia do rapaz que o acompanha a expressão do namorado, dos seus primeiros amores, Alcimo.

*

«O rapaz diz ao rei que é escultor, e que fizera as estátuas mais belas de Afrodite para os templos de Hélade; e que se prontifica a fazer a estátua de Neera.

«O Rei quer a estátua da esposa, mas com uma condição: Que o artista contemplando-a nua, logo que for terminada a obra ele morrerá, sendo assim a sua morte o véu do pudor.

«O rapaz aceita a condição resoluto: Neera pasma, receios. Começa o estudo das formas, das posições...

«E quando os dois amantes sentiam mais ardente a paixão primeira, e Alcimo achava impossível reproduzir no mármore tanta beleza, pressentindo que a morte os separará para sempre, num longo beijo assim lhe segreda:

— Que a mesma morte nos una!

«E de noite fugiram ambos do palácio, entrando numa barca, das que estavam varadas no porto de Corinto: foram mar em fora ao som da água, falando dos seus amores, vogando perdidos, e já muito longe, aos primeiros alvores da alvorada, Alcimo cantava:

Sobre o horizonte, quanto a vista alcança,
Reluz vaga esperança:
Branca vela! da salvação sinal:
— É o Sonho do Ideal.
Sucede à calmaria a viração,
— Do Amor a aspiração,
Que as nuvens da borraça longe espalha!
A vela branca assoalha.
Nas auras flutuando — esse estandarte
Nos leva ás regiões da Arte.
Que importa Sirtes ou parcéis? agora
Resplandece outra aurora,
Um céu azul nesses teus olhos! Vê-lo,
E certo rumo-o Belo!
Como buca outro clima uma andorinha,
Que o calor adivinha,
Fugimos! Crente, à proa
A alma para ti voa...
Pelo mar largo assim vamos os dois
Devaneando... Depois,
Neste enlevo sem fim, perdido o norte,
Que seja o porto a morte!»

Apenas acabara a recitação dos Homeristas, já apareciam na sala os Parasitos para dizerem chaços e graçolas; mas o Cônsul Quinto Fábio deu ordem para que se retirassem.

— O que desejará agora o Cônsul? diziam uns para os outros. Talvez alguma Tragedia? Que venha já imediatamente o Graeculo.

Quinto Fábio ouvira falar numa crença que os Povos da Lusitânia tinham sobre os poderes maravilhosos de uma Cerva branca; constava-lhe que um velho poema bárbaro celebrava esse mistério, pelo qual se explicava o prestígio dos homens políticos. Foi trazido um prisioneiro lusitano, que se lembrava de numerosas estrofes do Poema.

Disse-lhe o Cônsul:

— Tens a liberdade, se me recitares o Poema da Cerva branca.

— É o Poema de Abidis, do Príncipe fadado por invencível perante todos os perigos, e sempre subjugado pelo Amor. Nesse poema está simbolizado o génio da nossa raça lusitana: lutando indomável até à morte, mas deixando-se morrer de amor.

— Canta ou recita esse poema; e terás a liberdade.

O prisioneiro sentiu uma imensa alegria quando lhe tiraram as algemas; e começou numa melopeia estranha, que absorveu a atenção dos convivas:

Rimo de Abidis
Ouviu negro vaticínio
O rei Górgoris um dia:
Que do seu trono dourado
Um neto o despenharia!
Mandou fechar numa torre
Distante, redonda, esguia,
A Princesa sua filha,
Única herdeira que havia.
Triste, cativa a Princesa,
Cantava de noite e dia,
Para encher a soledade
Nas angústias que sofria.
Passa um Cavaleiro perto,
A doce música ouvia;
Mas, como subir à Torre?
Tão alta! quem poderia?
Deixara soltar as tranças,
E até à terra descia
Seu fino e lindo cabelo
Por onde o rapaz subia.
As noites eram auroras
Da mais intima alegria,
E as ausências tornavam
Cada vez mais negro o dia;
Até que desses amores,
Que ninguém suspeitaria,
Ao cabo de nove meses
Formoso Infante nascia.
Boas Fadas o fadaram,
A qual mais dons lhe daria:
— Invencível aos perigos
Será! uma fada dizia.
De amores sempre vencido,
Outra fada retorquia.
Toma o rei Górgoris conta
Do Infante apenas nado,
Que traz o nome de Abidis
No cinto em que é enfaixado.
Sempre o negro vaticínio
Ao velho rei é lembrado;
Só pensa em salvar o trono,
Leva ao crime tal cuidado.
Em uma estreita azinhaga
Deixa o neto abandonado,
Por onde passa correndo
Sua boiada, seu gado.
Pelo poder do destino
Não foi o Infante calcado!
O velho rei recrudesce
No odio ao neto votado,
E manda lança-lo ao monte
Certo de ser devorado
Por algum lobo faminto
Ou serpente do valado.
Foram dar com ele rindo
Na relva fresca do prado,
Lá por uma Cerva branca
Com carinho amamentado!
O velho rei mais raivoso
Mandou arroja-lo ao mar,
Crendo que as águas profundas
Hão de a criança afogar.
A onda a que a arremessaram
À praia a vem entregar!
Então Górgoris conhece
Que a Deusa Hertha o quis salvar.
Estrela do Mar se chama
A essa diva lunar,
Que traz por sagrado emblema
Uma Cerva branca a par.
Por causa da Cerva branca
Veio tanto odio a acabar.
O rei Górgoris tem glória
De Abidis seu reino herdar:
Como o neto, resistente
Seu Imperio há de ficar,
Anunciando-lhe a grandeza
Aquela Estrela do Mar!

Aproveitando-se de uma pausa ou hesitação de memória do prisioneiro, disse-lhe o Cônsul Quinto Fábio:

— Já faço ideia do poder da Cerva branca; conta agora algum lance desse invencível Abidis, sempre vencido de amores.

— Ah! Toda a história de Abidis ou Amadis, é quase inteiramente de amores; dava para encher muitos dias e seroar noites com peripécias sempre de encantar. Começo por uma:

Declaração de amor
Apalpando o lado esquerdo
Não achei o coração!
Na repentina surpresa,
Com tamanha inquietação,
Conheci que mo furtaram,
Não sei bem a ocasião...
Fui logo à procura dele
Buscando o rasto no chão,
Escutando atentamente,
Se lhe ouvia a pulsação!
Talvez esteja perdido
Em remota solidão?
Quando já sem esperança
Caía na deceção,
Fui dar com ele fechado
Em nevada, fina mão!
Não me atrevi a exigi-lo,
E eu mesmo, sorrindo então,
A quem assim mo levara
Tive de pedir perdão,
Porque há no amor a furto
O filtro da tentação.

O Cônsul, como homem culto, estava interessado pelas rimas do prisioneiro lusitano, que lhe pareciam barbaras mas impressionantes; e disse-lhe:

— Prometi-te a liberdade; para que a obtenhas de vez, é preciso que proclames em voz alta: «Viva o poder da grande e generosa Roma!»

O prisioneiro olhou desdenhosamente para Quinto Fábio, devolvendo com secura, e como num arranco de morte:

— Volto para o ergástulo.

E murmurando entre dentes com entranhado rancor, ao retomar as algemas:

— A Cerva branca ainda há de dar bastante que fazer aos Romanos! Oh, se há de!

A festa dos Acroamata era poucos instantes depois interrompida; chegara uma ordem categórica chamando a Roma Quinto Fábio Máximo Emiliano, e determinando-lhe a entrega imediata do comando do exército consular ao novo general Quinto Cecílio Metelo.

CAPÍTULO XXXIX

Com ordem expressa do Senado de abafar a insurreição o mais depressa possível e de reduzir Viriato aos seus incertos recursos, desembarcou em Tarragona o Cônsul Quinto Cecílio Metelo, que vinha acompanhado do Pretor Quíncio.

Corria o ano de DCXI da fundação de Roma; Metelo informou-se da situação da Celtibéria, e sabendo que os Arevacos se tinham rebelado, foi pôr cerco a Numância, de preferência, para aí conter o cabecilha Salondico, evitando que se unisse com Viriato. Nesse ano memorável começou o grande ciclo da Guerra numantina, que durou dez anos, terminando em DCXXI pelo suicídio heroico e espantoso dos vencidos. O Cônsul Metelo entregou o segundo corpo do exército ao Pretor Quíncio, encarregando-o de ir combater Viriato, que estava próximo da margem direita do Tagus.

Informado pelas suas eculcas, de que era procurado por Quíncio, esperou-o até ser visto, simulando que se retirava para as proximidades do Mons Veneris. O Pretor por inábil ou por confiado avançou em perseguição de Viriato, o qual reproduzindo as mesmas manobras, cujo efeito certo conhecia e com as quais quatro anos antes derrotara Plâncio, fez do Mons Veneris o seu abrigo; Quíncio continuou a avançar, e o cabecilha lusitano precipitando-se repentinamente sobre as Legiões romanas e envolvendo-as de súbito por todos os lados, fez um tal destroço e mortandade no exército romano, que o Pretor só conseguiu escapar numa pavorosa debandada, e sempre perseguido até refugiar-se no seu quartel de inverno em Córdoba. Muitos estandartes romanos foram arrancados das mãos dos hastários; e estes despojos, testemunho da vitória de Viriato, foram mandados para a ilha sagrada de Achale para serem colocados na Torre Redonda, consagrados como troféus ao Deus inominado.

Na sua fuga desvairada, o Pretor Quíncio dirigindo-se para Córdoba abriu passagem pelo país extremamente montanhoso dos Bastetanos, que se estendia para o sul até ao monte Ilipala, confrontando aí com os Túrdulos, ao ocidente com os Oretanos, ao norte com os Lobetanos, e com os Contestanos do litoral. Era principalmente aqui neste território dos Contestanos, que estava estabelecido o governo dos romanos, na cidade denominada Nova Cartago. Viriato não esqueceu esta circunstância, e não lhe bastando ter derrotado o Pretor Quíncio, submeteu a saque todas as povoações aliadas ou relacionadas com o poder de Roma. O Pretor fechou-se dentro das muralhas de Córdoba, sem esperança de que o Cônsul Quinto Cecílio Metelo viesse socorre-lo, porque achava-se empenhado tenazmente nos combates em volta de Numância, por forma que não se podia conjeturar o termo dessa nova guerra; e apavorado no seu reduto limitou-se a ordenar, que um ibero romanizado, como revela o seu nome Caio Mário, que estava com uma Legião em Italica, policiasse as cercanias de Córdoba para o avisar da presença de Viriato e evitar as suas correrias. É certo que o Pretor Quíncio não pôs mais o pé fora das muralhas de Córdoba.

O orgulho romano não podia conformar-se com esta humilhante derrota, e com a situação vergonhosa de Quíncio, dentro em Córdoba desde o meado do outono de DCXI. Desde que despontou a estação favorável para recomeçar a campanha contra os Lusitanos, o Senado nomeou para esse comando o novo Cônsul Quinto Fábio Máximo Serviliano. Seria ele mais feliz do que o seu irmão para vingar o lustre das armas romanas obscurecido pela audácia de Viriato?

Desde que Serviliano fora eleito Cônsul em DCXII, apoderou-se dele uma ambição irrefreável e única: vencer Viriato, apresenta-lo em Roma, leva-lo a pé e descalço no seu triunfo. Para estas esperanças o Senado concedera-lhe extraordinários recursos: duas novas Legiões além das forças que estavam em Hispânia. E Serviliano podia sonhar com o triunfo, porque contra um guerrilheiro sem exército organizado, tinha agora sob o seu comando um formidando exército de sessenta mil homens, e mil e seiscentos Cavaleiros.

CAPÍTULO XL

Serviliano não queria perder tempo, e iniciou a campanha na Betica, nas cercanias de Jaen; o plano foi bem formado, porque Viriato apenas pôde pela rapidez das operações do Cônsul entrar em combate com um contingente de seis mil homens.

Os três companheiros de Viriato, notando que o chefe reconhecia a insuficiência da sua gente para sustentar o combate com um exército disciplinado dez vezes mais numeroso do que o seu, entreolharam-se com um ar de inteligência, como se aquela situação desesperada proviesse de uma combinação. Viriato não sucumbiu; antes o perigo o levava a descobrir extraordinários recursos. E de relance, compreendendo a situação, ordenou o seu plano:

— Manobrar com uma rapidez tal, que o exército romano não possa manter-se em disciplina e ordem de batalha.

E em vez de esperar o ataque, deu ordem a um assalto instantâneo, em que toda a agilidade e bravura, que carateriza os lusitanos, fossem praticadas por modo que a confusão se estabelecesse nas Legiões romanas, e que as manobras usuais não pudessem ser executadas. Pôs à frente os montanheses do Herminio acostumados ás correrias dos lobos e ás montarias dos javalis, os quais em berreiros descompassados — Mata, que é romano! — investiram com ímpeto indomável de feras contra os manípulos de Serviliano. A espada e o punhal eram vibrados por uma e outra mão, tendo abandonado o escudo, para se moverem mais denodadamente. O assalto encheu de assombro os soldados romanos, que desconheciam esta impetuosidade dos que eles chamavam bárbaros; e sem poderem sustentar aquele recontro violento, foram recuando, supondo que Viriato, empenhando a batalha só com seis mil homens, contava com outras forças que viriam avançando, e que decidiriam da luta.

Uma circunstância salvou nesse momento o exército do Cônsul Serviliano: inesperadamente apareceram no campo da batalha dez Elefantes africanos e trezentos Cavaleiros bem equipados. Serviliano conheceu-os; era o contingente que lhe mandava Micipsa, o rei da Numídia. Quando o Cônsul projetava alcançar o comando da Guerra da Lusitânia escrevera a Micipsa pedindo-lhe em nome da Republica o auxílio dos seus Elefantes e dos seus esbeltos Cavaleiros. Um pedido assim era uma ordem, e o Rei da Numídia bem compreendia que com o contingente de alguns Elefantes e Cavalos, garantia a estabilidade do seu trono.

O auxílio não podia vir mais a tempo; e o exército romano, reanimando-se com o extraordinário reforço, toma a ofensiva. A rapidez do ataque da parte do exército consular, servia para perturbar-lhe a disciplina, e Viriato, evitando o combate, foi atraindo as hostes para os terrenos anfractuosos seus conhecidos. Os Elefantes do rei da Numídia foram caindo um a um, com aquele golpe ignorado dos romanos, mas praticado pelos lusitanos, quando com um aguilhão de ferro matam os seus bois ferindo entre as vertebras cervicais. O sucesso inesperado produziu um estranho assombro; Serviliano pensa já na retirada, e Viriato, furtando-lhe as voltas, toma-lhe a dianteira, avançando com rapidez incrível por veredas que só ele conhecia, vindo ocupar o arraial do exército consular, apenas guardado por alguns hastários.

Quando o Cônsul Serviliano, com o exército cansado dos caminhos fragosos chegou já noite cerrada ao seu acampamento, achou o pequeno exército de Viriato fortificado com os fossos e trincheiras com que contava defender-se, e viu-se constantemente inquietado pelos hastários e fundibulários lusitanos. Aproveitando a escuridão da noite e contando com o cansaço dos soldados romanos, fatigados da retirada custosa, Viriato ordenou incursões repentinas e por lados sempre diferentes no acampamento romano. Serviliano perdera naquela jornada e incursões da noite para mais de três mil homens; e como as tropas se achavam sem descanso e sem alimento desde a véspera, seria loucura empenhar-se numa batalha campal, resolvendo recolher-se com o exército à cidade mais próxima, a Ituca, onde contava com víveres e as munições indispensáveis.

CAPÍTULO XLI

Viriato não desvairou com a inesperada vitória. Reconheceu prontamente que se salvara desta vez de um perigo evidente, e que para lutar com Serviliano carecia de mais gente. Deu ordem, logo que partiu o exército romano, de lançar fogo ao arraial, uma retirada cautelosa e tratando com a máxima urgência de ir buscar levas de montanheses ás serranias do Herminio, porque lhes reconhecera a valentia impetuosa dos assaltos.

Serviliano, uma vez abastecido em Ituca, e refeitas as suas tropas pelo descanso, debalde procurou Viriato; convinha-lhe fixar o seu quartel de inverno não longe, para recomeçar a campanha contra os Lusitanos, e avançou sobre a Beturia, essa parte montanhosa da Betica, entre a planície do Bétis e o vale do Anas. Habitava aí gente que se confederara na grande insurreição suscitada por Viriato; o Cônsul ocupou-a por conquista, avançando para o país dos Cúneos, castigando-os pelo mesmo pacto, e fixando aí na Cinesia o seu quartel de inverno.

No ano DCXIII, no começo da estação propícia, iniciou Serviliano a nova campanha contra Viriato, avançando para o norte; quando ia em marcha com o poderoso exército, vieram ao seu encontro dois guerrilheiros, que andavam pela Cinesia, com uma partida de mais de dez mil homens. Eram Cúrio e Apuleio, que por uma temeridade inaudita se atreveram a atacar Serviliano. O Cônsul, com incomparável vantagem, bateu a partida, ficando morto no campo Cúrio com todos os seus despojos, e debandando Apuleio com o resto da sua gente cruamente destroçada. Serviliano prossegue na impetuosa marcha, e reconquista a cidade da Bacia, toma dentro em poucos dias as cidades revoltadas contra o jugo romano, Candiam ou Ecambola, Gemela e Obucula, aí dez mil prisioneiros, que vendeu como escravos, e mandando degolar uns quinhentos indivíduos mais importantes, que considerava como partidários de Viriato e fomentadores da revolta. E era a grande e generosa Roma, que acoimava de bárbaros os povos da Hispânia, querendo civiliza-lo pelas carnificinas e pelas depredações. Era a Lusitânia, na sua parte oriental e na ocidental, que se atrevia a resistir contra este regímen de latrocínios, batalhando pela sua liberdade.

Serviliano ia arrebatado por um pensamento exclusivo: encontrar Viriato, derrota-lo! Sem isso não era possível a submissão ou pacificação da Hispânia. Nas suas marchas o Cônsul não encontrava o Cabecilha lusitano; os seus espiões não davam notícia dele. Em quanto os soldados se regozijavam, conclamando, que Viriato estava cansado da luta; que perdera a esperança na causa da Lusitânia; que já lhe faltava gente e recursos, Serviliano conhecia bem a tática do caudilho, e suspeitava que Viriato andaria por longe recrutando novos reforços. E seguro de que só mais tarde o encontraria, o Cônsul, para ir entretendo as tropas e satisfazendo-as com os saques das cidades devastadas, chegou ás cercanias de Erisane, cidade rica e populosa, e resolveu apoderar-se dela. Nem sequer mandou intimar a rendição aos habitantes de Erisane; pôs logo o cerco à cidade, e deu ordem a que, em todo o seu circuito, se abrissem fossos, da terra revolta uma alta trincheira detrás da qual ficariam os hastários, para que ninguém pudesse fugir, e forçando-os a entregarem-se, assenhorear-se de tudo quanto em Erisane se guardava. De resto contava que os habitantes eram também uma rica mercadoria de escravos, e um meio para quebrantar as outras cidades pelo terror passando à espada alguns centenares. Serviliano procedia com tranquilidade e segurança, porque uma cidade sem defesa, como Erisane, não tem melhor recurso do que entregar-se ao invasor. A soldadesca romana achava-se em grande parte dividida em volta da cidade abrindo os fossos, quando inesperadamente de dentro dos seus muros irrompem em tropel esquadrões sobre esquadrões de cavaleiros, de longas grenhas, com trajos e armas ao modo lusitano. Parecia que a cidade se desfazia em chusmas de cavalarias, e que de cada pedra se formava um cavaleiro. A violência e rapidez da erupção, os gritos estridentes e a sanha vertiginosa bem revelaram logo que era gente de Viriato! Como conseguira o Caudilho introduzir-se sem ruido dentro de Erisane naquela noite? E sem dar tempo a que Serviliano podasse meter em forma o exército, que estava esparso e em descanso no acampamento, na lisonjeira espectativa do saque da cidade, Viriato, com aqueles movimentos que só ele sabia dirigir, lança-se com todos os seus bravos Soldúrios, e com os Terços mais firmes chacinando na massa desmembrada do exército de Serviliano, multiplicando a sua força sobre as hesitações de espanto causadas pela instantânea surpresa.

O exército romano, sem oportunidade para entrar em ordem, vai abandonando o terreno, vai recuando, sem plano; Viriato, com a lucidez dos momentos decisivos, vai-o impelindo para o desfiladeiro apertado entre dois montes cobertos de penhascos, sem que o próprio Serviliano desse pela audaciosa cilada. Logo que Viriato conseguiu encurralar o grosso do exército consular, deu ordem a um troço de companheiros para a um sinal sabido fazerem rolar do alto das duas montanhas aqueles penhascos acavalados. Dispostas assim as coisas, mandou parlamentários a Serviliano:

«Que o Cônsul Quinto Fábio Máximo Serviliano, conhecendo a situação em que se colocara o exército romano naquele desfiladeiro, devia considera-lo perdido para o combate ou qualquer resistência;

Que do alto das duas montanhas rolariam ao primeiro sinal sobre o desfiladeiro os penhascos que ali negrejavam, esmagando todo o exército aí comprimido;

Que, antes de proceder e de pôr as suas condições, mandava perguntar a Serviliano que vantagens oferecia para que o exército romano fosse salvo.»

Os parlamentários, que tinham partido levando ao alto ramos de oliveira, não se demoraram muito tempo; traziam a mensagem de Serviliano:

«Que da parte do Cônsul Quinto Fábio Máximo Serviliano, pelos poderes que lhe tinham sido conferidos pelo Senado, lhe entregavam um Cinto de ouro, como insígnia de autoridade soberana;

Que poderia Viriato desde aquele momento considerar-se Rei da Lusitânia, e fiel Aliado de Roma, sendo o seu primeiro acto a assinatura de um Tratado de Paz e a dissolução do exército.»

Quando Viriato leu essas condições sorriu-se com um superior desdém; e sem demora voltou a enviar os Parlamentários com os Cavaleiros romanos que os acompanhavam, para dizerem a Serviliano:

«Que das suas propostas só aceitava a Paz firmada pelo Cônsul e ratificada pelo Senado, em que se assentasse para sempre o reconhecimento da liberdade e independência do Povo lusitano na sua terra, e da propriedade dos frutos do seu trabalho.

Que a Lusitânia nada queria de Roma; e quanto a ele Viriato não aceitava o título de Rei, mas unicamente a simples denominação de Amigo, dada pelo Senado romano.»

A mensagem de Viriato não podia deixar de ser adotada por Serviliano, porque se limitava exclusivamente ao Tratado de Paz. E o Cônsul compreendia o intuito leal de Viriato, porque aquele mesmo homem, que estando o exército lusitano perdido recusou a Paz que Vetílio concedera, era quem agora, tendo o exército romano entregue ao seu arbítrio, propunha como resultado da vitória uma simples cláusula: um Tratado de Paz assignado pelo Procônsul e ratificado pelo Senado e Povo romano. Era nada menos do que a pacificação da Hispânia e o poder de Roma assentando sobre o Direito em vez da espada.

O Tratado foi redigido com todas as formalidades do Direito das Gentes, e Serviliano assignou-o como Procônsul; Viriato firmou-o também enumerando os povos lusitanos que representava. Trocaram-se os diplomas autênticos, um que devia ser apresentado por Serviliano ao Senado em Roma, e o que ficava em poder de Viriato, como garantia da Paz. Nesse dia os dois exércitos passaram em festa, ficando no campo as tropas de Viriato, até que o exército proconsular deixasse de ser visto seguindo em marcha para o seu quartel de inverno.

CAPÍTULO XLII

O sonho de Viriato tornara-se uma realidade: a Lusitânia livre, e Roma vinculada pela Paz. O Caudilho contava com a pacificação geral, embora algumas resistências se manifestassem na Hispânia citerior; Roma era suficientemente política para ratificar esta Paz sem aparência de imposição. E enquanto Viriato esperava a ratificação do Tratado pelo Senado Romano, partiu pressurosamente para a ilha de Achale. Cumprira a condição exigida por Lísia para a realização do seu casamento.

Lísia sabia todos os terríveis acidentes da campanha de Serviliano, mas não tinha chegado ainda à ilha sagrada a notícia da pacificação inesperada. Do alto da Torre Redonda a senothêa viu vogar para a ilha uma barca de couro; o coração bateu-lhe agitadamente, sem se atrever a conjeturar o que teria sucedido. Mais próximo a barca, reconheceu a figura de Viriato. Desceu subitamente para ir espera-lo à lingueta de areia.

Não se imagina a eloquência da mudez de Viriato e Lísia, quando se deram as mãos e assim ficaram por alguns momentos. Avançando para a Torre Redonda, ia-lhe dizendo Viriato:

— Cumpriu-se o teu desejo.

— A Paz? Com Serviliano?!

— A Paz com Roma; assignou-a Serviliano, Procônsul e general.

Lísia fitava imóvel o vulto de Viriato, crendo um sonho o que escutava. O valente cabecilha tirou dentro da cota de malha de linho retorcido a folha em que estava escrito o Tratado de Paz, em que Roma reconhecia a liberdade e independência da Lusitânia. Lísia não pôde ler esse texto, porque a impressão da alegria tinha-lhe arrasado os olhos de lágrimas. Viriato entregou o Tratado ao último dos Druidas Idevor, que leu a cláusula: Haverá paz entre o Povo romano e Viriato.

Lísia, lançando os braços em volta de Viriato, exclamava:

— Temos uma Pátria livre! A Lusitânia é independente!

E beijando com candura as faces crestadas e as mãos de Viriato, continuou como se estivesse falando em sonho:

— Já se pode constituir família numa Pátria livre. Os nossos filhos nunca serão escravos.

Viriato, lançando-lhe o braço em volta da cinta delicada, e em atitude reverente:

— Cumpri a condição que me exigiste: a imposição da Paz a Roma. Agora és minha esposa.

— Para a vida e para a morte! respondeu Lísia, como se ali mesmo se consorciasse com o guerreiro à face do céu.

E Viriato, tirando o braço direito da cintura de Lísia, tomou o Cinto de ouro mandado pelo Procônsul Serviliano, como símbolo da realeza oferecida, e cingindo-a com ele, disse com voz branda e quase só ouvida pela noiva:

— A este corpo gentil, que eu desejo e há de ser meu, prendo-o com esta cadeia de ouro, trazida do campo da batalha para a paz da nossa casa. As almas sempre estiveram identificadas pela mesma aspiração, pelo mesmo sofrimento, e agora por uma simultânea alegria.

E mirando Lísia com interesse e carinho para ver como bem lhe ficava o Cinto de ouro, dizia em voz que só ela entendia:

— Mal sabes a significação deste Cinto?

Lísia ficou atenta para ouvir contar a batalha em que fora tomado como despojo ao general romano.

— Foi-me oferecido por Serviliano com o título de Rei da Lusitânia e Aliado de Roma, para assim salvar o seu exército do desfiladeiro em que o enclausurei.

— E aceitaste?

Recusei o título de rei, como uma vaidade pessoal e egoísta, e só exigi a Paz, o Tratado de Paz ratificado pelo Senado Romano.

— Mas o Cinto?

— Fiquei com ele para ser a minha primeira joia de núpcias.

E com um sorriso cheio de bondade, continuou:

— Não deixará de ser o símbolo da realeza, no lugar em que agora brilha; porque tu, Lísia, ligando a tua existência à minha, ficaste verdadeiramente a rainha e senhora do meu destino.

Lísia tirou o Cinto de ouro que a envolvia, e tomando da mão de Viriato o Tratado de Paz foi coloca-lo sobre o altar do Deus Inominato. As Virgens do coro da Senothêa acompanharam de cânticos estas oferendas, incertas sobre qual delas substituiria no culto a Lísia, que ia deixar os áditos misteriosos da Torre Redonda pelos deveres austeros da vida de mulher casada.

O regímen da Religião druídica ia-se obliterando; apenas na Ilha de Hierna se conservava na sua pureza primitiva. Pelas outras partes do Ocidente europeu as perseguições fizeram que se dissolvesse a hierarquia sacerdotal, degenerando os Druidas muitas vezes em adivinhos e curandeiros, e as Senothêas em bailadeiras dos festins e das praças.

Na Ilha de Achale conservava-se um apagado vestígio cultual, não tanto como doutrina teológica, mas como vinculo secreto que unificava as vontades no ideal político da libertação da Lusitânia. Era por isso que nenhum viajante falando da Hispânia deu notícia da existência do Druidismo na península. Lísia, a Senothêa, casando com Viriato, realizava o ideal religioso servido pelo braço do guerreiro na aspiração política de uma Lusitânia livre.

Depois que o caudilho saiu da Torre redonda, Lísia falou à parte com o velho Endre:

— Agora que está assignada a Paz com Roma e livre, livre a ditosa Pátria nossa amada, Viriato virá pedir-te a minha mão de esposa. Muito desejara que antes desse dia lhe descobrisses o sítio onde se guarda o Tesouro do Luso, e lho patenteasses como depositário da Tradição, que ele serviu com tanto desinteresse e valentia. Eu bem sei que tudo se encontra na Caverna das Inscrições Oghmicas, que só tu sabes interpretar, pondo em ordem misteriosa os Bastões dos Poetas ou Vates, que por terem esse conhecimento da Floresta ou Feadha, são chamados Faithiste.

— Sim, respondeu o velho, é preciso ser sagaz para ler essas varas sagitarias, feitas de estevas, a que chamaram Buchstave, em que se contam as Sagas heroicas. A quem, senão a Viriato entregarei o Tesouro do Luso? Pela condição natural das coisas, Viriato há de sobreviver-me. Encanta-me o teu pedido, porque a entrega desse depósito fica ligado ao destino afetivo da tua vida, — é o teu dote.

Lísia, beijando a cara do Endre encanecido, deu à intensidade do sentimento a sincera expressão das lágrimas.

Seriam aquelas lágrimas enternecidas um pressentimento?

Na vetusta tradição dos povos do norte anda sempre ligada à posse do Tesouro a fatalidade tremenda, — a morte...

CAPÍTULO XLIII

Enquanto Viriato se demorava na Ilha sagrada de Achale, no enlevo daquele amor que o fortificara na sua missão heroica, os três Companheiros deixaram-se ficar no vale de Calipo à frente dos Mil Soldúrios, numa inatividade impaciente e desgostosos por verem tão repentinamente terminada a guerra contra os Romanos. Estavam acostumados a uma vida agitada de aventuras, ao prazer do saque, ás grandes emoções entre a posse de riquezas repentinas e a morte; custava-lhes a voltarem bruscamente aos costumes da paz, ao respeito forçado da vida e da propriedade. Preocupados do mesmo pensamento, careciam de comunicar entre si os seus intuitos; tinham receio de serem espiados, de que os Soldúrios descobrissem nas suas palavras qualquer hostilidade contra Viriato.

Então Ditálcon disse para os outros dois companheiros:

— Que vá cada um de nós por diversos caminhos ter à Caverna que está entre o Promontório Cepressico e o rio Calipo. Aí, sem sermos vistos nem ouvidos, poderemos falar à vontade, e resolvermos sobre a situação que nos espera.

Andaca e Minouro abraçaram o alvitre, e assentaram o dia do encontro na Caverna das Fadas, ao alvorecer. Então teriam tempo para falar à vontade e à larga. Dos três companheiros de Viriato, Ditálcon era o mais velho, e até muito separado em idade. Era um homem alto e enxuto de carnes, de ossadura forte; e embora guerreiro destemido, nunca tinha perdido o porte aldeão, e mesmo um certo amor pelos trabalhos da lavoura. O rosto sobre o comprido e de faces cavadas, tinha uma carnação rubra tostada, sobre que assentava um nariz afilado, e uma boca desdenhosa, a que dava um ar irónico um golpe que recebera na desastrosa batalha de Tribola. Os olhos eram garços, entre o azul e verde, lembrando pela forma da cabeça o tipo do africano branco bérbere. Falava cadenciadamente como sentindo a própria autoridade, porque era ouvido sempre atentamente, quando contava memórias de cidades destruídas, do tempo das guerras cartaginesas; dizia-se que na mocidade viajara até à Britânia e à Gália, e envolvia-se de uma atmosfera de oraculo, pretextando ora descontentamento dos homens e das coisas, por forma que inspirava desalento em volta de si, ora acobertava os seus desânimos repentinos com uma isenção de todas as honras e riquezas.

Minouro, que era muito mais novo do que Ditálcon, admirava-o profundamente, e tratava-o pelo nome de Mestre, lamentando que ele não fosse um Druida. Por uma lisonja petulante e insistente, veio a ilaquear Ditálcon, levando-o na direção e intuitos que lhe sugeria.

Minouro não era corpulento; era de uma estatura média que o não destacava do comum da outra gente; mas a cara redonda, o nariz curto, e os pequenos olhos que nunca fitavam de frente, denunciavam o tipo do pequeno ambicioso do poder, do intrigante que trabalha pelo ideal da sua personalidade, servindo todos os partidos conforme as necessidades da sua elevação. Era como um fermento pútrido, exercendo uma ação decomponente e incessante. Viriato confiava em Minouro, pelo seu carater de homem prático, e especialmente pela consideração que lhe ligava Ditálcon.

O outro companheiro, Andaca, era mais fantasista, mas generoso; como Minouro admirava também profundamente Ditálcon, acatando-o mesmo quando este o censurava pela audácia das suas ideias, ou arrebatamento impulsivo das suas determinações. Andaca era homem novo; destacava-se entre os outros Cavaleiros pelos seus cabelos louros, que lhe cobriam quase a testa e que separava para um e outro lado numa marrafa caraterística e inconfundível. A barba era espessa e também loura, a qual com a tez fortemente corada e os olhos azuis, faria crer um tipo da Cândia perdido entre as tribos lusitanas de olhos e cabelos castanhos.

Era sóbrio, e desinteressado; sonhava com os tempos do decaído Druidismo, e teria sido um Bardo arrebatador para doutrinar os povos se tivesse nascido numa melhor época, menos perturbada ou mais crente. Quando regressava dos combates e correrias em que se sentia viver, era-lhe indiferente a distribuição dos despojos; não tomava parte nos saques das cidades romanas, e quando depunha a espada e o escudo era para estar deitado sobre a relva ou nas penedias, em decúbito dorsal, pensando como um vate. Minouro a pouco e pouco fora influindo no seu espirito, dominando-o, e pelo poder de o revocar à energia, exercia um predomínio completo sobre a sua vontade.

Partindo em direções diversas, os três Companheiros de Viriato encontraram-se ao alvorecer à boca da Caverna das Fadas, alguns estádios longe do mar, mas dentro da qual rebentavam as ondas nas grandes tempestades da costa. Aí, no escarpamento marítimo do Promontório Cepressico, é que se observava bem o trabalho das vagas, que pelo aglutinamento das areias moventes de uma praia que se foi alteando pelo decorrer dos seculos, formou com o calcário altíssimos taludes, ou dunas, defendendo o vale de Calipo. Mas pelo seu turno em toda a extensão da costa desde o Promontório Cepressico até ao rio Calipo, o mar recomeçou o trabalho de erosão abrindo numerosas Cavernas, destacando-se entre todas a mais profunda e misteriosa, a Caverna das Fadas. Contam as vozes do povo, que algumas dessas Cavernas foram abertas pela mão do homem, quando ainda ele não conhecia os metais, e viera descendo da primitiva estação que fizera em Calabis, até por estabelecimentos sucessivos chegar ao vale do Tago.

Na Caverna das Fadas entraram os três Companheiros de Viriato maravilhados pela extensão do subterrâneo, num solo plano e profundo com abobada hemisférica, desembocando numa galeria, aonde já os raios do sol nascente não chegavam, e aonde se ocultavam numerosos esqueletos como em necrópole de uma remotíssima idade. A curiosidade não os levou a entrarem lá dentro; aí, à boca da Caverna, antes de começarem a conversa para que vieram, não podiam eximir-se à observação de coisas que parecia extraordinário o encontra-las naquela solidão ignorada de todos.

Ditálcon, levantando do chão uns fragmentos de barro cosido, e mostrando-os aos companheiros;

— Quem é que pode explicar como esta louça veio parar aqui! Em Ilierna eu vi louça igual em tudo a esta; e até na Bretanha...

— Seria um mesmo povo? — Inquiriu Andaca imaginoso; e levantando do chão numerosas contas de cor esmeraldina e esverdeadas, que estavam espalhadas pelo chão, como se formassem outrora vistosos colares, continuou observando:

— Mas estas contas desenfiadas tenho-as encontrado em outras Cavernas da Lusitânia, em que nos temos refugiado nestas correrias contra os Romanos. Quem tivesse tempo para junta-las e formar com elas um colar para oferecer a Lísia por ocasião do seu casamento com Viriato.

Ao proferir este nome, os três Companheiros entreolharam-se subitamente, suscitados pelo pensamento que ali os trouxera. E Minouro atacou o assunto:

— O casamento de Viriato! É isso o que nos obrigou a virmos aqui. Ele quer agora a Paz com Roma, para gozar tranquilamente a sua vida de casado; e mandando cada um para sua casa, lá se vão os nossos comandos, todo o nosso valimento, e mesmo os nossos recursos.

Ditálcon atalhou:

— Viriato é sincero; ele não aceitou o ser Rei da Lusitânia, como lhe propôs Serviliano.

— Mas, depois de casado, não quererá ele dar à mulher um trono? e com os filhos formar uma dinastia?

Andaca interveio:

— Em todo o caso, nós somos uns instrumentos passivos dos planos ou das ambições de Viriato; e isto não deve, não pode ser.

Ditálcon, retomando a sua autoridade e ascendente moral:

— A Paz com que Viriato se lisonjeia, é um engano. Roma ratifica a Paz assignada por Serviliano, mas como vê Numância em revolta, vai mandando mais tropas para a Hispânia citerior. Ainda neste ano de DCXIII chegou o Cônsul Quinto Pompeu Rufo, com Quinto Servílio Cépio para continuar essa guerra desesperada que dura já desde DCXI. Os Numantinos não sucumbem; são dos que morrem mas não se rendem; eles são verdadeiramente Lusitanos, e Roma sabe-o melhor do que ninguém. Por isso, se vos faz falta a guerra, aí a tereis, segundo as minhas previsões, e eu sou homem para me ufanar de ter dito algumas verdades ao mundo. Agora, o que aqui vos confesso é que estou cansado de guerras, por uma causa sem fundamento.

— Sem fundamento!? Acudiram Minouro e Andaca, com surpresa.

— Sim; porque nós os Lusitanos nada temos com esse povo primitivo que antecedeu na Península o Ibero, que o veio repelindo para as bordas do mar. Viriato sonhou esta divisão entre o Lusitano e o Ibero, quando tudo isto é Celtibérico, e deve formar uma só pátria, a que bastaria por agora a constituição municipal que Roma nos impõe.

Minouro apoiando-se na afirmativa de Ditálcon:

— Eu vou-me convencendo disso; porque para sermos uma Nação lusitana, como dizes, não temos diferença de Raça; e pelo que tenho observado nestes nove anos de campanha pela Hispânia citerior e ulterior, também não vejo montanhas que limitem os nossos territórios, nem rios que nos sirvam de linhas separativas. Nestas condições uma Pátria lusitana é uma criação de fortes peitos, obra de homens, e sustentada apenas pelo prestígio das suas espadas. Nós mesmos obedecendo a este impulso fizemos do pastor Ouriato o Viriato que não quis o cetro deste novo reino.

Andaca, sugestionado pelo argucioso Minouro, e acreditando nas palavras de Ditálcon:

— Para que esta Hispânia unida entre na Civilização moderna, como Roma atingiu no mundo e como no-la quer transmitir, só temos um passo a dar, e digo-o com sinceridade: Renegar a Pátria lusitana!

— No meio disto tudo, disse Ditálcon, num dos seus momentos de pessimismo que o atacava, — para mim só me bastam sete palmos de terra.

Andaca, passando com os dedos inconscientemente pela barba loura, parecia que era impelido para o mesmo desalento; Minouro é que se mostrou alegre:

— Deixemos vir para nós os acontecimentos. A tranquilidade de Viriato não será por muito tempo; nem me parece que a sua obra tenha estabilidade. E recomeçando os Romanos a guerra, porque o Senado que ratificou esta Paz é o mesmo que aprovou a traição de Servio Galba há dez anos, Viriato tem de vir a campo. E nós cá estamos para dirigirmos as coisas como entendermos.

— Ficamos nisso! Conclamaram os outros dois, levantando a mão direita.

O sol ia a pino; e montando silenciosamente os cavalos que andavam pastando entre as ervas marinhas, dispersaram-se rapidamente em direções diferentes, para reaparecerem desencontradamente no vale de Calipo.

CAPÍTULO XLIV

Viriato, regressando da ilha sagrada de Achale para a companhia dos Mil Soldúrios, vinha alegre pela novidade que acabava de saber poucos momentos antes:

— O Senado e o Povo romano ratificaram a Paz assignada por Serviliano! A Lusitânia está livre de hoje em diante. Não disputaremos nunca a Roma o seu domínio entre os Povos ibéricos; disfrute aí à vontade as suas conquistas. Que os seus Procônsules e Pretores se enriqueçam rapidamente, e venham aí remir-se pelo seu governo das garras dos credores que os empobreceram em Roma. A Lusitânia só quer que a deixem no seu trabalho, que é a sua festa permanente. Na fé do Tratado depomos as armas; vou comunicar esta resolução, que é da parte dos Lusitanos o começo do cumprimento do glorioso Tratado, ao Conselho armado, para que em seguida todos os Terços e Companhias, que andam há nove anos empenhados nesta campanha de libertação, voltem ás suas terras.

Foram dadas e transmitidas todas as ordens necessárias para que o Conselho armado se reunisse junto da Mamoa mais próxima. Quando Viriato falou em dissolver o exército, ouviu-se uma voz de entre os do Conselho, observando:

— Tenho por perigoso esse desarmamento; porque Roma não cessa de mandar tropas para a Hispânia, e está sustentando uma guerra sangrenta em volta de Numância. Aí estão dois Cônsules temerários Quinto Pompeu Rufo, e Quinto Servílio Cepio, sustentando essa campanha. Nada mais fácil do que, sabendo esses generais que o nosso exército se licenciou, voltando os Terços aos seus lares, um deles se lembre de vir fazer uma incursão à Lusitânia e nos apanhe isolados.

Viriato ouviu atentamente a observação, e não foi imediatamente de encontro a ela, antes parecia corrobora-la:

— É uma suposição plausível, e tanto mais para recear, que um desses Cônsules, Quinto Servílio Cepio há de querer vingar o irmão Serviliano por ter assignado o Tratado de Paz; e além de tudo Cepio, segundo a voz que corre, é considerado em Roma como um devasso, capaz de todas as deslealdades pelo seu carater pérfido. Mas, Cepio tem de obedecer ao Senado e Povo romano, e por isso estamos livres de qualquer traição, como a que há doze anos praticou Servio Galba contra a Lusitânia. Hoje não tratamos com Cônsul algum pessoalmente; é com Roma representada pelo seu mais alto poder politica. Não temos direito a duvidar dela; o Tratado aqui está escrito e assignado.

E em seguida passou as lâminas de cobre em que o Tratado de Paz com os Lusitanos estava assignado por Lelio e Servílio, os dois Cônsules nesse ano de DCXIV da Fundação de Roma; e cada um dos membros do Conselho armado foi lendo detidamente e aprovando:

— É a garantia de uma paz duradoura.

— Para que esse Tratado seja efetivo, continuou Viriato, temos de mostrar a Roma que confiamos na seriedade das suas Leis, e que pelo nosso lado cumprimos o Tratado depondo as armas e voltando aos nossos labores quotidianos.

— É assim mesmo! assim mesmo.

E aprovada a resolução, foram enviados mensageiros para todos os povos e terras que tinham lutado pela independência da Lusitânia; para os Vetões, para os Vaceos e Calaicos; outros foram levar traslados do Tratado de Paz para que fosse lido na Celtibéria, na Carpetânia e na Oretania, na Betica e até ao país dos Cúneos.

Ao sair do Conselho armado, disse ainda a mesma voz suspeitosa:

— Bem sei que a notícia do Tratado vai causar por todas essas terras uma alegria imensa! É legítima. Porém vendo o exército licenciado, e sabendo quanto é difícil pô-lo de repente em pé de guerra, continuarei dizendo, e oxalá me engane: Tenho por perigoso este desarmamento.

Quem assim falava era o bravo Tântalo, que em toda aquela campanha nunca hesitou em cumprir uma ordem de Viriato.

CAPÍTULO XLV

Depois da saída do Conselho armado disse Idevor para Viriato:

— Não quiseste aceitar o título de Rei da Lusitânia; o teu sentimento puro revelou-te, que neste solo lusitano não vegeta essa planta parasítica da realeza. E demais, uma Realeza investida e sustentada por uma potência estrangeira! Só isso bastava para influir na degradação moral de um povo. Em troca dessa Coroa que renunciaste, ou que desprezaste, mereceste que te seja entregue o Tesouro do Luso. Já terás sabido que ele se guarda na Caverna das Inscrições ogmicas; a rocha que domina essa Caverna é a Pedra Virgem, o penedo que fala, porque tem na face lisa, ou Peravana, os sons fan, fone, ou vene, que traduzem as Sagas venerandas das Idades passadas. Longa é a jornada para a Caverna das Inscrições, lá na margem direita do Durio, perto do Cachão da Rapa.

— Agora, que dei conta aos Chefes das Contrebias do Tratado de Paz com Roma, podemos partir, ainda que seja para longe; vamos seguros e sós. Eu sei todos os caminhos que nos levam ao Cachão da Rapa, e já vi com assombro esses traços para mim incompreensíveis gravados na Pedra Virgem. Partamos.

E Idevor e Viriato meteram-se a caminho. Já distantes e bem longe do povoado, encontraram solitária à beira de um caminho uma casa palhaça, donde vinha o som rítmico do trabalho de um tear; de uma rocha que estava perto manava um jacto de água cristalina, que dava gosto beber. Enquanto matavam a sede, escutaram a cantiga, que tomou para ambos o valor de um vaticínio; cantava uma pobre mulher:

Ao tear
Olha a tecedeira
Como tece bem,
Como a lançadeira
Vai e vem ligeira;
Sua mão certeira
Que presteza tem!
Lembra uma dança
O som do tear,
De um sapatear
Que jamais se cansa;
Mas que é a bonança
De um ditoso lar.
Fosse eu a trama
Da sua urdidura;
Como o fio se acama,
A sua ventura
Seria segura;
Feliz de quem ama!
Cresce tanto a peça
Deste branco pano,
Que, com esta pressa,
Se me não engano,
Ainda este ano
Cumpre-se a promessa!

Viriato sorriu-se para o velho Endre, que o compreendeu, e prosseguindo o caminho, acharam-se naturalmente falando no casamento de Lísia.

Depois de alguns dias de jornada, os dois peregrinos entraram na região do Durio; seguiram pela margem direita, até chegarem à povoação de Linhares, aonde repousaram. Ali, na voz do povo, ouviram falar dos Tesouros encantados, que estavam escondidos no fundo de uma caverna escura, coberta por um enorme penedo em que se viam insculpidos grande número de quadrados mágicos. Ai do que se atrever a penetrar na caverna! Os que lá entram, se não ficam ali imediatamente paralisados com um sono letal, ou perdem a fala ou caem-lhe os dentes!

Apesar de todos os terrores, Viriato e Idevor, logo ao nascer do sol, caminharam para a margem do Durio. Daí a meia légua, avistam, sobranceiro de um precipício a uns vinte passos do rio, o enorme penhasco, que o vulgo saudava com o verso: «A Pedra sagrada da esperança do povo.» Ninguém sabia o que significava uma tal saudação. Idevor era o depositário desse mistério do passado.

Perto já do penhasco, em grande parte coberto de musgo, Idevor dirigiu Viriato para a parte em que estava a face lisa, da altura de dez côvados, e de quatro de largura, e aí contemplaram patentes os Quadrados, formando como pequenas janelas, com traços encruzados, e enxadrezados, agrupados diversamente. O povo acreditava que essas letras se renovavam todos os anos, no começo da quadra estival. É certo que os Quadrados estavam agora bem visíveis, e até se lhes notavam cores.

Idevor, contemplando aqueles carateres indecifráveis, disse para Viriato:

— Esses Quadrados que vês, são como as Letras rúnicas, que os nossos antepassados deixaram gravadas sobre muitos rochedos do norte. Chamaram Ogum, nome que se aproxima dos Kova, ou os hieróglifos de um povo amarelo do extremo Oriente. Com o movimento das raças, esses carateres gravados nas pedras foram reproduzidos em ramos de árvores, a que chamaram os Bastões dos Poetas; muitas vezes porém, nas largas narrativas históricas, esses bastões rúnicos baralhavam-se, e para restabelecer a sua ordem cronológica, ou as séries das Tríades, era necessário ir procurar nos rochedos esquecidos nas florestas a disposição primitiva desses traços ou letras. É o que acontece com este rochedo que está à nossa frente; repara bem: esses Quadrados gravados na pedra fixaram para sempre a ordem em que se devem dispor os Bastões rúnicos, nos quais estão escritas as tradições da Lusonia.

— E aonde estão depositados esses Bastões dos Poetas?

— Dentro da Caverna a que se sobrepõe este penhasco. Mas, antes de tudo, repara para estes Quadrados: uma linha figura o tronco da árvore de Ogham, e como ramos dela, cruzam-se outras linhas, que se distinguem umas das outras apenas pela posição e agrupamento: a primeira letra é figurada por um rico ou barra atravessada; a segunda letra por dois travessões, terminando o grupo de barras na quinta letra. E do lado oposto ao primeiro grupo, recomeça-se da mesma forma os carateres, do segundo grupo de letras; no terceiro, os traços são perpendiculares ao tronco; e no quarto esses traços são transversais ou oblíquos.

Os nomes dessas vinte letras é tomado da árvore cujo nome começa pelo som dessa letra; é por isso que o termo Feadha, a planta, a árvore, a floresta, significa também o simbolismo alfabético, a ciência, e o vate ou Faethiste. Se não fossem os carateres que aí vês inscritos nesse penhasco, seria impossível conservar a ordem dos Bastões dos Poetas, em que está escrito o Poema de seis mil versos, que se guarda aí dentro da Caverna.

E Idevor mostrou a Viriato a ordem alfabética, ou Beith-Luis, na sua sucessão ogmica: b, l, f, s, n, h, d, t, c, q, m, g, ng, st, r, a, o, u, e, i.

Era nesta ordem que deviam ser dispostos os Bastões rúnicos. Idevor procurou a entrada da Caverna, que era um pequeno corredor de acesso, na vertente do despenhadeiro, que ia dar a um recinto ou vasta camara revestida nas paredes e teto por infiltrações estalactíticas. Parecia um hipógeo sepulcral, a que as concreções estalagmíticas davam o aspeto de estátuas mortuárias, envolvidas em sudários brancos. à medida que os dois peregrinos avançavam pela assombrosa camara, os rumores dos passos ressoavam por outras galerias que se sucediam apenas separadas por grandes pedras; de vez em quando sentia-se esvoaçarem aves das trevas, que ali hibernavam, e que para os crédulos pareciam as almas dos antepassados. Sobre o pavimento estavam espalhados estilhaços de sílex, machados de pedra, ossos de animais que pertenceram ao clima glaciário. Avançando com precaução, Idevor chegou à entrada de uma segunda camara, mais vasta e esplendida, pela sua estrutura trabalhada pelas infiltrações das águas; era iluminada por uma fresta aberta nas fendas da rocha, e aí existia ao centro um bloco despegado do teto da caverna, formando uma ampla mesa aquela laje de forma arredondada. E em volta, junto da parede natural, achavam-se dispostas seis pedras, como se fossem assentos patriarcais; sobre elas estavam estendidos, à maneira de feixes de setas, os Bastões rúnicos, a que Idevor por vezes aludira. O velho Endre falou para Viriato:

— É nestas varas que está escrito o Poema da Lusonia.

E foi tirando pela ordem ogmica os Bastões e colocando-os combinadamente sobre a grande mesa central; todos esses feixes formaram outros tantos Quadrados, como os que acabavam de contemplar na face lisa do Penedo do Cachão da Rapa. E depois de se acharem todos dispostos convenientemente, disse Idevor:

— Agora posso ler o velho Poema da raça de que provimos, e em que se encerra o destino da Lusonia.

Viriato aproximou-se respeitoso, exclamando com júbilo:

— Esse Poema nacional é o verdadeiro Tesouro do Luso. O conhece-lo enche todas as minhas ambições.

E Idevor, percorrendo um a um, nos seis grupos de varas, os Bastões rúnicos em que se continham os seis mil versos da Epopéia da Lusonia, observou:

— Levaria muitas horas a leitura ou recitação pausada dos versos desta Epopéia; para o caso que nos interessa neste momento basta um resumo claro e verdadeiro. Escuta pois o Argumento da:

* EPOPÉIA DA LUSÓNIA *

«Um grande Mar glacial cobriu a Europa, a partir do polo até ao Ural, estendendo-se pelos territórios hoje ocupados por nações, que levantaram dolmens e construíram muralhas e cidades com os blocos erráticos arrastados pelas neves, que deslisavam das altas montanhas.

«As neves eternas, descendo dos montes da Europa ocidental, foram espalhando numa marcha lenta, que durou seculos, essas morenas, que bordam as margens dos lagos, as costas do Oceano atlântico, onde se desagregaram das geleiras. Todos os grandes vales foram atulhados de gelos, trasbordando sobre as planícies. Dos montes da Europa central se estenderam esses enormes geleiros, alastrando-se, destruindo as espécies vegetais, e repelindo à sua frente os animais gigantescos, que se refugiavam nas cavernas ou procuravam outros climas. Nas clareiras, não cobertas pelos gelos, conseguiram viver alguns animais e pequenos grupos humanos, numa luta com a intempérie da natureza; aparecem estações humanas nas Gálias, Britânia, Itália e Germania, e nessas zonas exundadas é que se foram criando as raças da Europa, que se iam constituindo em Nações poderosas, com as suas línguas diversas, seus costumes, religiões e sociedades diferentes: tais os Hiperbóreos, formados pelos Proto-Cythas, Cythas, Sarmatas, Parthas, Germanos, Gauleses e Bretões. Eles conheceram a grande Constelação austral da Ursa, e iniciaram os trabalhos da Agricultura e da Navegação.

«As Estrelas da Grande Ursa, em número de sete, assim como os bois que puxam os carros pesados chamados Teriones, foram designada Septemtriones. O homem representou no céu os actos da sua vida terrestre: o Sol fecundante da estação estival foi representado como o Touro, ou o Deus Thor das gentes germânicas, e o mugido do trovão Tarana, como do touro que berra. E a navegação, que se fazia de uns para outros lagos, era também completada transportando os Teriones as barcas em carros de um ponto para outro. Chamaram por essa forma dupla de Navegação a esse povo aventureiro os Gansos, ou Liguses, os patos dos lagos. Foi assim que se fez conhecida no mundo a forte raça de Navegadores, os Liguses, ou Ligures, que constituíram Ligas ou Hansas marítimas, protetoras das suas remotíssimas viagens, transportando pelo Atlântico e através da Europa os blocos de Âmbar amarelo, e o estanho das ilhas Cassitérides.

«Esses Povos da região setentrional da Europa, que se chama a Escandinávia, viveram longo tempo ás bordas do mar, e foram conhecidos pelo nome dos Homens da água, que nas suas línguas se exprimia pelas palavras Soma-lassed, Sabme-lassed. Pela orla ocidental da Europa esse Povo veio descendo para o sul, e ocupou as regiões de Hibérnia, da Britânia, e na Hispânia esse Povo fundou o grande estado da Lusonia ou terras de Lez, que se denominaram Anda Lezia, Cale lezia e Lusi tania.

«Pela sua audácia aventurando-se na exploração do Mar tenebroso, as outras raças chamaram-lhes os Atlantes, de Atl, o nome da água; e nas suas racas ou barcas de duas proas, ajudadas a remos, a que chamaram Kamares, estenderam as suas expedições pelas Ilhas perdidas no meio do Atlântico, desceram ao longo da costa ocidental da Africa, foram tocar num continente ou Mundo novo da América, penetraram o Mediterrâneo até ao Egipto, e subindo o Golfo pérsico, chegaram até à Chaldêa, e à India.

«Esses Povos ribeirinhos, ou de Lez, e propriamente marítimos ou Atlânticos, levaram os conhecimentos da Astronomia, fixados no seu Zodíaco, ou Simbolismo zoomorfo das Constelações observadas no Ano sideral, até esses Povos da América, do Egipto, da Chaldêa e da India.

Foi por isso que o Símbolo do Touro é adorado no Egipto com o nome de Ser-Apis, e na forma Shor, o Bezerro de ouro, na Palestina; com o nome de Tauro o designaram os Caldeios, os Sírios, e os Gregos. Por esse Símbolo da Constelação do Touro é que a Civilização da raça iniciadora dos Ligures se denominou Turana; todos esses Povos do Oriente adotaram o Zodíaco ocidental, sem notarem que pela evolução milenaria dos Equinócios, o Signo do Touro deixou de coincidir com o começo do Ano estival.

«Contra a Raça ligúrica veio do Oriente a pressão de outros Povos. As gentes do Iran, adorando o Fogo espiritual representado em Mithra, reagiram contra a representação do Fogo terrestre ou o Touro, morto por Mithra, ou contra o Turan. Na Europa, os Povos dos Celtas, e dos Iberos, dos Jónios e dos Fenícios, dos Cartagineses e dos Romanos, foram gradativamente atacando a raça dos Ligures, e pelas invasões por terra, e pela pirataria nos mares, quase que apagaram o nome e a Civilização dos Ligures na Europa! Os Iberos, que atravessaram da Africa quando a Europa ainda estava ligada a ela por um istmo, repeliram-na da vertente ocidental dos Pirenéus, em que se tinha apoiado na Idade glaciaria, cujas geleiras estacaram perante essa cordilheira; os Celtas louros e corpulentos atacara-ma nas Gálias trans-e-cisalpinas; os Fenícios apoderaram-se dos Períplos das suas navegações atlânticas pela pirataria; e os Jónios roubaram-lhe os seus Poemas em que celebravam as temerosas Aventuras do Mar. As lutas guerreiras, e o império das Civilizações militares fizeram esquecer a civilização agrícola e as Navegações dos Povos ligúricos. Entre o Ocidente e o Oriente deu-se uma separação, e esqueceram-se de que eram solidários na História.

«Uma treva imensa caiu sobre o mundo depois da Era glaciaria; a força bruta prevaleceu sobre a Ciência, a Guerra de devastação e de conquista sobre o trabalho pacífico da Agricultura. A Missão civilizadora dos Ligures, iniciada na América, no Egipto, na Chaldêa, na India, ficará interrompida para sempre?

«Diante da extensão e prestígio dos Impérios militares, parece que a ação da força bruta é definitiva. Mas, a razão e a Paz hão de triunfar um dia; o Ocidente tem de reatar a sua antiga solidariedade com o Oriente. É essa a missão e o futuro glorioso da Lusonia.

«Este ramo, certo, o mais tenaz do tronco decepado da lutadora raça dos Ligures, resistindo na Hispânia contra os Iberos, contra os Celtas, Persas, Fenícios, Cartagineses e Romanos, há de um dia através de todas as crises reorganizar-se outra vez como Nação, e o seu poder derivará do regresso à primitiva capacidade da raça: Recomeçará as grandes Navegações do Atlântico; há de reocupar pelas suas colonias laboriosas a América; fundará um vasto Imperio na India; dominará na Africa; e primeiro que nenhum outro povo circundará a Terra, afirmando outra vez a supremacia pacifica como destino da Civilização ocidental. Sustentar a autonomia da Lusitânia é impeli-la para a realização deste incomparável destino, — alargando pela atividade pacífica a antiga Liga hanseática numa Confederação das Gentes, na solidariedade humana.»

Dentro da Caverna do Cachão da Rapa ia escurecendo; estava já terminada a leitura ou exposição do Poema. Viriato, cheio de esperança no futuro da Lusitânia, exclamou:

— Este ideal dá vida e energia a uma nacionalidade! Torna-a imperecível. Agora já posso morrer; e fosse esta Caverna, deposito de uma tradição sagrada, a minha ignorada sepultura.

— Para que te deixas assaltar por pressentimentos de morte? Eu ainda não te desvendei todos os conhecimentos contidos nesses Bastões dos Poetas, ou Sagitas, que se arrojam ao ar, e conforme caem voltadas para o Oriente ou para o Ocidente, assim nos dão os Presságios venturosos ou aziagos. Há um conhecimento de incomparável sagacidade : revela-o a seta, que equilibrada sobre um ponto, trémula, oscilante, indica a linha do Norte a Sul; mais poderosa do que aquelas que guardam as Sagas das Tradições dos Navegadores ligúricos, ela os guiou seguros-por Mares nunca de antes navegados.

— Pela posse dessa Vara chamada a Seta de Ouro, realizará a Lusonia o seu alto destino.

E à medida que ambos se afastavam da Caverna, disse Viriato, ao perder de vista o penhasco das inscrições misteriosas:

— Agora compreendo eu o verso da saudação: «A Pedra sagrada da esperança do povo.»

CAPÍTULO XLVI

A cerimónia do casamento de Viriato com Lísia estava determinada para dia certo. O cabecilha era esperado na Torre redonda de Achale, e já sobre o lar ardia o fogo sagrado que representa a santidade da família apoiada nesses mistérios cultuais da memória dos Antepassados. Lísia entretinha o fogo, quando chegou Viriato; o guerreiro aproximou-se de Idevor, e disse com uma dominadora serenidade:

— Agora, que já temos uma pátria livre, também quero render culto aos meus Antepassados, e venho rogar-vos por isso, para que Lísia, vossa filha adotiva, me acompanhe neste acto comendo comigo do mesmo pão diante do mesmo fogo.

Idevor ergueu-se donde estava assentado, aproximou-se da Pedra focal, e chamando para junto de si todas as pessoas que habitavam na Torre Redonda, proferiu a fórmula sagrada:

— Eu vos entrego, oh mancebo, a minha filha Lísia, trocando este lar paterno pelo que ides inaugurar com amor e esperança.

E pegando em Lísia pela mão, conduziu-a para Viriato, como desligando-a da religião domestica, e entregando-lha para que a iniciasse num novo culto da família a que de ora em diante pertencia. Os dois esposos olharam-se com ternura; os cânticos das donzelas que acompanhavam Lísia ressoavam com a majestade de um sacramento, e naquele dia entre festas, banquete e recitação de poemas, passou-se a primeira parte do cerimonial consuetudinário do casamento.

No dia seguinte era a partida da esposa para a terra do seu marido; saíram da Torre Redonda os três Companheiros de Viriato, e a luzida cavalgada que tinha de conduzir a noiva pôs-se a caminho. Lísia, vestida de branco e com a lúnula de ouro na cabeça, coberta com um véu, ia num carro todo enramalhetado, ladeado pelos cavaleiros da Trimarkisia. E adiante caminhava um arauto levando um facho acesso, que como símbolo nupcial dava à cavalgada o prestígio do sentido religioso. Em todo o percurso ou pompa, modulavam-se hinos consagrados; e de toda a parte vinham ao encontro da cavalgada homens e mulheres, que atiravam com flores para o carro da noiva e lhe derramavam trigo pela cabeça, augurando felicidades.

Ao aproximar-se de Viseu, três raparigas robustas e esbeltas, trajando vestidos garridos, com as suas arrecadas de ouro, vieram colocar-se à frente do carro de Lísia, e foram seguindo-a cantando-lhe uma Canção de marcha nupcial. Pelas suas vozes, como excelentes cantadeiras, bem conhecidas, espalhavam alegria em volta de si; eram Caenia, Aponia e Niliata, de que Viriato se recordou com júbilo. Fora ao subir da serra dos Hermínios que elas lhe falaram de Lísia, e é com o mesmo encanto que agora entoam a:

Marcha nupcial
Bem vindo o par ditoso
Para a nova morada!
Do amor o laço forte
Não o desata a morte.
Pelo braço do esposo
Lá vem a bem casada!
Laço que a união celebra,
Nem mesmo a morte o quebra.
Como ao tronco ramoso
A vide entrelaçada,
Que outro laço mais ata?
O filho que os retrata.
Que encontre infindo gozo
Nesta união consagrada
O par, que vem sorrindo;
Par ditoso, bem vindo!

Estava a terminar o trajeto festivo, e começava a terceira parte da cerimónia do casamento, em que a entrada da esposa em casa do marido se fazia por um rapto, pelo qual este, sem que ela tocasse com os pés no limiar da porta, a introduzia junto do lar, no novo culto domestico pela sua autoridade de chefe da família, que assim a iniciava pela sua vontade. Era aí que devia ser partido o pão entre ambos, à frente do fogo do lar, bebendo nessa comunhão para a vida e para a morte, unificando as almas por um sacramento indissolúvel. Passou-se rapidamente este acto, porque era imensa a multidão de gente de todas as terras da Lusitânia que esperavam os noivos na Cava de Viriato aonde se formara um esplendoroso arraial, em que se expuseram todas as riquezas naturais e industriais da terra.

Ali se encontravam os Chefes das Contrebias, acompanhados dos seus embates, com os presentes oferecidos aos noivos.

Conheciam-se logo entre a multidão jubilosa os principais chefes dos Castros e Citânias da Serra da Estrela; e diziam os curiosos:

— Olha o chefe do Cabeço do Crasto de Torvoselo! E o do Crasto de Tintinalho? O do castelo de Reigoso!

— Não faltou o Chefe do Cabeço de Ecarrigo; nem o de Videmonte; o de Verdolhas, e de Tabeiró.

A gente de Traz os Montes também reconhecia os seus chefes:

— Lá está o de Castro de Avelãs. Olha o de Formil! Mais o de Fervença. -Também o de Castro Samil! E o de Lambeiro branco! o de Soutelo.

— Mais o de Rabal; e o de Alfaião.

A gente do Alentejo mostrava certo orgulho ao apontar para os seus chefes da Orca, de Castro Verde, da Cola, de Castris.

Do norte, da região calaica, viam-se os chefes das Citânias, como os das de Briteiros, Tintinolho e Sabroso; o chefe da Coroa de Amonde; e o do Morro de Afife; o do Castrelo de Neiva; o de Monte Ferroso; de Laúndo, Guifães, da Roboreda. Era uma homenagem unanime de simpatia, de reconhecimento a Viriato pelo êxito da violenta campanha de libertação da pátria comum.

Com as festas que por toda a Lusitânia e Celtibéria se fizeram ao conhecer-se o texto do Tratado de Paz, e ao regressarem aos seus lares os homens que há tantos anos andavam na guerra da independência, coincidiu também a notícia de que em breves dias seria celebrado o casamento de Viriato com Lísia, a virgem senothêa, aquela que sempre vaticinara a liberdade da Lusitânia.

Assim, cada uma das terras que contribuirá com tantos sacrifícios para coadjuvar Viriato no castigo da infamíssima e sanguinária perfídia de Galba, resolveu mandar uma deputação para a representar nas festas nupciais do valente Caudilho. Essas deputações eram formadas por rapazes e raparigas, vestidos com os trajos das suas províncias os mais vistosos e caraterísticos, que iriam fazer os cortejos do esposo e da noiva, e alegra-lo com as suas danças e cantares, durante os dias das bodas e torna-bodas; iam também os homens bons ou antigos com os presentes de bois e novilhos, de vinho, cereais, frutas e sequilhos, para que a nova família se iniciasse pela abundancia; e as mulheres, as mães, que fiavam no lar, ofertaram também as suas grandes teias de pano de linho e bragal, meadas de linha alvíssima e fina, boiões de mel, e aves sem conto. Era uma homenagem com o sentido de uma contribuição nacional espontânea aquele que soubera unir as populações dispersas no mesmo sentimento de uma Pátria livre.

Para a cidade de Vaca, fundada pelos Turdulos, que está próxima das fortes muralhas da Cava aonde Viriato no ano DCVIII derrotara o Cônsul Nigidio, é que se dirigiram todas as deputações para as festas do casamento do Caudilho. Ali, naquela cidade, junto do rio Vácua, costumava Viriato recolher-se temporariamente das fadigas da guerra; era ali que tencionava viver tranquilamente o resto dos seus dias no remanso do lar com a adorada esposa, Lísia, que tanto o fortificara pelo ascendente moral e confiança no futuro da Lusitânia.

Da cidade de Vaca partiu o cortejo dos rapazes à frente de Viriato, que iam ao encontro da noiva, que vinha da Ilha sagrada de Achale, acompanhada pelo seu pai Idevor e pelo grupo das donzelas de todas as cidades lusitanas lá reunidas para essa marcha. Por onde Lísia passava punham-lhe arcos de flores e verdura; tapetavam-lhe a estrada com ramos e plantas aromáticas de alecrim e verbena, e arrojavam-lhe punhados de trigo, cantando seguidilhas de felicitação e augurando venturas.

Quando o cortejo chegou à margem do Vácua, os grupos interrogaram-se mutuamente, e depois de simuladas as perguntas e respostas, em que Lísia era concedida como esposa a Viriato, o guerreiro passou o rio com presteza, e como por encanto lançando o braço em volta da cinta de Lísia, levantou-a do chão para cima do seu cavalo branco, partiu à desfilada o acto cerimonioso do rapto. Todos os mancebos foram após ele, mas quando chegaram à cidade de Vaca já encontraram Viriato e Lísia juntos no balcão de pedra que dava entrada para a casa que fora construída para habitação dos noivos.

Diante do terreiro da casa, coberto por uma extensa ramada, cheia de dourados cachos de uvas, começaram os cantos e danças; e depois da chegada de Idevor, os noivos desceram para vir ao encontro do velho Endre, a quem beijaram a dextra, que ali diante de todos consagrou aquele consórcio unindo-lhes as mãos. Então, de braço dado, os dois esposos dirigiram-se à Cava enorme, dentro de cujas muralhas estavam expostos como numa Feira franca todos os gados, cereais, tecidos, objetos de trem doméstico e mais delicados presentes, que as populações lusitanas ofertavam a Viriato como seu libertador. A vista dessa assombrosa homenagem manifestava o quanto Viriato era querido, e bem explicava a confiança com que à sua bravura tinham ligado os seus destinos aquelas terras, que ele conseguira libertar.

Viriato e Lísia foram percorrendo a Cava, em que estavam expostos todos os presentes, que representavam as riquezas das regiões lusitanas. Reconhecia-se a região do Norte, entre Douro, Minho e Beira Alta, pela abundancia dos seus milhos, pelo centeio da primavera e do verão, pelas excelentes castanhas. A região montanhosa da Beira Baixa e Trás-os-Montes, pelos seus nédios bois, carneiros e cabras das boas pastagens das encostas e vales; e pelo seu trigo mole e centeio. A região central da Extremadura até ao Tejo, mandava das suas extensas e férteis landes os trigos molares e rijos, castanhas deliciosas, azeite cordovil e vinhos generosos. A região do sul, Alentejo e Algarve, apresentava o trigo de inverno, os figos secos, tâmaras, alfarrobas e castanhas piladas, e porcos de uma criação afamada.

Viriato, lembrado dos anos da campanha libertadora, não pôde olhar para os cavalos em que vieram os chefes das Contrebias, sem confessar quanto devia ás suas qualidades de resistência excecional. E conversando com os chefes que o rodeavam, iam uns e outros notando:

— Este tipo galiziano, de cavalos pouco corpulentos, e resistentes ao trabalho, é comum ao Minho, ás Astúrias, Vaconia e Navarra.

— E estes mais corpulentos, com grande aptidão para o trabalho de carga e de tiro, formam uma variedade castelhana, que se encontra aí pelo Minho, Trás-os-Montes e Beira.

— Cá para mim, o tipo da minha paixão é o bético-lusitano! Estes cavalos das províncias do sul, são elegantes de formas e de postura. É olhar para essa raça de Alter, das Lezírias do Tejo e do Alentejo; incomparáveis.

Em homenagem a ter Viriato sido na sua mocidade pastor e chefe da Mesta, grandes manadas de bois vieram à feira aparatosa, na representação de cada província. Viriato foi passando vagarosamente à frente das manadas, interrogando com entusiasmo, e caraterizando com os chefes das Contrebias as diferentes raças.

— Estes bois vermelhos, amarelos e fulvos, isto é que é próprio para trabalho! as vacas são extremamente leiteiras. Quem não reconhece neste gado o Minho e a Galiza?

— Também pertence a esta raça galeziana, o barroso, lá do Gerês.

— Estes são da raça Maronesa, robustos, ligeiros, firmes no passo. São aí das regiões vizinhas do Durio.

— Aqui agora os da raça mirandesa; é a que se acha mais espalhada, por Trás-os-Montes, grande parte da Beira e da Extremadura. Também por aqui se veem as suas variedades, a bragancesa, a mirandesa ribeirinha, a estremenha. Isto sim, que é raça para trabalho violento!

— É por isso que se tem propagado tanto.

E prosseguindo neste passeio pela Cava, Viriato e os chefes das Contrebias foram notando os bois de Arouca, excelentes, sofredores, de Lamego, Caramulo, predominando entre o Durio e o Vácua. E elogiaram a raça ribatejana, brava para campo e corridas; a alentejana e a algarvia, dócil, sóbria, cor de castanho claro, e própria para trabalho e engorda.

E na grandiosa feira em que se representava o génio de cada província, viam-se também as raças ovinas, a bordeleira, que predomina do Minho até ao Tagus; os merinos, de Campo Maior e Marvão, Moncorvo, Mirandela e Vila Flôr; e as estambrinas. Estavam ali as cabras da Serra da Estrela, do mais belo pêlo longo, e as de pêlo raro, todas muito leiteiras. E os porcos Bisare, do Minho, Trás-os-Montes e Beira; com os do Alentejo, Extremadura, Algarve e margens do Tejo, chamados Romanice.

Via-se ali representada a alfaia agrícola, que estabelecia uma transição para os produtos industriais. Era um encanto examinar a perfeição dos arados, cangas, carros, engaços, sacholas, celhas, concas, crivos. Destacavam-se mais adiante as louças de barro, de argilas ócreas. Nos trabalhos têxtis, as linhas ou fios de cozer em meadas alvíssimas e novelos; rendas, cortinados, adamascados; as lãs de Portalegre e da Guarda em cobertores; as estamenhas, cintas, panos, de trabalho doméstico do Algarve: os buréis e batas listradas, da Covilhã e de Viseu.

Mas o que mais atraía a atenção de Lísia eram os trajos lusitanos, que davam ao arraial um fulgor pitoresco, de cores e talhos: a Capa de honra, de Miranda; o Gabinardo de Nisa; a Capinha de Barroso e Sobreira; a Castreja de Laboreiro; a Jangadeira de Anha; a Camponesa de Perre, Areosa, Meadela e Ovar; a Ceifeira alentejana, maiata, poveira; era um espetáculo comovente.

Grupos de mulheres vieram acercar-se de Lísia e ofertaram-lhe com alegria presentes especiais: a roca de freixo ruge-ruge cheia de ornatos; aventais de Viana; lenços bordados, segundo o costume, pelas noivas de ao pé do rio Vácua; rendas de malheiro, de Aveiro, Setúbal e Lagos, e rendas de bilro de Viana, Vila do Conde, Peniche e Setúbal.

As mulheres mais abastadas também lhe ofertaram peças de ouro e prata feitas pelos lavrantes de Gondomar e Fânzeres; eram argolas de beira lisa, arrecadas, botões de amoras, brincos fusiformes, laças, corações de filigrana de ouro.

Foi ali dentro da Cava que se armaram as mesas para o festim nupcial; ali estavam as pipas do vinho palhete, e as frutas com abundancia. A variedade dos trajos e as fisionomias dos indivíduos que representavam a nação desde os Galaicos até aos Cúneos, davam uma impressão viva e simpática de um forte povo que tinha uma feição própria, e que queria viver livre. As danças eram continuadas, simulando combates, e saltos espantosos. Homens e mulheres formam bandos, em frente uns dos outros, alternando os versos da Canção, e um coro dos homens antigos que as presenciavam é que ia repetindo o refrão, em que soava o nome de Viriato.

Foi à mesa do banquete, que Viriato se ergueu, junto de Lísia, e tirando do seu pescoço a Viria ou Colar de ouro do comando, que até aquele dia trouxera, o colocou no pescoço da formosa esposa, abdicando ali diante de todos do poder militar que lhe tinha sido confiado, e confinando-se na vida pacifica do lar. Dali em diante o símbolo da guerra ficava uma joia, adorno da graça feminina; e a arma tornar-se-ia utensilio de trabalho.

O banquete correu animado e sempre cordato, dentro das muralhas da Cava, que era naquele momento um arraial pacifico, nunca visto. à medida que os grupos se iam levantando da mesa, na planura vasta da Cava desenvolviam-se os jogos guerreiros, a vapulação, os saltos, os sarilhos, as lutas atléticas, e ouviam-se brados aclamatórios:

— Viva a Calaecia!

— Viva a Vetónia!

— Vivam os Carpetanos!

— Vivam os Oretanos!

— Viva a Beturia!

— Viva a Cinesia!

Naquele momento Viriato ergueu-se com uma taça de vinho rubro na mão, e unificando todos aqueles gritos, que representavam o espirito separatista das diferentes terras, proferiu com a voz timbrada e sonora acostumada ao comando:

— Viva a Lusitânia!

A vibração daquela voz e daquele nome produziu um delírio indescritível; e daqueles gritos sinceros e fervorosos, provocados por um íntimo sentimento de Pátria, destacou-se uma outra, distinta e majestosa:

— Viva a Lusitânia! e com ela Viriato, símbolo da sua independência.

As festas do casamento duraram outo dias, e nesse decurso nunca deixaram de chegar novas mensagens, e carinhosos presentes que se foram acumulando na Cava. No meio daquela multidão alegre levantou-se um rumor entusiástico, vendo aparecer um formoso touro ladeado por cinco campinos; seguia lento e majestoso, levando enfiadas nas pontas, brancas regueifas de trigo, e em volta do pescoço grinaldas das mais recendentes flores. Era o costume dos povos da Extremadura, nas suas festas da entrada da primavera, que votavam a Viriato esta sua manifestação cultual. Por onde o touro passava, uns lançavam-lhe flores, outros batiam-lhe no lombo lustroso palmadas de afeto, e a multidão seguia atrás para presenciar a entrega daquela expressiva oferta a Viriato. Os chefes das Contrebias, que assistiam à aparatosa cerimonia, aproximaram-se de Idevor, insistindo com empenho:

— Explicai-nos o sentido religioso da Festa do Touro. Porque é que encontramos por todo o território hispânico Touros de pedra, como esses de Guisande? Que sentido histórico terá a lenda do combate de Mithra com o Touro atravessado pela sua espada, como se vê insculpido em tantas rochas e monumentos?

Idevor acedeu prontamente ao empenho:

— «Um povo, que habita na latitude em que o maior dia do ano é o dobro do menor dia do inverno, desenvolveu-se e enriqueceu na paz dos trabalhos da Agricultura. Para ele o Sol representava-se-lhe à mente como o Touro celeste: e no começo do Ano solar, na eflorescência estival, simbolizou essa Constelação pelo signo do Touro, a força geradora, a potência fecundante. Esse símbolo zodiacal do Touro, conservou este nome entre todos os povos civilizados, como expressão de um conhecimento astronómico; e foi também objeto de adoração. O nome de Thor, o deus dos povos da Germania e da Escandinávia, designa o Touro, tornado a própria imagem do deus. Os Cimbros e Teutónicos, que invadiram a Itália, juravam sobre o boi sagrado, que traziam consigo.

Thor, o chefe de todos os deuses escandinavos, é representado com um cetro com cabeça de boi. Muitos nomes de povos e de lugares foram tomados deste símbolo do Touro, como o monte Tauros, o Darana, ou Atlas, os Tourici e Taurini, e a região da Taurida. A Civilização deste povo ocidental foi propagada ao Oriente, e chamaram-lhe Turan, pela representação do Touro, ocupando o primeiro lugar entre os quatro Signos do Zodíaco, na casa em que marcam no Céu as Estações solsticiais e equinociais.

«Contra esta civilização do Ocidente, que divinizara o Fogo material do Sol, no Touro, combateu o Iran, simbolizando no jovem Cavaleiro cercado de raios luminosos, Mithra, o Fogo vivente e espiritual. A luta do Iran e de Turan foi representada num combate de Mithra atravessando com a sua espada o Touro; era o antagonismo e o triunfo da civilização militar sobre a civilização agrícola, sacrificada diante das invasões da força armada, da rapina organizada. A vinda dos Persas à Hispânia foi uma consequência dessa luta; Mithra também aqui venceu o Touro, que representava as forças impetuosas da Natureza.

«Mas, apesar desse triunfo, podemos exaltar o Touro na sua morte, como no velho hino: «Do seu corpo nascem as plantas salutares que cobrem a terra de verdura; do seu sangue vem o vinho, que produz a bebida sagrada dos Mistérios, e dos seus tutanos o trigo que dá o alvo pão; do seu espremem derramado provieram todos os animais uteis.» O Touro será vencido pela Espada, mas esse triunfo só ficará efetivo quando os vencedores pelo seu turno cultivarem a terra, levantarem cidades, abrirem estradas e coadjuvarem pelo comércio a confraternidade dos Povos. Então a Espada desaparecerá, para que a Cornucópia, esse emblema da Força do Touro, seja o símbolo da Abundancia e da riqueza inesgotável, restabelecendo no mundo a supremacia do Ocidente.»

Mal acabara Idevor de esboçar o poema que se recita em Hierna, do Touro ou Tarvos, defendido pelas árvores cortadas para não ser agarrado, quando se ouviram estrondosas gargalhadas a pouca distancia. Era um desafio de bebedores:

«Ganhava a palma o que bebesse de um só folego um grande vaso de vinho.»

Só um vencera, sendo por isso aclamado com a gargalhada estrondosa. Viriato olhou, e reconheceu Bovecio.

— Bovecio! que eu vi hidrópico, e que está agora são como um pero, e faz destas valentias!

Acenando-lhe com amizade, Bovecio veio respeitoso, e murmurou submisso:

— Bebi na fonte de Ouguela. A vós, senhor, devo eu a saúde e a vida.

Por vós a sacrificarei com orgulho.

CAPÍTULO XLVII

Estavam as festas do casamento no auge do fervor, quando se aproximou de Viriato Tantalo, que chegara repentinamente, e lhe comunicava:

— Enquanto Quinto Pompeu Rufo está dirigindo o ataque contra os Numantinos, Quinto Servilio Cepio destacou-se do exército romano, e descendo com algumas Legiões para a região Ocidental da Hispânia, rompendo hostilidades, quebranta assim o Tratado de Paz ratificado pelo Senado! Acompanha-o Décio Júnio Bruto, o que quer dizer, que é uma campanha em forma.

Viriato encarou Tantalo com assombro, por ver que a infâmia de Cepio era tão clamorosa como a carnificina feita por Galba, e apenas proferiu a frase:

— Ainda tenho a minha espada!

E aproximando-se de Lísia, tomou-lhe as mãos com ansiedade:

— Vou partir. Sou informado neste momento que o Cônsul Quinto Servilio Cepio opera com um exército entre a Oretania e a Carpetânia! Tenho de ir sustar de pronto a este perigo, e impedir a deslealdade do Cônsul.

E aproveitando aquelas ultimas horas da festa do seu noivado, chamou os Mil Soldúrios que o acompanharam sempre durante os dez anos de campanha contra os romanos, para que passassem palavra a todos os que ali estavam, representantes da Vetónia, da Carpetânia, da Oretania, da Calaecia, da Beturia, da Cinesia, para que partissem para as suas terras, que referissem a infamíssima deslealdade de Cepio, e que tivessem prontos para a primeira chamada os Terços e Companhias com que faria frente ao Cônsul indigno que assim rasgava um Tratado solene.

E depois de ter beijado a face de Lísia, numa despedida muda mas melancolicamente expressiva, seguiu em marcha com os Mil Soldúrios, avançando em direção aos Vetões para formar o seu primeiro núcleo de resistência.

Corriam a trote largo, quando ao passarem por um rio, em que os cavalos foram dessedentar-se, uma pobre lavadeira que estava aí à beira de água, fitou Viriato com um olhar compassivo:

— Como uma festa tão alegre do feliz casamento se interrompeu, sem ninguém tal pensar!

Os Soldúrios não fizeram reparo do que dizia a pobre mulher, que lavava à beira do rio; continuou murmurando:

— Ele não morrerá em batalha, isso é bem certo! Lísia ficará sempre noiva.

Em breve os cavaleiros se afastaram da margem e precipitaram a carreira, seguindo Viriato na frente, com a impaciência de ir defrontar-se com o perigo. E a obscura mulher, continuando a lavar à beira do rio, falando consigo, sem ser ouvida por ninguém, dizia na sua credulidade:

— Na minha choupanazinha eu tinha dependurada a Boliana, para me revelar a sorte de Viriato. Enquanto Viriato andou dez anos a fio nas guerras contra os Romanos, a Boliana estava sempre verde. Só de ontem para hoje é que reparei que a Boliana emurchecia. Estou a ver o seu destino; mas a Espada de Viriato é invencível! e Viriato não morrerá em batalha! São a favor dele os agouros... só a Boliana é que está emurchecendo.

Ia a perder de vista a cavalgada, e lançando-lhe um olhar demorado, murmurou a pobre mulher antes de continuar no seu trabalho:

— Estão-me a lembrar agora aquelas palavras da Canção do noivado!

Falavam de morte, no meio de tanta alegria; não fui eu só que o notei, quando cantaram:

Laço que a união celebra,
Nem mesmo a morte o quebra.

O povo tem a intuição das coisas; na sua inconsciência aparece por vezes como vidente.

CAPÍTULO XLVIII

Cepio, por cúmulo da sua perfídia, sabendo que o exército de Viriato fora licenciado e que os Terços e Companhias tinham regressado ás suas terras e províncias, levou o decoro afrontoso a talar o solo da Lusitânia para se encontrar com Viriato desarmado.

No seu caminho, Viriato topou com multidões de gente foragida das cidades invadidas, saqueadas e incendiadas por Quinto Servilio Cepio. Vendo-o passar, em grandes alaridos pediam socorro, que acudisse a tamanha calamidade; porque o Cônsul Cepio já estava ali perto, e forçara, com medonhos suplícios, alguns aldeões a declararem o caminho que Viriato seguira, contando agarrar o general lusitano.

Viriato, encobrindo a surpresa da notícia, e perante o perigo, resolveu o plano a opor-lhe: retirar-se para o país dos Vetões, aonde tinha gente firme e da máxima confiança. Era-lhe fácil aí um levantamento em massa. E para não perder tempo, mandou emissários aos Galaicos, para acudirem ao atentado inqualificável com a maior presteza, porque desde o crime de Servio Sulpicio Galba, não se vira perfídia mais clamorosa como esta agora de Quinto Servilio Cepio.

No entanto, o Cônsul procurava com o seu exército Viriato, e sabendo que ele está próximo da Carpetânia, com homens recrutados pelo caminho, mal armados, com foices roçadoiras, machados, chuços e mangoais, entende que é essa a melhor ocasião de atacar o caudilho lusitano e libertar o domínio de Roma na Hispânia desse libertador patriota. Diante de um exército assim considerável como o de Cepio, Viriato, com um tino prático incomparável, reconheceu que seria rematada loucura aceitar batalha em condições de tamanha desigualdade. E tirando da própria dificuldade do momento os recursos para uma inesperada defesa, descobriu no terreno aonde todo o exército se perderia um ponto de que soube aproveitar-se para a salvação. Recuando para um vale profundo, para o qual dava entrada uma garganta estreita, por ali fez passar a pouca tropa de que dispunha, embaraçando com os seus Mil Soldúrios, que o exército romano se aproximasse e o envolvesse. Durante esta passagem para o vale amplo, os Cavaleiros simulavam movimentos como quem se preparava para uma batalha campal; e os Romanos suspeitando que Viriato os atrairá para ali, porque teria no vale um considerável exército sobre que se apoiava, fizeram alta, temerosos da cilada, porque viam através da estreita garganta estendidos ao longo do vale negrejarem os vultos dos Terços lusitanos.

Viriato prolongou esta situação expectante, para dar tempo a pôr fora de perigo as pequenas forças do seu comando. Conseguido isso com a maior felicidade, Viriato, a um sinal dado, dispersou-se com os seus Soldúrios com uma rapidez inacreditável, desaparecendo por entre os anfractuosidades do terreno com surpresa dos romanos, que debalde tentaram irem no encalço deles em perseguição. Cepio, desesperado por aquele acto heroico de Viriato, que assim lhe patenteava a sua superioridade militar, avançou pelo território dos Vetões, queimando-lhes as cearas, derrubando os casais isolados e pondo a saque as povoações, passando à espada todos os que encontrava armados, dando caça ás guerrilhas que procuravam juntar-se a Viriato.

CAPÍTULO XLIX

A malvadez com que o Cônsul Cepio procedia contra as povoações inermes, chegando a mandar expor nas praças pregados em cruzes os lusitanos que lembravam o Tratado da Paz violada, fez refletir Viriato, forçando-o a um acto de coragem e dignidade. Participou aos seus companheiros:

— Aos estragos que Cepio está praticando, não sendo possível opor-lhe já uma força armada, que ainda leva seu tempo a reunir, cumpre opor-se-lhe neste momento a força moral.

— A força moral? Objetou Minouro. -Em que consiste neste transe a força moral?

— Quero lembrar a Quinto Servilio Cepio, que temos um Tratado de Paz assignado pelo seu irmão Serviliano, e ratificado pelo Senado e pelo Povo. Que pela nossa parte ainda o não infringimos, e que acreditamos na fidelidade de Roma no cumprimento das leis que ela a si se decreta. Que três dos meus mais leais Companheiros vão daqui ao acampamento de Cepio mostrar-lhe o Tratado de Paz, e declarar-lhe que à majestade dele entregamos a nossa defesa.

E voltando-se para Ditálcon, Andaca e Minouro, que o contemplavam silenciosos, disse-lhes com voz firme:

— A vós, como os meus maiores e mais leais amigos, encarrego de irem ao arraial de Quinto Servilio Cepio apresentar-lhe a respeitosa homenagem dos Lusitanos; e em seguida ás declarações de confiança no Tratado de Paz ratificado pelo Senado, mostrai-lhe esse diploma autêntico, trocado entre Roma e a Lusitânia.

E entregou as lâminas de cobre em que estava gravado o Tratado a Ditálcon, o mais velho dos três Companheiros, que partiram rápidos para o acampamento romano, levando ramos de oliveira apanhados pelo caminho, por servirem de parlamentários que pediam paz, ou que iam com intenções pacíficas. Os três companheiros iam conversando:

— Viriato, com certeza, não sabe quem é Cepio, um dos maiores devassos de Roma? E é com um sujeito destes que Viriato se fia em força moral!

— O Cônsul não perde esta ocasião; e bem tolo será se a não aproveitar para vingar seu irmão Serviliano, forçado por Viriato a assignar esta Paz.

— São passadas perdidas, estas; porque Cepio sabe que não temos gente, e carrega sobre nós a valer. Oh, se carrega! Nem fora ele tão estupido como general para cobrir a sua inépcia com este lance.

— Pode ser que as passadas não sejam perdidas! Porque Cepio é homem para entrar em negócio...

— Em negócio?

— Há ás vezes combinações imprevistas, que dão novo rumo aos acontecimentos.

— E esta ocasião é asada para isso.

— O ponto está em sabe-la aproveitar habilmente.

O diálogo entrecruzava-se, quando Ditálcon, Andaca e Minouro chegaram ao acampamento romano. As vedetas e guardas avançadas avisaram de pronto; Cepio mandou alguns Cavaleiros para acompanharem até à sua barraca os parlamentários enviados por Viriato, imaginando que vinham anunciar-lhe a rendição do Caudilho lusitano, ou em pior hipótese, que Viriato achando esta hostilidade incompatível com a dignidade militar, lhe mandava o desafio provocando-o para um combate singular, em campo aberto. Porém Cepio afastando da mente esta conjetura que não lisonjeava a sua covardia, refletiu tacitamente:

— Se me apresentarem um tal doesto, recusarei dizendo: Que deixo esses combates singulares aos gladiadores da arena, pagos para espetáculo do povo, sempre ávido de divertimentos.

E mandando entrar à sua presença os três parlamentários, divisou-lhes uma expressão de quem antes de falar já se entendia.

CAPÍTULO L

Na ideia em que Cepio os achava, mostrou aos três parlamentários um sorriso de afabilidade, e um trato verdadeiramente urbano:

— Direis a que vindes.

— Envia-nos Viriato. -Assim disse Ditálcon, o mais velho dos companheiros.

— Ouvirei atentamente.

— Envia-nos Viriato a dizer-vos, que tendo recebido da grande e generosa Roma o titulo extremamente honorifico de Amigo, é-lhe moralmente impossível, sem peça de traição, o pegar em armas contra a poderosa Republica. Isto pelo seu lado, dando como prova os factos de estar dissolvido o exército lusitano, e ter deposto as armas confinando-se na vida civil pelo seu recente casamento. Quanto a vós, vendo como viestes talando a Lusitânia, queimando cidades pacíficas, e ainda agora atacais violentamente os Vetões e Galaicos, lembra que existe o Tratado assignado pelo vosso irmão e ratificado pelo Senado e pelo Povo romano, no qual está garantida a paz e tranquilidade da Lusitânia. Pedia pois...

Cepio, mal podendo encobrir a cólera:

— Não posso ouvir falar nesse Tratado assignado pelo meu irmão, sem que o sangue se me revolva. Perco a cabeça. Há certas ocasiões em que a honra nos prejudica para uma completa e perfeita vingança. Esta é uma das tais.

— Mas, senhor, aqui trazemos o próprio Tratado autentico, para veres...

Cepio tomou nas mãos o Tratado, olhando-o com desdém, e disse para os três com um sorriso acanalhado:

— Quando eu acompanhei à Hispânia o Cônsul Quinto Pompeu Rufo, que está a combater à frente de Numância, não foi para vir tomar os belos ares da Lusitânia! Esse Tratado nada vale para mim.

— Violais então a autoridade da grande e generosa Roma!?

— Quem vos autoriza a tão monstruosa suspeita? — redarguiu Cepio.

— A letra.

— Qual letra, ou qual careta! respondeu Cepio com o seu ar pulha, que combinava de vez em quando com a filáucia de Cônsul romano. E com ar insolente e confiado continuou, afetando segredo de importância:

— Os Tratados só têm a força que lhes dão as Espadas. Bem vejo que Viriato não está bem munido neste momento, porque me manda lembrar o Tratado. Mas o Tratado... o Tratado já não existe. Quereis saber? Aqui à puridade, e só para nós...

Os três parlamentários aproximaram-se de Cepio, sentindo-se lisonjeados pela confidência que iria fazer-lhes:

— O Senado convenceu-se da indignidade do meu irmão, assignando esse Tratado. Consegui eu mesmo isso; e o Senado concedeu-me secretamente a faculdade de hostilizar Viriato, mas somente hostiliza-lo...

Minouro fitava o Cônsul com o máximo interesse; Ditálcon parecia abatido, e Andaca meditava. O Cônsul, olhando para eles, e pondo-lhes as mãos pelos hombos, continuava:

— Meus amigos! Tenho aqui cartas de Roma dizendo-me, que vem pelo caminho o decreto do Senado mandando continuar a guerra da Lusitânia. Quereis vê-las?

— Basta-nos a vossa palavra! disseram os três.

— Nem podia deixar de ser assim, — prosseguiu Cepio com enfatuado desdém. Acusarão os vindouros Roma de desleal nos seus Tratados, mas nunca de um governo estupido! Pois era lá possível que sustentássemos uma guerra desesperada em Numância, que pertence à primitiva unidade lusitana, e que estivéssemos de mãos atadas na parte ocidental da Hispânia pelo pacto imposto por um cabecilha, que para nós os romanos nunca deixou de ser o Dux latronum!

— Com que, Roma decreta que se continue a Guerra da Lusitânia? inquiriu com assombro Ditálcon.

— Como acabais de o ouvir.

— A nossa missão parece terminada, — disse Ditálcon, quebrantado o ânimo.

— Não a considereis terminada, — interrompeu Cepio, tornando a aproximar de si os três emissários. — Alguma coisa bem combinada se poderá fazer ainda, e depende da vossa inteligência. Quereis a paz da Lusitânia?

— Queremos! acudiram os três.

— A Paz da Lusitânia, mas não a Paz de Viriato! disse o Cônsul com orgulho. Dessa tratemos aqui, partindo do ponto que Viriato é o único embaraço dela, e que enquanto ele viver nunca Roma considerará a Paz da Lusitânia senão como uma afrontosa derrota.

— Mas Viriato é querido do Povo, que o acompanha cegamente.

— É por isso que Viriato é um perturbador. A sua obra é uma loucura!

Quer fazer uma Lusitânia restaurada pela unificação de elementos de raças há tantos seculos extintas, imaginando Lusos, com quem nada têm as gerações atuais.

Ditálcon acenou com a cabeça, em sinal de adesão aquela ideia. E o Cônsul, vendo que estava sendo compreendido, voltou-se para Minouro:

— Nós não podemos andar aqui em balanços ao grado dos sonhos de Viriato; quer fazer uma Pátria Lusitana, com um individualismo e autonomia própria, quando entre Lusitanos e Iberos não existem linhas separativas, nem de montanhas, nem de rios. É tempo de acabar com estas utopias, tornando a Hispânia uma Ibéria unida para aceitar a civilização de Roma e continuar no ocidente a sua obra dominadora.

Minouro regozijava-se com aquelas vistas do Cônsul, que eram também as suas. E Cepio, voltando-se para Andaca, e já com ar determinado a quase imperativo:

— Para atingir este grande ideal da civilização romana, do direito, da administração, da ordem pública, é de força que renegueis a Pátria lusitana.

E como Cepio notava que os três estavam entre si de acordo, disse para eles:

— Roma carece das capacidades e energias dos homens de Hispânia. Eu vo-lo garanto, Roma encarregou-me de vos conferir o titulo de Cidadãos romanos, e as honras do Patriciado, com acesso aos altos cargos da Republica, e uma soma correspondente de sestércios, se...

Os três entreolharam-se, e querendo penetrar nas intenções de Cepio, compreenderam-se todos. Minouro interrompeu a suspensão silenciosa do Cônsul:

— Efetivamente, Viriato está-se tornando um embaraço.

— Quando se chega a certo grão de popularidade, em dados homens torna-se isso um perigo.

— Um acto decisivo vale por anos de luta.

O Cônsul respondeu então com frieza:

— Mantenho as propostas em nome da Republica romana: Impõe-se neste momento a necessidade da morte de Viriato. Roma dá-vos o título de Cidadãos romanos...

— Qual de nós há de...

— Dá-vos as honras do Patriciado.

— A morte de Viriato impõe-se...

— Dá-vos o acesso aos altos cargos da Republica, e uma soma de sestércios.

— Tiremos à sorte quem há de matar Viriato.

O Cônsul estendeu o seu capacete, lançando dentro dele três pequenos seixos, sobre um dos quais escrevera «Morte». Cada um dos três tirou a sua pedra. A Minouro caiu aquela em que estava escrito: «Morte.»

CAPÍTULO LI

Era noite velha, quando Ditálcon, Andaca e Minouro regressaram ao acampamento de Viriato. Demoraram-se mais tempo do que o Cabecilha imaginara, revolvendo por vezes na mente que fortes motivos ou rasões politicas se debatiam na barraca do general romano, para lá se deterem.

De vez em quando ocorria-lhe a conjetura de que Cepio, não reconhecendo a inviolabilidade dos seus parlamentários, os teria mandado passar pelas armas, ou pelo menos os guardava como prisioneiros, como reféns para lhe impor condições de rendição. Nesta prolongada preocupação de espirito, e sob a pressão dos inesperados acontecimentos, que só poderiam ser contrabalançados pela energia e pela astucia, Viriato caiu num sono profundo, como aquele em que se fica imerso antes de caminhar para a morte. Embora profundo, o sono era agitado, como em homem costumado a estar alerta mesmo quando descansava; e nessa agitação, debatia-se Viriato com um pesadelo, um sonho, que sem diferença e por fatalidade coincidia com o que estava prestes a acontecer. Na agitação daquele sono dormido sobre a terra recalcada poucas horas antes pelos cavalos, Viriato sentia os passos dos seus três Companheiros, que se aproximavam silenciosamente da barraca em que estava dormindo; um deles, Minouro, afastou o pano e entrou escondendo de traz das costas um punhal de dois gumes. Naquela ansiedade cataléptica, Viriato quis erguer-se, gritar, mas era impossível qualquer movimento; em seguida entrou Ditálcon, e Andaca ficou quase da parte de fora, mas era ainda visto claramente. Sob o terror do sonho que o oprimia, Viriato viu Minouro curvar-se sobre ele, e erguendo ao ar o braço com o punhal descarregar o golpe...

Nesse momento de extrema angústia acorda, e entre a ilusão e a realidade, sentiu um golpe vibrado fortemente no pescoço; antes que o sangue lhe embaraçasse a voz, Viriato, abrindo os olhos atónitos, pôde proferir as palavras:

— O meu maior amigo? Minouro...

Os borbotões de sangue que lhe encheram internamente o peito e respingaram pelos panos da barraca, não deixaram que pudesse mais exprimir-se, e ficou exânime, arquejando, até ao último alento, passando assim, horrorosamente, de um sonho tremendo, em que Viriato, pela sua lealdade, não ousaria acreditar, para a realidade trágica e afrontosa, que ia atuar como uma eterna calamidade sobre o futuro da Lusitânia.

A morte de Viriato fez-se com rapidez e segurança; os três Companheiros da Trimarkisia saíram da barraca sem ruido, e simulando ordens recebidas de Viriato montaram nos seus cavalos e partiram à desfilada para o arraial romano. Cepio estava dormindo; um Cavaleiro foi acorda-lo, e dizer-lhe:

— Morreu Viriato!

Quinto Servilio Cepio, voltando-se sobre o lado direito para continuar o sono, deu ordem ao Cavaleiro:

— Que esses entes abjetos esperem lá fora, até que seja dia.

CAPÍTULO LII

Viriato era sempre o primeiro que percorria o acampamento; a sua presença era como um toque de alvorada. Naquele dia, que despontava luminoso e sereno, não aparecera; como faltavam também os seus três Companheiros, facilmente imaginaram os Mil Soldúrios que iria reconhecer algum fojo ou desfiladeiro para organizar uma embocada contra o exército considerável de Cepio. Mas o sol erguia-se; era dia claro, e a barraca do Caudilho conservava-se fechada. Ocorreu a ideia de verificar se estaria caído por doença; o que estava mais perto levantou resoluto o pano da barraca, e viu o vulto de Viriato estendido em cima da relva, sobre postas de sangue coalhado; e recuando com espanto:

— Está morto Viriato! Apunhalado, apunhalado!

Aquele brado soou como um estalido de raio, quando, ao perto, fende o ar ambiente; o trovão foi o rumor propagado entre os Soldúrios e por entre os Terços e Companhias, que formavam agora o pequeno exército de Viriato.

— Apunhalado Viriato! Morto Viriato!

Para a barraca do general correram todos aterrados. Não compareceram Ditálcon, Andaca e Minouro; eram os únicos que faltavam. Sem esforço reconheceram que esses, a quem Viriato considerava como os seus maiores amigos, é que o tinham apunhalado traiçoeiramente, covardemente, enquanto ele dormia!

Corriam lágrimas de desespero pelas faces dos velhos camaradas de Viriato nesta campanha de dez anos pela independência da terra lusitana.

A barraca foi desmantelada, e ficou patente aos olhos de todos o corpo inânime de Viriato estendido como se tivesse passado instantaneamente do sono da vida para o da morte; via-se-lhe o golpe profundo do pescoço dado por mão certeira, a que teria sucumbido rapidamente e quase sem agonia. Sobre o sangue derramado em cima de que jazia, e ao seu lado, estava estendida a espada, que o acompanhava sempre, espada invencível, à qual atribuíam poderes maravilhosos. Vendo a espada, e não se atrevendo nenhum dos Soldúrios a toma-la na mão, diziam entre si:

— Agora compreendemos as vozes que corriam: Viriato não morreu em batalha; assim lhe estava vaticinado.

— Mas o oraculo, que lhe parecia favorável, deixara no vago a hipótese atroz, de morrer apunhalado à traição pelos seus melhores amigos!

— Antes vencido e morto na refrega, no sacrifício voluntario da vida por uma ideia, do que esta sorte miseranda.

E por todo o exército, em grupos, que se formavam em tamanha desolação, levantavam-se alaridos, choros de terror e de mágoa; bem reconheciam que aquele desastre era a perdição de todos, e que sem o chefe prestigioso achavam-se à mercê do Cônsul romano, e para muitos anos abafada a resistência da Lusitânia. Na angústia em que todos se viam, a pouca distância do exército de Quinto Servilio Cepio, o desespero da situação causava uma apatia, uma obnubilação para planear a defesa urgente.

Neste momento, afastando os grupos que cercavam o corpo de Viriato, chegou Tantalo, um dos bravos em que mais confiava o Caudilho, e colocando-lhe a espada entre as mãos, cruzada sobre o peito, exclamou:

— Morreu o teu corpo, mas permanece imperecível o teu ideal. Esta Espada transmitirá o esforço, truncado pela traição, aquele que cedo ou tarde servir a aspiração de uma Lusitânia livre.

E voltando-se para o exército, que parecia reanimado por estas palavras:

— O que temos a fazer agora, e primeiro que tudo, é prestar a Viriato as honras do funeral.

Enquanto se davam as ordens para realizarem de pronto, com a maior solenidade, a lúgubre cerimonia, no arraial dos romanos levantavam-se cantos de aclamação triunfal, que ecoavam de quebrada em quebrada:

— Acabou a Guerra da Lusitânia. Morreu Viriato! Morreu Viriato.

CAPÍTULO LIII

No arraial de Quinto Servilio Cepio a inesperada notícia da morte de Viriato propagou-se com uma rapidez inaudita; perguntavam entre si os Legionários:

— Quem seria o valentão que se atreveu a ir atacar pessoalmente aquele colosso?

— Morreu em duelo, Viriato!?

— Só por traição...

— Quem foi o romano astucioso?

— Quem teve essa glória?

— Não há glória em matar à traição.

— Não foi nenhum romano; foram lusitanos, e amigos de Viriato.

— Custa a crer.

— Eles estão aí junto da barraca de Cepio para receberem o premio prometido.

— Então, foi Cepio que os comprou? que os aliciou para a traição?

— Sim! Nada podendo pelas armas, alcançou pela astucia o que nunca poderão conseguir Vetilio, Plancio, Nigidio, Fabio, Quincio e Serviliano. É velho o ditado, mas sempre verdadeiro: Quem não pode, trapaceia.

E nestas conversas entre os Legionários, a curiosidade aguçava-se estimulando alguns deles para irem ver como eram as caras dos três miseráveis que tinham, ao serviço de Cepio, assassinado o general que Roma tanto temia. Os Legionários que passavam e encaravam com Ditálcon, Andaca e Minouro, iam dizendo entre dentes:

— Ia jurar que aqueles homens não são lusitanos!

— Viste aquele mais alto, e mais velho? Se não é um africano branco, bérbere, mesmo ao pintar!

— E o outro? o loiro, parece celta.

— O da cara redonda é que se assemelha mais ao tipo luso; mas assim roliço, e puxando para a gordura... é com certeza ibero.

Afastaram-se à pressa, porque o Cônsul Quinto Servilio Cepio aparecera à porta da sua barraca de campanha; alguns ouviram o som confuso das palavras trocadas entre ele e os três traidores, palavras atropeladas, e das frases destacando-se as que Cepio proferiu com acentuado e esmagador desdém:

— Roma não tem por costume dar premio a soldados que estrangulam o seu general.

As trombetas abafaram o resto da frase, tocando à formatura das Legiões e à parada geral do exército. Enquanto esteve o exército consular em forma, Cepio conferenciou com os Centúrios, estabelecendo o plano a seguir depois da morte de Viriato:

«Primeiramente intimar ao exército lusitano a rendição perentória e incondicional; agora privado de chefe, é de todo impossível a resistência.

«Depois disto, que Décio Júnio Bruto avance com uma parte do exército romano e penetre na região da Vetónia e vá ao encontro dos Calaicos, que tratam de prestar socorro ao exército, conforme o pedido que lhes fizera o Caudilho.

CAPÍTULO LIV

Os Cavaleiros romanos, que chegaram com a intimação afrontosa de Cepio ao arraial lusitano, poderão ver e contaram as cerimónias grandiosas que se praticaram no Funeral de Viriato. Dos Mil Soldúrios que sempre o acompanharam, uns encarregaram-se de vesti-lo magnificentissimamente com as mais ricas e festivas roupas que trajava em tempo de gala, quando animava os jogos celebrando as derrotas romanas. Amarraram-lhe os cabelos na testa, como se fosse para entrar em combate, pondo-lhe na cabeça a tríplice cimeira e o capacete de couro; pendente do pescoço o pequeno escudo concavo, preso por correias, e numa das mãos um punhal largo ou faca de mato, estendida ao seu lado uma lança de ponta de bronze e gancho para não deixar fugir a preza. Outros Soldúrios acarretaram para cima de um alto penhasco que estava na coroa da montanha, grandes molhos de rama de pinheiro, de faias e carvalhos, formando ali uma estupenda pira, sobre a qual, com veneração, foram processionalmente colocar o corpo rígido de Viriato. Parecia um soberbo trono a pira; e logo que cada um dos Mil Soldúrios foi junto do cadáver dar-lhe o derradeiro adeus, dividiram-se em grupos de duzentos, e postos em frente uns dos outros, como quem vai entrar em combate, esperando que fosse lançado fogo à enorme pira. A chama começou a atear-se, e assim que ela irrompeu intensa, principiaram as danças guerreiras em volta da pira, em forma agonística, batendo os escudos, floreando as lanças, brandindo as espadas e entrecruzando-se vertiginosamente, como se esse tripudio santificasse mais o acto lúgubre, continuando ininterruptamente, incansavelmente, até que a ultima labareda, tendo combusto o corpo de Viriato, se apagasse por não ter mais que queimar.

E enquanto aquelas turmas de duzentos cavaleiros dançavam em volta da pira, dois outros grupos conservavam-se balançando-se como a acentuar o ritmo de um Canto, em que celebravam as virtudes e o heroísmo de Viriato. O que esse coro generoso e heroico vociferava, chegou na voz dos tempos a penetrar na história:

ENDECHA FUNERAL
PRIMEIRA TURMA:
De obscura estirpe nascido,
Fora em criança pastor:
Certo prenúncio e augúrio
Que um dia, pelo seu valor,
Inteligência e denodo,
Guiaria o Povo todo.
SEGUNDA TURMA:
Nos transes mais arriçados,
A astucia e penetração
Dos seus planos de batalha,
Descobria a salvação!
Vimo-lo em Tribula, quando
Teve a Viria do comando.
PRIMEIRA TURMA:
Por trazer o Colar de oiro
Não deixou de ser afável!
Dava a todos igualdade,
Contra Roma era implacável!
Nas Legiões consulares,
Mandava ao Orco aos milhares.
SEGUNDA TURMA:
Roma ofereceu-lhe um dia
Da Lusitânia a Realeza!
Simples, modesto no trato,
Cetro e purpura despreza,
Fazer livre a Pátria sonha;
Por ela a morte é risonha.

Este grupo de Soldúrios unindo-se, começaram uma carreira vertiginosa em volta da pira; e os que até aquele momento andavam em volteio alucinante pararam súbito, cantando pela sua vez, divididos em duas filas:

PRIMEIRA TURMA:
Dominou pelas Victoria!
Mas nunca sua vontade
Altiva se exerceu fora
Da Justiça e da Equidade.
Sempre as prezas repartia;
Nada para si queria.
SEGUNDA TURMA:
Valente, audaz, destemido,
No seu viver era sóbrio!
Comodidades e luxo
Tinha-os por vil opróbrio.
Para a liberdade atreito,
Tinha o duro chão por leito.
PRIMEIRA TURMA:
Triunfava nos perigos
Pela astucia e pela audácia!
Cansou Roma, a Paz lhe impondo
Pela instante contumácia.
Manietou os tiranos
Na campanha de dez anos.
SEGUNDA TURMA:
Nesses dez anos de luta,
Á sua voz tudo corre;
Uniu-nos pela vontade
Que a Pátria lusa socorre,
A nossa Pátria ditosa,
Que, firme, libertar ousa!
AS QUATRO TURMAS:
E Roma, sempre vencida,
Só achou o assassinato,
Pela perfídia afrontosa
Para vencer Viriato!
Vergonha à Cidade eterna,
Que pela traição governa.

O Canto do soberbo coro acabou pela estranha Vociferação, condenando a traição execranda de Roma contra Viriato enquanto dormia. Areytos e Tripudios funerários acabaram simultaneamente; e enquanto se abriu uma vastíssima cova para arrojar as cinzas de Viriato, procedeu-se ao sacrifício das vítimas consagradas aos manes do general insubstituível. Cortaram as dextras dos prisioneiros romanos, que eram quase todos iberos e levantinos, e foram mortos muitos cavalos. Dedicados amigos de Viriato combinaram entre si o suicídio religioso, para o acompanharem além da morte, sendo ali enterrados sobre as cinzas daquele com quem contavam encontrar-se num melhor mundo. Subitamente apresentou-se à beira da cova Bovecio, e exclamou com voz firme:

— Ao bom conselho de Viriato devi o voltar à vida, de uma doença mortal. É meu dever acompanha-lo na morte.

E vibrando em si próprio uma punhalada, caiu borbotando sangue na larga cova aberta. Muitos dos Soldúrios de Viriato, levados pela mesma vertigem, proclamaram o suicídio religioso. Então Andergus, o espadeiro de Toletum, propôs:

— Que se suicidem tantos amigos e companheiros de Viriato, quantos os anos que duraram os seus combates contra Roma.

Avançaram para ao pé de Andergus os Maiorais da Mesta, Edovius, Togotes, Uvarna, Sutunus, Semeca, e alguns chefes de Contrebias, tais como Aernus e Candiedo; e começaram entre si um duelo desvairado, jogando-se golpes de morte, cada qual procurando não ser o último sobrevivente. Andergus foi o primeiro a cair por terra. Mas a cerimónia inaudita teve de ser interrompida por um sucesso impressionante: dois Cavaleiros romanos, em nome do general Quinto Servilio Cepio, apresentaram-se intimando a rendição do exército lusitano.

— Nunca! — bradaram os primeiros que ouviram a intimação afrontosa.

— Não se pactua com um general que julga chegar à vitória pela traição.

E os que iam suicidar-se pela confraternidade heroica, decidiram:

— Morramos, sim, mas em luta desesperada contra o infame Cônsul.

E naquele momento, lançando a ultima pá de terra sobre a sepultura de Viriato:

— Para a frente! Tantalo, Tantalo seja o nosso general, para continuar a campanha.

CAPÍTULO LV

Depois que Tantalo tomou o comando do pequeno exército lusitano, ali mesmo em conselho armado assenta o plano a seguir para evitar o combate com Cepio:

— Temos dois recursos: ou debandar o exército, indo cada um de nós recolher-se a Numância, e coadjuvarmos Salóndico, que resiste com valentia a Quinto Pompeu Rufo; ou seguirmos em marcha sobre Sagunto, que está em poder dos Romanos, é verdade, mas cujas cercanias acham-se povoadas por Turdetanos.

— Para Sagunto! Para Sagunto.

A marcha fez-se com precipitação, de modo que Cepio, vendo que os Lusitanos não se rendiam, e dando ordem para o ataque imediato, encontrou o campo abandonado. Mandou circular em todas as direções para descobrir o caminho que os lusitanos seguiam; e facilmente lhes seguiu o encalço, alcançando-os próximo das vertentes de Palância e do Túria.

Tantalo não pôde evitar o combate; reconhecia que era impossível a vitória, mas a derrota certa havia de custar muito sangue aos romanos.

E voltando-se para os Soldúrios, que no funeral de Viriato se juntaram dois a dois para lutarem em duelo até chairem mortos para acompanharem ao outro mundo o seu chefe, exclamou:

— Agora é que vale a pena morrer. Continuamos ainda a glorificação de Viriato.

O arranque com que os Lusitanos receberam o ataque do exército de Cepio foi de molde, que o Cônsul, seguro da vitória, julgou melhor, ainda assim, não se aventurar ás contingências do momento; e antes de dar o golpe decisivo, e dispostas todas as forças para o desfecho tremendo em que seriam passados à espada, mandou dizer a Tantalo:

— Posso oferecer-vos a Deditio. Quero ser generoso com os bravos que não temem a morte.

Tantalo explicou aos seus companheiros o que era a Deditio concedida pelo general romano:

— Se nos entregarmos como Dedititios, ficamos súbditos de Roma, e como tais ninguém nos poderá reduzir à condição de escravos vendendo-nos nos mercados como bestas de carga. Como Dedititios tem de nos ser dado um território para habitarmos como Colonos.

A ideia de nunca serem escravos mais do que tudo sorriu aqueles cansados lusitanos; e então Tantalo mandou entregar a sua espada a Cepio como sinal da rendição.

Cepio desejava apagar a mancha indelével da deslealdade com que rasgou o tratado de Paz, e procurando atenuar o odio da perfídia com que fez assassinar Viriato, deu aos troços da gente que formava o exército lusitano o território extenso e fértil do vale banhado pelo Túria, para o colonizarem pacificamente.

Passados dois anos, Décio Júnio Bruto, denominado por antonomásia o Calaico, por ter derrotado os quarenta mil galegos que vinham em auxilio de Viriato, confirmou os privilégios daqueles dediticios, e à cidade que tinham fundado e já se tornava florescente deu o nome de Valencia, consagrando o heroísmo dos destemidos lusitanos.

CAPÍTULO LVI

Estavam acabadas as guerras de Viriato, mas não estava pacificada a Hispânia lusitana. Décio Júnio Bruto tinha transposto o rio Lima, e entrado na Galiza vitorioso, refugiando-se a pobre gente nas cavernas do Monte Medulio. Dentro em Numância, o chefe celtibero Salóndico resiste tenazmente contra os generais romanos; ele tinha a valentia de Viriato, mas faltava-lhe a astucia e prontidão em inventar uma cilada.

Roma não o temia tanto, embora à sua frente combatessem sucessivamente Marco Pompilio Lenas, Caio Hostilio Mancino, Marco Emilio Lepido, Lucio Furio Filo, Quinto Calpurnio Pisão, até Cornelio Cipião Emiliano.

Pela indomável bravura com que Salóndico sustentou Numância, chegou a correr entre o povo a voz misteriosa, que era nas suas mãos que estava a Espada de Viriato, a invencível espada. Verdadeiramente quem sabe aonde está oculta essa espada, que sintetiza a energia para a independência da Lusitânia? Sabe-o Tantalo, que a salvou de perder-se com generoso intuito, na rendição junto do Túria.

Passaram-se esses terríveis acontecimentos, que deixarão inolvidável o ano de DCXIV; Lísia, somente ignorava no seu retiro em Vaca a sorte da campanha, e nem suspeitava a morte do seu esposo. Mas a demora de Viriato, a falta de notícias, o silêncio de todos em volta dela, o ar de ternura com que iludiam as perguntas que fazia aos que passavam, lançaram Lísia numa melancolia deprimente. E ouvindo cantar uma rapariga gaditana debaixo do seu miradouro, notou que insistentemente lhe chamava:

— Sempre noiva! a Sempre noiva.

E quando Lísia disse para seu pai, o velho druida Idevor:

— O coração adivinha-me, que Viriato está morto!

O velho respondeu com firmeza:

— Viriato não podia morrer em batalha! Se não aparece, é porque anda lá por esses montes da Celtibéria, ou talvez pelo sul da Lusitânia, ou Cinesia, organizando a resistência. Não desesperemos!

Lísia, cansada de incerteza, teceu uma coroa de Verbena, a erva da segunda vista, e colocou-a na cabeça. Desde esse instante lhe ocorreu o pensamento de consultar os oráculos para saber a verdade completamente, ainda que lhe causasse a maior dor. E o oraculo mais sacrossanto e irreparável nas suas revelações era o das Pedras baloiçantes, os Loghans, visitados na região dos Cinésios, junto dos quais nunca ninguém se atrevia a ficar durante a noite.

Lísia, acompanhada de alguns embates ou serventuários de condição livre, partiu com o seu pai até à Ilha sagrada de Achale, aonde se recolheu o velho druida, e ela continuou a jornada com impaciência, para ouvir a sentença definitiva dos Loghans, na região procurada por tantos crentes. Não tinha descanso enquanto não soubesse a verdade, mas verdade que decidia da sua felicidade, de toda a sua existência:

— Viriato está vivo? Viriato estará morto?

E seguindo em temerosa jornada por desertos infestados por lobos, e por cidades ocupadas por súbditos de Roma, Lísia caminhava incólume, como no sonambulismo da concentração de uma saudade inconsolável.

CAPÍTULO LVII

Contam-se maravilhas dessa região dos Cinetas, na qual se ouve, segundo dizem, o estrugir dos raios ardentes do Sol quando se afunda nas águas do Oceano, ao fim do dia. E também relatam viajantes audaciosos, que esses blocos de âmbar amarelo, de impagável beleza, que o mar arroja ás praias, são a solidificação desses raios solares bruscamente mergulhados nas águas. Mas entre tantas maravilhas, a que mais deslumbrava os espíritos é a dos Loghans, os penedos baloiçantes, que revelam o desconhecido a quem se aproxima deles e os interroga.

Logo que Lísia chegou ao país dos Cinetas, mandou que os seus embates esperassem no povoado, dirigindo-se ela sozinha para os dois grandes fraguedos sobrepostos, que estavam no caminho do Promontório Sacro, e se avistavam de longe, como dois nimbos opacos e caliginosos no horizonte. Aquele aspeto infundiu-lhe um terror momentâneo; mas avançando sempre chegou ao pé dos dois gigantescos penhascos, para os quais se subia por saliências, como imperfeitos de grãos formados pela erosão atmosférica. Um desses penhascos, e o maior, estava assente no solo, cercado de matagais e dos pedregulhos que o tempo ia destacando dele, conforme o fendiam os raios, a água gelada nas suas cavidades, e as raízes de mirrados arbustos. O outro penhasco apoiava-se sobre este, e apesar de ser um megálito espantoso, podia-se notar que fora separado por uma clivagem natural, e que tendo-se as juntas da estratificação corroído de fora para dentro, ficou um ponto que escapando ao fenómeno da erosão, é aquele em que oscila levemente o Loghan ou calhau enorme.

Lísia, subira para o coruto do monólito, que permanecia imóvel; sentou-se cansada, naquela solidão e amplidão imensa, contemplando o mar ao longe, e vendo o sol sumir-se no ocaso. Depois enegreceu o ar, as sombras da noite cobriram tudo em volta, e Lísia, compreendendo a situação da vida sem aquele que tanto amava, ergueu-se resolutamente, procurou o vértice do penhasco baloiçante, e interrogou:

— Viriato está vivo?

A rocha ficou imóvel. Lísia quis ainda repetir a pergunta, mas entrando num desespero de pressentimento, inquiriu:

— Viriato está morto?

A rocha oscilou levemente para o lado esquerdo da posição em que se encontrava Lísia. Ela, como se vibrasse em si um último golpe, renovou a pergunta, repetindo-se a mesma oscilação sinistra. Lísia ficou numa imobilidade atonita, num letargo inconsciente, como se tivesse caído daquela enorme altura, e ali jazeu a noite longa, insensível ás rajadas frias, prostrada em terra, debruço, como esmagada pela impressão abrupta. A luz do sol é que a despertou; tinha voltado à vida, não a do seu dourado sonho, que ali acabara, mas a do sofrimento que não pode prolongar-se.

CAPÍTULO LVIII

No desmoronamento total da sua felicidade, Lísia lembrou-se do seu pai, o velho druida; queria comunicar-lhe a revelação tremenda, chorar com ele a morte de Viriato. Quando chegou à Ilha sagrada de Achale, aquele refúgio quase celeste pareceu-lhe um desterro, e a Torre redonda consagrada ao Deus inominado apareceu-lhe como uma prisão erguida sobre o mar. Idevor, logo que viu a barca de couro dirigir-se para a Ilha, veio receber Lísia com o grupo das nove Donzelas, que a acompanhavam, a ela — a sempre noiva.

Lísia conheceu a intenção; e abraçando o pai, numa daquelas angustias para que não hás, proferiu apenas:

— Está morto Viriato! Disse-o o Rochedo baloiçante.

— Também o sei! — devolveu o velho druida, encostando a cabeça da filha sobre o peito.

— Quem vos trouxe a notícia?

— Veio aqui Tantalo, o companheiro de Viriato nesses dez anos de campanha gloriosa contra os Romanos; veio entregar-me a Espada de Viriato, que conseguiu salvar...

— A Espada invencível?

— A Espada sempre invencível.

— Mas, Viriato não morreu em batalha... Viriato foi atraiçoado!... Foi atraiçoado com certeza!

O velho druida, sustendo-a naquela alucinação clarividente, disse para Lísia:

— Atraiçoaram-no os seus três melhores amigos, Ditálcon, Andaca e Minouro! Comprou-os o Cônsul Quinto Servilio Cepio, o mais inábil dos generais romanos; só assim teve a ignóbil vitória.

— E a independência da Lusitânia, desta desditosa Pátria nossa amada?

— Completamente perdida! — respondeu o druida desalentado.

— Perdida, mas não para sempre, — proferiu Lísia, com um acento de vivacidade e esperança . — Quero ver a Espada de Viriato! é o que me resta do Esposo com quem estive sempre espiritualmente unida.

E pai e filha encaminharam-se para o subterrâneo da Torre redonda, em que se guardava o tesouro da Lusitânia. Lísia reconheceu a Espada:

— É esta, a mesma que eu lhe cingi no último dia da festa do nosso noivado, dizendo-lhe com um beijo:

— Regressa vencedor! Viriato caiu apunhalado quando dormia: não foi vencido em batalha, não. Não regressou mais ao seu lar, aos braços da esposa que o esperava ansiosa; veio aqui ter a sua Espada, que eu contemplo, que eu beijo...

E como se estivesse num delírio suave, ao levar a Espada aos lábios, o brilho da lâmina de aço refletiu-se nos olhos grandes e rasos de lágrimas, e operou-se no seu espirito uma miragem do futuro, como se conta na velha lenda dos Espelhos de Salvação. E num arrebatamento profético e assombrada, continuou fitando a lâmina fulgente, exclamando:

— «Desvenda-se-me o futuro. Eu vejo, eu vejo... Vão passados sete anos. Numância ainda resiste corajosamente ao cerco de Cornelio Cipião Emiliano; e que loucura a do destemido Salóndico! quis fazer uma sortida ao acampamento romano, e lá ficou morto. Agora é que Numância, sem chefe, também está perdida. Numância não se rende; os Romanos entram na cidade e ficam assombrados perante o suicídio heroico da população. Morreram livres.

E passando a mão delicada pela lâmina da Espada, para restituir-lhe o brilho empanado pela respiração ofegante, voltou a contemplar o quadro do futuro:

— «Não bastou a traição de Cepio, nem a queda de Numância para assegurar o domínio de Roma na Hispânia. É aqui na Lusitânia que Sertório vem encontrar o espirito de revolta para resistir contra as fações que o exilaram de Roma. É com o valor dos Lusitanos de que se rodeia, e que sonham com a sua independência, que Sertório derrota os generais que Roma contra ele envia. Mas, ai! Empunhará a sua mão a Espada de Viriato, que lhe foi confiada... e tal como Viriato, cai também assassinado por um seu companheiro!...

Depois de um grande silêncio, como se contemplasse acontecimentos incompreendidos, como são esses da queda do Imperio romano, das invasões dos Bárbaros do norte, das lutas contra os povos da Africa, Lísia, passando a mão pelos olhos enublados, contemplou novamente a lâmina cintilante:

«A Espada de Viriato, longo tempo sepultada nesta ruina imensa, está outra vez descoberta; ei-la brandida por um braço vigoroso e jovem. Uma era nova se me ostenta! vejo novos Símbolos, novos trajos; outra vez desencadeamento de raças de encontro umas ás outras! Nesta luta dos dois Símbolos, a Cruz e o Crescente, eu vejo a Espada de Viriato nas mãos do jovem Cavaleiro sustentando a independência deste território que vai do rio Minio ao Durio! É um pequeno trato da antiga Lusitânia, mas que importa! é o foco donde irradiará o impulso para se reconstituir a obliterada nacionalidade.

«Por quarenta anos a Espada de Viriato é brandida pelo corajoso Cavaleiro, que vai estendendo o território lusitano ao Monda; já chega a Calabis; conquista a bela cidade que está no lês do Tagus. Não virá longe o dia, em que esse território alcance as fronteiras do Anas, e se complete com a região dos Cinésios.

«A Lusitânia revive, e ergue-se altaneira diante da Ibéria, que procura absorve-la na sua unificação. A Ibéria serve-se do meio ardiloso de uma herança real, e recorre à invasão. Por entre a Ala dos valentes Namorados vejo a Espada de Viriato empunhada por um novo Caudilho! Donde viria para a sua mão essa Espada? Eu vejo: entrega-lha o armeiro de Calabis, que a desenterrou do chão em que se transforma o ferro no aço mais puro!»

Então Lísia, voltando a lâmina refulgente, contemplou com mais assombro:

— «A Lusitânia livre, depois de reconstituída no seu solo, reata a tradição dos antigos navegadores ligúricos, e lança-se à descoberta das Ilhas do Mar Tenebroso, e tocando os dois continentes, vai fundar um novo Imperio lá aonde o sol se alevanta! É ainda a Espada de Viriato na mão firme do seu Capitão terríbil, que cimenta esse Imperio em bases inabaláveis, em que se mantem por seculos! Para que perscrutar tanto o futuro? A Lusitânia revive...»

Lísia entregou a Espada de Viriato ao velho druida para a guardar no tesouro secreto da Ilha de Achale; e cansada da visão presciente caiu num sono cataléptico, em que ficou por muitas e muitas horas extática, inerte, semimorta, insensível. A dor inconsolável divinizava-a; tinha na face uma expressão sobre-humana.

CAPÍTULO LIX

Lísia recobrou os sentidos, como se um golpe súbito a ferisse; levou a mão ao peito, e ergueu-se respirando com ansiedade, olhando em volta de si para descobrir que peso enorme era o que a comprimia e abafava mortalmente! Sempre a terrível realidade, a perda irreparável, a desolação sem esperança. Lembrava-se do funeral de Viriato, da fogueira da gigantesca pira, e da ventura inexprimível de acompanhar o Esposo confundindo-se com ele na mesma chama, identificando o seu espirito no mesmo ar ambiente, eternizando-se na energia restituída ao universo!

E pensando nesta voluptuosidade da morte, acarinhou-a a ideia do suicídio, notando quanto mais felizes foram aqueles Companheiros de Viriato que tinham jurado a confraternidade para a vida e para a morte; esses num duelo desvairado bateram-se sobre a sua sepultura até chairem exangues e ficarem ali enterrados conjuntamente, num sacrifício de amor, sob o mesmo solo! E ela, como esposa de Viriato, embora sempre noiva, poderia continuar a viver? Lísia considerava a vida como uma degradação, um vegetar da animalidade sem motivo. Queria arrojar de si esta carga, tornada incomportável pelo tédio da própria existência.

Começara a estação hibernal; noites caliginosas e longas tornavam-lhe as insónias alucinantes. Grandes tempestades passando por sobre a Torre redonda da Ilha de Achale consolavam-na nos seus rugidos de cólera e desespero. Ondas alterosas e alvíssimas arrojavam-se de encontro ás rochas sobre que estava assente o vetusto monumento.

Lísia começou a passar pela lembrança todos os lances do seu primeiro e santo amor: como Viriato lhe tomou as mãos no alto da Torre redonda, como lhe pôs o cinto de ouro, como lhe entregou no dia do consórcio a Viria do comando; como a beijou suavemente, e o abalo súbito em que as festas do casamento foram interrompidas pelas palavras:

— Cepio rasgou o tratado de Paz com a Lusitânia! — e a brusca despedida de Viriato para nunca mais!...

Ao chegar a este ponto, a imaginação de Lísia obscurecia-se, caía em delíquio, num gozo de dor destrutiva. Arrancando-se a essa deliciosa angustia, refletiu:

— O noivado ficou interrompido. E porque não há de ser finalizado? A noiva deve acompanhar o esposo; é pela morte que eu tenho de chegar à vida infinda com Viriato; tanta delonga estupida, que parece irresolução covarde...

E logo que foi noite cerrada, desceu ao tesouro da Ilha sagrada, e mesmo na escuridão, e com o tino de quem sonha acordado, tomou a faixa de ouro com que Viriato a cingira, apanhou também a Viria que o esposo lhe lançara ao pescoço, e subindo apressadamente a escadaria, foi galgando sempre até chegar ao último andar da Torre redonda. A escuridão era espessíssima, cortada a intervalos pela luz fulva e instantânea dos coriscos. Lísia sentia um gozo inexprimível nesta harmonia entre a tempestade exterior e a agitação convulsiva da sua existência moral.

Cingiu com recolhimento e lentidão o Cinto de ouro; envolveu o pescoço ebúrneo e escultural com a Viria, aquela mesma com que Viriato,-a sua esposa, se entregara à vontade dela, e- para sempre.

E olhando para aquelas joias, que tanto lhe diziam, no momento em que um relâmpago se refletiu nelas, ainda murmurou:

— Assim eu estava, quando ele partiu para sempre; assim mesmo vou ao seu encontro.

Caminhou resolutamente para o parapeito da Torre redonda, no baixo da qual marulhavam as ondas arrebentadas nas restingas, deixando na escuridão tétrica a claridade de uma extensa fosforescência; e sobre esse sudário nítido da ardentia, precipitou-se com toda a sua insondável amargura a formosa senothêa, sepultada nas águas revoltas, que na piedade imanente na natureza fizeram que o seu corpo não fosse profanado e nunca mais fosse visto.

CAPÍTULO LX

Idevor não tardou a dar pela falta da filha; recompôs de pronto a cena do seu desaparecimento, e longamente fitou o mar, para ver se descobria flutuando o corpo daquela que ainda o prendia à vida. Não podia conter-se no âmbito estreito da Ilha sagrada de Achale; e escondendo todos os sinais com que se pudesse descobrir o tesouro da Lusitana, abandonou a Torre redonda, já perturbado da razão, dementado, exclamando:

— Ela vaticinou que a Lusitânia renasceria! Aonde? Aonde? Aonde? Nesse território que começa nas margens do Minio até ao Durio. É aí, é aí que eu quero encher-me de esperanças. Aí, na Terra portucalense, ficará sepultada a Espada Gaizus, o talismã de Viriato.

Depois da morte de Viriato deu-se funda depressão no espirito das tribos lusitanas, por efeito de um fenómeno astronómico inopinado: apareceu no céu um cometa, ao qual pela forma da sua cauda o povo chamava a Espada flamejante, movendo-se em sentido retrogrado ou oposto ao movimento das estrelas! Na crença popular ligavam o seu aparecimento com a terrível calamidade da morte de Viriato, e perguntavam a Idevor se a Espada flamejante não seria por ventura a espada Gaizus. O velho Endre respondeu:

— Em breve deixará de ver-se esse sinal no céu; mas num período de setenta a setenta e seis anos será o seu reaparecimento. Então a Lusitânia lutará de novo e com vantagem pela sua independência...

De certo Idevor fixava o período da reaparição do cometa retrogrado já conhecido por algumas observações uranográficas dos velhos anais da raça navegadora; a revivescência política era apenas uma aspiração, uma esperança que ficava germinando nas almas.

O pobre velho seguia pelos caminhos com os longos cabelos brancos revoltos pelo vento e pela chuva, com os pés já ensanguentados, para as margens do Minio, longe, muito longe. Os que o viam passar, diziam com piedade:

— Anda como doido o velho Endre.

E correndo agitado pelos caminhos e matagais, parecia que ia em procura de alguém, pela ansiedade com que perscrutava em redor de si, ou fitava o horizonte distante. E aos que o interrogavam, na carreira ininterrupta e errante, respondia à pressa:

— Ando à procura da Cerva branca. É ainda a minha esperança; porque a Cerva branca há de um dia dar que fazer aos Romanos.

E o desgraçado velho seguia incansável ao vento, à chuva, desgrenhado, absorto no ansiado delírio de encontrar a Cerva branca.

Entretanto Cepio contava com a glorificação do Triunfo na sua próxima chegada a Roma por ter acabado habilidosamente com as guerras de Viriato. Aquele que tinha derrotado os exércitos consulares durante dez anos sucessivos, não morreu em combate, mas passou do sono para a morte. Este trânsito não fora previsto pelo Oraculo, e disso se gloriava Cepio. Pensando em levar cativos lusitanos para lhe cercarem o Carro triunfal, mandou agarrar o velho druida; quis vê-lo pessoalmente.

A figura do ancião era imponente, pelas barbas esquálidas, pelo olhar alucinado, pela cabeça olímpica; mas Cepio conheceu logo que Idevor estava louco, pela preocupação com que falava:

— Ando à procura da Cerva branca. A Lusitânia surgirá rediviva, lá do Minio até ao Durio, só depois de aparecer a Cerva branca.

O vencedor romano não pôde obter do velho outras palavras; e mandando-o embora com desdenhosa indiferença, disse para os que o rodeavam:

— Ele está dementado: crê no renascimento da Lusitânia! Um doido assim iria deslustrar-me o Triunfo.

O velho encarou o Cônsul, como a amaldiçoa-lo:

-O Senado aproveitará a infâmia, mas há de renegar-te; e serás encarcerado! sofrerás o exilio! e as tuas filhas... serão arrastadas ao prostibulo!

Cepio fez que não percebera o funesto agouro e correu com o velho.

E riram-se alvarmente da esperança no aparecimento da Cerva branca. Ninguém compreendia o sentido do estranho vaticínio; mas dai a setenta anos, Sertório, que estava exilado e prófugo na Africa, em consequência das procriações de Sila, era chamado pelos Lusitanos, que o fortificaram na luta com o seu odio inextinguível e com a sua imorredoura esperança. As Guerras civis tinham sido previstas por Catão, no discurso contra Galba, no senado, no ano de DCIII, como consequência da diminuição das atribuições dos Censores. Sertório foi a primeira vítima; sabia o que era a perda de uma pátria.

A Cerva branca que lhe ofereceram os Lusitanos quando o chamaram da Líbia, seguia-o por toda a parte, coroada de flores, sem temor da soldadesca; mostrava-a como um dom de Hertha, consultava-a como oraculo, derrotando todas as legiões romanas, pelo prestígio tradicional da Cerva branca sobre a multidão que o aclamara por chefe. Como Viriato, vencia todos os Cônsules, sendo como Viriato também morto pela traição.

Appendix A

FIM
CC BY-SA 4.0